Travessia Alpha-Crucis, dia 4

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01 de Julho de 2012, domingo 7:00h – Até então, está foi a noite mais agradável. Nada de sede, nem pessoas com dores, ou gotas sacudidas na cara. A mata estava seca, e o céu limpo, com seu azul transpassando entre as folhas e galhos. Os amigos ainda dormem profundamente, mas por pouco tempo. Devem me odiar por isso. Mas nossa missão é gigantesca, e ainda mal começou, perto que tem pra fazer. O sol batendo no topo das arvores informa que acabou a moleza e é hora de pular. Se existe outra grande vantagem do bivaque além do mínimo peso, é a agilidade com que se desmonta.

Da posição deitado, até estar com a mochila no lombo pronto pra partir, não vai nem 10 minutos. Somente uma barraca levaria mais do que esse tempo para desmontar. Aproveito o tempo livre até que os amigos se preparassem, para ir até o acampamento se despedir do camarada Hilton. Ele me conta que teve uma noite molhada, e eu rindo, tiro uma com a cara dele contando que nossa noite foi sequinha. Faço uma foto pra eternizar o momento, e depois dum até breve, volto onde estão os amigos pra ver como andam as coisas. Crus ainda, no caso. Informo que estou indo pro cume agilizar o registro.
Chego 7:45h, mas acabo tendo que esperar até 8:25h pelos caras, o que me gera certa impaciência. Sem muita demora partimos do Itapiroca rumo ao profundo e confuso vale entre este e o Cerro Verde. A meia dúzia de horas de sono que tivemos, fez milagres em nós, e a caminhada rendia bem e animada. Ficamos alerta para as duas roubadinhas a esquerda, pouco antes de chegar ao fundo do vale. Afinal estávamos atrasados e não era nada bom perder tempo. Sem dificuldades chegamos às gretas do Cerro Verde. Lugarzinho marcante este, e de beleza singular.
Deixamos uma marca ali também, que ficou muito melhor do que seria no bambuzal úmido do fundo do vale. Ali fizemos lanche matinal a seco, pois não tínhamos mais água desde a noite no Itapiroca. Agora tudo que podíamos esperar, era que houvesse no córrego do Cerro.
Chegando lá, constatamos que havia, mas apenas um filete raquítico escorrendo com preguiça pela fresta da rocha. Não havia como coletar, então improvisei uma bica com folha de bromélia, e com muita paciência, enchi o litro. Insatisfeito com o rendimento, Jurandir decidiu intervir, e se mostrou deveras habilidoso na tarefa de construir bicas com folhas de bromélia, conseguindo um rendimento bem superior a minha. Mas engraçado mesmo ficou quando foi procurar a tampa da PET que tinha desaparecido. Intimou o Sexta, que de imediato pulou longe da acusação. Enquanto procuravam, questionei debochadamente sobre a utilidade duma garrafa PET sem tampa numa travessia.
Depois que Jurandir já não tinha mais onde procurar o insubstituível objeto, Sexta ao arrumar suas tralhas, encontra a mesma, entrega, e disfarça. Em dias de sol e céu azul, tudo vira piada, e a escalada prossegue animada. Em instantes chegamos à bifurcação, já bem próximo ao cume. Largamos as mochilas e se mandamos velozes. Em cinco minutos pisamos no Cerro Verde, décima montanha da travessia alcançada, às 10:40h. Visual espetacular, temperatura agradável com brisa leve.
Um convite a vagabundagem. Aproveito a situação favorável para um relato mais detalhado no livro de registro. A paz era tamanha, que nem mesmo o papel contact conseguiu me irritar. Nosso destino do dia ainda estava distante, então deixamos a boa vida de lado e sumimos dali. No lugar de acampamento, Jurandir deixa uma segunda marca da travessia. Rapidamente voltamos nas mochilas e seguimos rumo ao Tucum. Durante esse percurso, começo fazer cálculos de tempo, e as coisa não batem. Já quase 11:30h, levaríamos ao menos mais três horas entre ida e volta pro Tucum e Camapuã, as duas montanhas seguintes do roteiro.
