Travessia Ciririca-Graciosa

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Já havíamos feito três incursões à trilha do Marco 22, cada vez descobrindo um pedaço maior da trilha. Na terceira, eu e o Joel chegamos ao imponente Salto Mãe Catira, subimos a encosta e fomos parar em cima do cânion de diabásio. Na quarta-feira anterior ao fim de semana combinado para a travessia, fomos ao Clube Paranaense de Montanhismo para assistir a uma palestra do veterano Henrique (Vitamina) Schmidlin sobre a história da Serra da Prata. Lá perguntei ao Julio Fiori, que já fez a travessia algumas vezes, qual era a melhor maneira de transpor o Salto Mãe Catira. Ele respondeu à pergunta e teceu uma preciosa lista de dicas que seriam essenciais para a travessia. A partir daí só dependíamos de bom tempo e “sangue no zóio”.

Depois de um entra-e-sai de gente ao longo dos meses de planejamento, na sexta-feira a equipe estava definida em seis pessoas: eu (Thiago Passarin), Joel Köster, Thiago Mayer, Gustavo Gomes, Carlos Larrosa e Roger Fiusa. Fomos na sexta-feira à noite à Fazenda Bolinha onde, sob o assoviar dos macucos, armamos acampamento e discutimos alguns detalhes, ansiosos pelo dia seguinte. No primeiro dia iríamos até a Colina Verde, onde acamparíamos para no segundo realizar a parte mais desafiadora da travessia, que envolve a Colina Verde, o Rio Forquilha, a cela entre o Tangará e o Cotoxós (ou Coxotós?) e o Rio Mãe Catira.

A TRILHA DE BAIXO DO CIRIRICA

Partimos às 6h30 da manhã do sábado em direção ao Ciririca pela trilha de baixo. O sol de manhã estava de rachar, mas a trilha é toda dentro da floresta, então isso não foi problema. às 10h04 estávamos na Cachoeira do Professor, ou seja, o ritmo não estava tão ruim para o tamanho da equipe e o fato de estarmos carregando cargueiras.

Quando chegamos à pedra mirante antes do Última Chance, observamos que a serração estava tomando conta da serra, o Anhangava já não podia ser visto. No Última Chance nos abastecemos de água e tomamos fôlego para enfrentar a rampa do Ciririca com cargueiras nas costas. No meio de uma das estiagens mais longas que já vivenciei em Curitiba, tínhamos quase certeza que os riachos dos vales da Colina Verde estariam secos. Eu não acreditei tanto nisso (me enganei!) e subi com apenas dois litros. O Thiago Mayer e o Carlos carregaram cada um cinco litros d'água Ciririca acima!

A subida do Ciririca foi pesada, claro, mas sem percalços e sem esgotar as energias de ninguém. Dos seis membros da equipe, apenas dois já tinham ido até lá: eu de ataque, duas semanas antes, e o Joel para acampar, alguns meses atrás.

Por volta das 13h30 estávamos na segunda placa. Havia muitas nuvens ao redor e em raros momentos foi possível ver a silhueta do Agudo da Cotia. Almoçamos sem muita pressa e às 15h04 iniciamos a descida pela encosta sul do Ciririca. Eu realmente não entendi como não tinha conseguido achar a trilha da encosta sul quando fui lá duas semanas atrás. Enfim, lá fomos nós.  Talvez a maior perda em função do céu fechado de nuvens é não poder ver os Agudos na descida do Ciririca. Pra ilustrar o que quero dizer, segue a foto abaixo, tirada duas semanas antes.

A DESCIDA DA COSTA SUL DO CIRIRICA

Dali pra frente, era tudo novidade para todo mundo. Nenhum de nós havia descido em direção aos Agudos. Alguns relatos que havíamos lido falavam sobre trechos dramáticos de corda e estávamos curiosos para encontrá-los. E realmente é uma descida difícil e delicada, com longos trechos de corda escorregadios e bastante íngremes. Tem uma corda que acaba longe do chão, obrigando a pessoa a cair cerca de um metro. Fiquei me perguntando como se sobe aquilo. Mas o nosso objetivo era a travessia. Algum dia num, ataque ao Cotia, hei de experimentar a subida.

A neblina nos impedia de ter noção da dimensão dos precipícios pelos quais passávamos. Fotografei o mais impressionante deles mas, como será relatado adiante, cheguei sem minha câmera ao final da travessia.

Às 16h18 passávamos o riacho e a curva em "S", que pode ser definido como o pé do Ciririca na direção sul. A partir dali já estávamos no altiplano entre o Ciririca e os Agudos, um dos trechos mais remotos da Serra do Ibitiraquire. Eu queria entender um pouco de botânica para compreender a vegetação que cobre os vales que estão entre as colinas daquele trecho. É uma vegetação ligeiramente esparsa com árvores finas e de médio porte, muito interessante e muito diferente do que se vê do outro lado da serra. Fica aqui o incentivo aos entendidos do assunto para escreverem um pequeno artigo ou prepararem uma palestra sobre a vegetação desse trecho da serra. Com certeza vários aventureiros ficarão satisfeitos em compreender um pouco sobre essa curiosa flora. Tentei registrar em fotos, mas quem frequenta a serra sabe como é difícil capturar em foto as peculiaridades, as dimensões e a beleza de certos trechos. Ainda mais quando se perde a câmera! Mais à frente estão algumas fotos dos vales tiradas no segundo dia.

