Travessia Caucaia – Cotia

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A “Estrada da Reserva” é uma antiga via de chão que percorre todo perímetro do setor noroeste da “Reserva Florestal do Morro Grande“, paraíso ecológico da Grande Sampa que deve sua importância por possuir mananciais que abastecem toda Zona Oeste da capital. Retornando a este belo lugar, decidi palmilhar toda a extensão da via acima citada – hoje uma precária trilha – saindo de Caucaia do Alto e terminando em Cotia. Um rolezinho agradável de 20km que esticou por trilhas no meio da mata até o belíssimo Poção do Graça e emendou á proibida Barragem e Represa do Graça, construída em 1916 e que faz parte integrante do Sistema Alto Cotia.

Saltei no terminal rodoviário de Caucaia do Alto as 8:30hrs após uma rápida viagem no latão 297, que parte do Metrô Butantã apenas em dias úteis, me poupando da baldeação básica se tivesse ido pra Itapevi. A trip em si passou despercebida, uma vez que a bela paisagem emoldurada na janela dos horizontes a margem da Rod Raposo Tavares (SP-270) e da “Estrada de Caucaia do Alto” foram substituídos por cochilos seguidos. 
 
Pois bem, mal pisei no pacato vilarejo que recém acordava, passei no mercado afim de obter meu lanche (pão e mortadela) e pus-me imediatamente a andar.  Me pirulitei pela via a esquerda da simpática Igreja Nossa Sra Imaculada Conceição, que no caso responde por Gertrudes Maria de Camargo, embora o mais difícil seja encontrar a sinalização devida nas ruas. Mas é aquela coisa: “quem tem boca vai a…. ”
 
Toquei então na direção sul, deixando o burburinho do distrito pra trás, e logo abandonei a via palmilhada por outra nascendo pela esquerda, a Rua Luiz Ferreira Gil. Basta se manter nesta via por um bom tempo, sempre pra sudeste, passando por uma escola e um campo de baseball até entrar no pacato Jd São Luiz, marcado pela charmosa capelinha São Luiz Gonzaga. Só depois é que o verde toma conta a nossa volta com mais intensidade, e é onde se deve prestar atenção a uma discreta estrada de chão que deriva a esquerda e que toca pro norte. Uma placa decrépita assinala a via como “Rua Natalia” e é por ela que sigo em suave ascensão, ladeando uma baixa colina de eucaliptos.
 
Não dá hora de pernada e já me vejo nos trilhos da “E.F. Sorocabana”, e daqui o sentido é óbvio, isto é sempre pra sudeste. Trajeto tranquilo e desimpedido, permeado de reflorestamentos e matacões pipocando as colinas vizinhas, mas que depois dão lugar a exuberante mata nativa. Detalhe recorrente no caminho é o mau cheiro dos grãos e farelo que o trem deixa cair a beira da linha e termina apodrecendo ali mesmo.
 
As 9:40hr abandono o ferro-trekking ao adentrar na “Reserva Florestal do Morro Grande”, onde uma lacônica placa costumava anunciar este importante limite. Mas qual minha surpresa que a mesma – enferrujada e caindo aos pedaços – já não mais se encontra ali, provavelmente depredada por imbecis. Mas a dica do lugar é uma vereda, lisa e escorregadia de lama, que nasce pela esquerda subindo forte em meio ao mato. Pronto. Estou no comecinho (ou final) da “Estrada da Reserva”.
 
Uma vez nesta vereda basta tocar por ela sempre na direção norte, sem sair dela. Neste comecinho a vereda empina até estabilizar cerca de 50m acima, ladeando um exuberante foco de mata e passando inclusive por um antigo posto de guarda, demolido sobre um enorme rochedo. Num piscar de olhos caio numa estrada maior, onde o horizonte se amplia permitindo visibilidade do quadrante sul, onde se destaca o verdejante Morro do Caucaia. Mas logo adiante adentro na continuidade da vereda, que se ramifica pela direita e mergulha novamente na mata fechada pro norte, deixando a via maior que seguramente toca sentido o vilarejo, sentido oeste.
 