Voltaríamos nas mochilas, por volta de 14:30, e não haveria mais nem como chegar na última chance de dia. Inevitavelmente, a noite seria no Ciririca, e isso, comprometeria toda a temporização da travessia, pois no dia seguinte seria praticamente impossível fazer os Agudo do Lontra e da Cotia, e ainda tocar até a Graciosa. Infelizmente cometemos um grave erro ao sair demasiado tarde do Itapiroca, e imediatamente, pagaríamos por isso tendo que abrir mão de dois cumes. Tratamos que, para não mexer no numero de montanhas da travessia, outras no caminho seriam incluídas afim de manter as 44 do projeto. Na rápida reunião na entrada do Tucum, a decisão foi unânime, e pra não comprometer o objetivo maior, seguimos reto pro Pico do Luar. No último dia da travessia, nos daríamos conta do quão acertada foi essa decisão.
O sexta, assim como todos nós, estava ávido por um banho no córrego, mas o acordo também previa que ao deixar o Tucum, o banho também ficaria de lado, pra garantir a descida encrenqueira do Ciririca ainda com luz. Chegando ao córrego, já era meio dia. Então decidimos fazer uma pausa pra alimentação, demarcação, e um breve banho de gato. Já estávamos na metade da primeira etapa da travessia, e alguns luxos já estavam permitidos, como por exemplo, comer alguns chocolates do pacote que levei. Nessa hora tivemos uma surpresa. Notei dentro do pacote alguns chocolates BIS roídos. Não entendi a principio, mas ao verificar melhor, a sacola onde estavam, também estava furada por pequenos dentes. Caiu a ficha.
Agora ficou claro aquele papel picado embaixo da sacola quando resgatamos o material perto do A1. Está ai o resultado da ocupação desordenada, por pessoas sem nenhuma educação, que abandonam todo o tipo de lixo e porcarias em acampamentos. Fica difícil saber quem é o verdadeiro rato da história, mas do porco imundo, não resta dúvidas. Tivemos muita sorte que o estrago foi pequeno, apenas uns 3 ou 4 BIS. Um deles, até aproveite a metade não roída. Essa foi sem duvida a refeição mais regada, onde as barrinhas de cereais tiveram desprezo total. Seguimos revigorados rumo ao pico do Luar, o qual atingimos às 13:30h. O tubo do livro de registro, é o mais maltrapilho da serra, resultado dum serviço porco e de péssima qualidade por parte de quem instalou. Continuava amarrado com fiapos de cordas de varal, e sem tampa. O caderno estava ensopado no interior do pacote plástico que não serve pra nada. Enquanto deixamos secar um pouco ao sol, Jurandir Faro Fino fareja a tampa em meio à macega, e logo surge com ela em mãos.
O tempo passa, ou melhor, voa. Minutos depois de registrar a passagem pela 14ª montanha, evaporamos rumo ao extenso e encantador vale entre este e o Siri, nosso próximo objetivo. Durante a descida e ainda mata transitória, uma fenda escondida devora minha perna e me causa um tombo fenomenal, e vou com o ombro direto na ponta dum galho. Resultado: Corte e hematoma no ombro, e claro, um container de xingamentos. Sexta sugere um curativo, mas xingar é o melhor remédio, e vamos em frente. Chegando ao riacho, nova fita de marcação, e seguimos por ele até começar a subida pro Siri, que sem demora, atingimos às 14:50h. Não há caderno de registro, e a marca da 15ª montanha foi assentada num tronco. Jurandir escala uma rocha duns quatro metros sob meus protestos. Já há riscos demais numa jornada destas, e uma escorregada ali, podia por tudo a perder. Sorte que o bicho é competente. No mesmo embalo, descemos o Siri rumo à última chance. Antes de adentrar a mata para seguir pelo sombrio, úmido, e traiçoiero córrego que da o nome a este lugar, cogitamos rapidamente a hipótese de seguir pelos campos, caminho bem mais rápido e agradável que eu e Jurandir estreiamos a última vez que passamos ali, meses antes.
Porém como não abrimos, decidimos não arriscar para evitar perda de tempo. Este trecho pelo córrego é extremamente desagradável. Lugar sujo, pegajoso, cheio de espinhos, gretas, e outras armadilhas. Infelizmente, fui eu quem descobriu essa desgraça de caminho, meses antes de fazer a primeira travessia Pico Paraná/Graciosa, em 1997. Por sinal, antes disso não havia trilha que ligasse do Cerro Verde ao Ciririca, e deu muito trabalho fazer essas ligações. Essa parte até a Última chance em especial, é muito desagradável, e desde o nascimento já condenei a morte. O trajeto pelos campos interceptando a trilha do Ciririca pouco antes da água, é infinitamente melhor, e breve estará viável. Mas de volta a nossa historia, ficamos muito felizes ao chegar na Última chance às 15:20h. Lanchinho básico, água no rosto, marcação Alpha Crucis como de costume.
O sol baixava rápido quando chegamos aos campos. Nesse momento o grupo se distanciou, e eu fiquei no meio, Jurandir à frente, e Sexta atrás. Na rampa, a escalada foi tranqüila em virtude de secura das rochas, a qual passamos com facilidade e rapidez. Pouco a frente desponta o Pico Paraná, indicando que a longa crista que leva ao cume estava próxima. Bem à frente vejo o Jurandir, quase finalizando a escalada. Isso me deu um impulso extra e vou na cola. Quando chego ao lugar que ele estava, olho pra trás e vejo o Sexta no mesmo ponto donde observava Jurandir. Chego ao cume do Ciririca as 16h45minh. Paro por momento pra fotografar as placas, e ao ver Jurandir na segunda placa, grito e peço que vá agilizando o registro no livro, afinal o sol descia rápido, e não era boa idéia descer o precipício do Ciririca rumo aos agudos à noite.
Quando cheguei o adesivo já estava colado, e comecei escrever o texto. Logo o Sexta aparece, e sem muita demora às 17h10min, enveredamos rumo aos Agudos. Neste lugar, não há como descer rápido, mas íamos o mais possível. O sol se despedia no horizonte, e logo depois de descer as pedras problemáticas, noto o Sexta ficando pra trás, falando ao celular. Comentei com o Jurandir:
Veja se isso é hora de falar ao celular! Precisamos passar antes de anoitecer no fundo de vale onde as coisas são confusas até de dia.
Não sei como, o cara que estava pra trás e falando ao telefone, ouviu meu protesto, e sem cerimônia, largou os cachorros gritando:
– Pode ir, caralho! Eu tenho lanterna!
Faz de conta que era este o problema. Todos tinham lanterna, lógico. A questão era passar de noite, num lugar que é medonho até de dia, mas tudo bem, sem stress e bola pra frente. Passamos no crepúsculo pelas partes mais criticas, e chegamos já noite na picada pro Lontra. Novamente largamos as malas no chão, e aproveitamos pra sacar as lanternas. Seguimos apenas com o básico, rumo à penúltima montanha do primeiro elo da travessia. Novamente a noite estava espetacular, com uma brisa geladinha. Na penumbra, a tênue silhueta na escuridão, dava ainda mais porte ao já imponente Agudo da cotia. Em vinte minutos pisamos no topo, e às 19h estava cumprida a última meta do dia.
Fixamos numa arvore retorcida, a identificação, e sem demora deixamos esta montanha rumo ao merecido descanso. De volta nas mochilas, seria apenas outros vinte minutos até a canaleta, lugar protegido, e com água boa do lado, para que Sexta novamente colocasse em ação suas habilidades culinárias. Rapidamente avançamos pro recanto. Ao cruzar o rio, alerto aos camaradas sobre o tronco bamba sobre a água. Mas Jurandir, só pra contrariar, pisa nele e vai pra água, afundando os dois pés até o joelho, e encharcando os dois pés que quase conseguiu manter seco por todo o dia. Largamos as mochilas de vez por esse dia, para poder rolar melhor de tanto rir.
Em seguida, fomos selecionar os lugares pra bivaque. Nos dias anteriores, Jurandir sempre protestava dizendo que eu pegava o melhor lugar do acampamento pra passar a noite. Desta vez, pra evitar o comentário injusto, fiquei esperando ele se acomodar no lugar que queria, e daí fui procurar um lugar pra mim. Foi só o tempo de eu achar um, pra ele alegar novamente dizendo que peguei o melhor lugar do acampamento. Então antes que pudesse terminar a reclamação, mandei pra PQP, e tudo virou risada de novo. Nessa altura, o Sexta já agilizava o jantar. Comida quente é sempre bem vinda. Na verdade esse tipo de regalia não estava nos planos, e não haveria se não fosse o Sexta. A única comida quente prevista, estava mocada nos finais de cada elo da travessia, no caso Graciosa e Marumbi. Mas é inegável que esse tipo de mordomia num lugar totalmente selvagem, é tão bom quanto sexo.
Era a ultima noite de travessia pro Sexta, então não economizou, e houve um segundo tempo do banquete, regado a suco em pó de abacaxi. Todo mundo redondo de tanto rango, veio a preguiça, e com ela, o sono. Sob o teto da mata, e ao som suave e sussurrante do riacho, adormecemos numa noite especialmente restauradora.
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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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