Daqui em diante o verde me envolve com toda sua exuberância e o silêncio toma conta do meu caminho, só interrompido pelo apito do trem passando, ao longe. A trilha sobe suavemente uma crista ondulada florestada, pra se manter nela um bom tempo depois. Eventualmente se sai no aberto, onde voçorocas de pasto, samambaias e arbustos baixos permitem visibilidade de Caucaia, pequenina, a oeste. Mas estes trechos descampados são breves e logo mergulho outra vez no frescor da floresta fechada, sempre indo pro norte.
 
O caminho por sua vez se resume a terra, barro, eventuais pedregulhos e até areia, onde vez ou outra aflora parte de algum rochedo sob a terra, cupinzeiro ou marco demarcando propriedades. Trechos compactos de chão se alternam com outros cobertos de lama e mata tombada, mas de fácil transposição. Detalhe: parar pra descansar é tarefa hercúlea uma vez que os mosquitos e mutucas estão impossíveis nesta manhã, que limpa e radiante só não é tremendamente quente devido a proteção do arvoredo a minha volta.
 
A murmúrio onipresente da natureza só é quebrantado poucas vezes, seja ao ladear fundos de propriedades, tropeçar com lixo e descarte irregular ou encontrar vestígios de marcas de magrelas no caminho, sinal que a galera de Cotia já descobriu esta bucólica rota a muito tempo. Mas o que impressiona é, nos finalmentes, acompanhar o muro enorme de um condomínio residencial durante um tempão, o qual apelidei de “Muro de Berlim”. Detalhe: durante todo trajeto não cruzei com vivalma!
 
E dessa forma, tranquila e desimpedida, o cenário muda abruptamente logo após deixar o tal “Muro de Berlim”. Isto pois era cerca das 11:30hr quando adentrei uma enorme área de reflorestamento de eucaliptos, mas sempre ladeando a reserva. Este trajeto se mantém inalterado até que finalmente saio da propriedade de reflorestamento, pra então cair numa via de chão que atende pelo nome de “Estrada da Mata”, embora seja continuidade daquela que originalmente me propus a percorrer, mas com outra denominação.
 
Uma vez nesta nova via, agora tocando exatamente pra leste, surge uma ou outra residência a minha esquerda enquanto á minha direita a floresta da reserva me acompanha a todo momento. No entanto, placas advertindo da proibição de entrar na mata se tornam mais frequentes assim como as penas recorrentes disso, sinal que a galerinha local costuma visitar a reserva a partir daqui. Pra envernizar a dica surgem rombos no cercado em vários pontos. Um deles é o meu.
 
Adentro então na mata tocando pro sul, que desta vez me envolve de forma plena e bem mais selvagem que ao simplesmente bordejá-la pela “Estrada da Reserva“. O frescor da vegetação abranda o calor do quase meio-dia enquanto a copa do alto arvoredo filtra lindamente a luminosidade daquele momento, ao mesmo tempo em que tropeço com uma bifurcação importantíssima.  Decido vasculhar o ramo da direita e lá vou eu, esperando que a surpresa a minha espera seja minimamente agradável.
 
A vereda não tarda a ganhar suave declividade e percebo que desço em direção a um vale ou, no mínimo, ao centro duma bacia hidrográfica importante. A trilha está felizmente muito bem conservada, sinal que é utilizada com frequência a despeito da proibição de entrada. Existe algum mato tombado no trajeto, mas os desvios pra superar estes pequenos obstáculos são facilmente identificados, assim como a continuidade da vereda.
 
No fundo do vale podemos ouvir o ruído de água bem próximo, e ela logo é encontrada quando a trilha intercepta um simpático ribeirão. Uma decrépita pinguela  – que se resume a um mero tronco de integridade duvidosa – sugere cruzar á outra margem, mas decido me manter na que estou pra verificar o rugido de muita água correndo, rio abaixo. E assim prossigo por um rabicho de picada que acompanha a margem esquerda do correguinho, agora tomando a direção sudeste, sob protestos do canto metálico duma araponga próxima.
 
E assim, em coisa de menos de dez minutos tranquilos, palmilhando sinuosamente a vereda supracitada, desemboco num maravilhoso remanso. O ribeirão, provavelmente um dos grandes afluentes do Rio da Graça, se afunila num pequeno cânion rochoso pra depois despejar suas águas por uma larga laje num enorme piscinão de cor acobreada, que reluz de forma deslumbrante ao sol de exato meio-dia e meia!! Uma clareira com restos de fogueira e embalagens de pão-d’alho denunciam acampamentos esporádicos, mas eu to nem ai e me presenteio naquele momento com um refrescante tchibum, um delicioso lanche e merecido descanso.
 
Revigorado da súbita e bem-vinda descoberta, dei uma rápida fuxicada nos arredores apenas pra ver que aparentemente não havia trilha derivando daquele bucólico lugar. Não que tenha visto, pelo menos, mas é um lugar que decerto pretendo retornar pela proximidade de Sampa e facilidade de acesso. Voltei então pela mesma trilha até a bifurcação anteriormente citada, e no caminho quase piso numa minúscula jararaquinha que cruzava a trilha. Ufaaa! Coitada, não sei quem se assustou mais, se eu ou a peconhentinha…
 
Tomei então a variante esquerda da bifurcação e ela igualmente começou a perder altitude em direção ao vale, mas tocando diagonalmente em relação ao fundo. E  em coisa de semelhantes dez minutos logo a vereda me levou as margens do enorme espelho d’água da Represa do Graça, numa clareira com vestígios de acampamento bem perto da foz do ribeirão do mesmo nome.
 
Ali partem trilhas em várias as direções mas eu optei por tomar aquela que bordejava a represa pela margem esquerda. E la me mandei naquela trilha bem acidentada, repleta de obstáculos e bem menos pisada que a anterior, mas facilmente reconhecível ao olhar treinado. Cruzando trechos estreitos e mocós de pescadores, saltando enormes gigantes da floresta caídos e capinhando brejos de mirrados afluentes, não demorou a começar a ouvir gente conversando perto dali.
 
Num piscar de olhos trombei com uma galerinha jovem que curtia (furtivamente) um dos trocentos mini-balneários da represa, com direito a corda em árvore pra tchibum e tudo mais. Com eles me informei das demais picadas, todas dicas devidamente anotadas pruma próxima investida, tomei conhecimento pra evitar pisar nas dependências da Barragem do Graça pois os guardinhas de lá agiam com rigor perante intrusos e invasores.
 
Me despedi da galerinha e prossegui minha jornada pela vereda indicada por eles, isto é, uma trilha que subia e deixava o vale, mas interceptava outra via maior procedente da barragem. E claro qe me mandei pra conhecer a tal barragem proibida, palavra que nunca se deve dizer a um explorador. Subi então a íngreme picada e cai n vereda mencionada, dali tomando a direita, ou seja, sentido represa.
 
Trilha bem batida que se alarga e estreita, mas muito bem conservada e ornada com belas flores em seu trecho final.  Não tardou pra cair nos fundos da tal barragem, onde comecei a tomar mais cautela com encontros indesejados. Dei uma rápida fuxicada, na surdina, bati algumas fotos e me mandei dali, ciente de não abusar da minha sorte até então. A Barragem do Graça é bem bonita e tem uma grandiosa queda em seu trecho que vai pra entrada da mesma. E pensar que é ali que se represa e direciona boa parte da água que sai das torneiras da Zona Oeste de Sampa!!!
 
Dali retornei pela mesma vereda, mas sem cair novamente no vale, e em questão de menos de meia hora me largou no finalzinho da tal “Estrada da Reserva”!!!  Pior que ali ela terminava numa residência com cachorro, animal que considero mais perigoso que cobra ou marimbondo. Mas contornando a mesma com jeitinho pela mata se consegue sair no bairro da Cachoeira, ao norte. Eram quase 14:30hr e dali me informei como chegar no bairro Jd Sandra, onde sabia havia condução pra SP, mas não houve necessidade pois logo reparei que tava pertinho da Cascata a Graça, atrativo visitado já noutras ocasiões.
 
Retornei então pela Estrada do Morro Grande, passando pela entrada da Sabesp (aquela da Barragem), a ponte sobre o Rio Cotia e depois de boa chinelada alcancei, as 16hr, o tal Jd Sandra. Por sorte, a tempo suficiente de passar no mercado, garantir um lanche e um latão de breja pra bebericar no busão, que não tardou em passar. Pernada concluída com sucesso e já maquinando novas trips praquela região cheia de possibilidades e repleta de refrescantes atrativos. Essa é a pouco conhecida e nada divulgada “Reserva Florestal do Morro Grande“, pequeno paraíso ecológico que compõe o cinturão verde da Grande Sampa, a menos de 20km da capital.
 
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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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