A COLINA VERDE

Fomos percorrendo os campos de altitude com pouquíssima visibilidade em função da neblina e lamentávamos estar perdendo o que certamente é uma das vistas mais espetaculares da Serra do Mar. Mas paciência, um dia refaremos com tempo aberto. A trilha ali é bem batida e não inspira dúvidas. Às 17h28 chegávamos ao ponto de acampamento da Colina Verde. Como já mencionado antes, tinha razão quem achou que os riachos da região estariam secos. A turma do banana boat (por causa das capas amarelas das mochilas) se deu bem depois de carregar tanta água morro acima e morro abaixo. O Joel e o Gustavo foram até a trilha do Agudo da Cotia para buscar água num suposto riacho que passa por lá. Eu sabia que meu último litro de água era suficiente para a noite e a refeição da manhã, pois logo que partíssemos a jornada seria por rios. Armamos o acampamento e vi que ali havia sinal de celular, então pude ligar para casa para dizer que estávamos vivos e bem instalados. Onde? Muito difícil de explicar.

NOITE DE APREENSÃO

Todos se recolheram cedo porque a neblina estava tão espessa que era quase uma garoa. Eu dormi literalmente sorrindo imaginando a chegada ao Marco 22 no dia seguinte. Desde abril planejamos essa travessia. Maio e junho desse ano foram obscenamente chuvosos, dando uma arrefecida nas atividades de montanha de todo mundo. Depois, quando o tempo melhorou e o inverno seco chegou, eram os calendários que raramente batiam e as incursões ao Mãe Catira que sempre pediam uma nova incursão. Havíamos definido a data de 18 e 19 de agosto quase um mês antes, sem saber se o tempo estaria bom. E no dia 2 de setembro eu me mudaria de Curitiba, tornando muito difícil a realização depois dessa data.

Às 20h30 todos já estavam dormindo e os roncos ecoavam nos campos. Às 21h30 acordei com o barulho da chuva na barraca e pensei comigo mesmo "não é possível!" A chuva foi se intensificando, vi que o Joel (com quem eu dividia a barraca) também havia acordado e começamos a discutir a possibilidade de abortar a travessia caso a chuva persistisse pela manhã. Ambos achávamos que seria a decisão correta. Queira ou não, o que tínhamos pela frente no dia seguinte é considerado o trecho mais desafiador da Serra do Mar paranaense. Nenhum de nós conhecia o trecho, não sabíamos onde estávamos nos enfiando. Ao passo que a trilha da encosta sul do Ciririca é a trilha do Ciririca, uma trilha consolidada, relativamente frequentada e bem marcada, embora difícil. Foram momentos de apreensão. Lembrei de um relato de uma dupla casca-grossa, referência do montanhismo paranaense, que dali do acampamento da Colina Verde havia ligado para saber a previsão do tempo, pois concluir a travessia debaixo de chuva pode ser perigoso. Ouvi a conversa do Roger e do Carlos na barraca ao lado, que eram unânimes em concluir a travessia e não voltar sob hipótese alguma. Isso seria uma discussão complicada de manhã se o tempo não melhorasse, mas realmente acreditamos que a chuva não iria durar tanto. Pouco antes das 00h30 a chuva foi parando até que parou completamente e podia-se até ouvir um grilo cantando. A partir daí eu dormi sossegado. Mais uma vez a serra me havia dado uma baita injeção de adrenalina. Não será isso mesmo que procuramos?

RUMO AO RIO FORQUILHA

Às 04h30 do dia 19 os celulares começaram a despertar. Destaque para a música do despertador do Joel: "Levanta gaúcho! Todos precisam andar!" O Thiago Mayer saiu da barraca e nos informou que algumas estrelas podiam ser vistas no céu. Mandei mensagem para meu amigo Peron pedindo a previsão do tempo para Curitiba, Antonina e Morretes. Ele respondeu dizendo que era de sol o dia todo para as três cidades. Excelente, sem chances de termos de abortar a travessia.

A dica do Julio era clara: com visibilidade, ir em direção ao Arapongas. Sem visibilidade, azimutar 235 graus na bússola e tocar pra frente. Não tínhamos visibilidade mas a trilha estava (mais ou menos) batida no chão, então a princípio não atentamos para a bússola. A trilha cruza um pequeno vale em direção nordeste e acaba. Antes disso há um bifurcação. Voltamos à bifurcação e vimos que o outro ramal da trilha faz uma pequena volta e segue na direção dos 235 graus. Aí não tivemos mais dúvidas, era por lá mesmo. É engraçado como o senso de direção se perde com pouca visibilidade e depois de algumas curvas. Em certos momentos podíamos jurar que estávamos voltados para uma direção quando na verdade encarávamos a direção quase perpendicular.

Eu havia traçado no GPS um caminho pelo que parecia ser no Google Earth o trajeto mais limpo para cruzar a Colina Verde em direção ao afluente do Forquilha, mas não o utilizamos. Aliás, nesse trecho não utilizamos o GPS, que serviu mais para registrarmos as chegadas nos pontos-chave da caminhada e para coletar o tracklog. Observando com atenção, era possível seguir a trilha levemente batida. No chão há gretas enormes e muito fundas encobertas pela vegetação. Sabemos de gente que já caiu ali ficando preso pela mochila. Pouco depois das 07h00 a carta topográfica e a bússola contrariavam totalmente a intuição e nos diziam que estávamos perto do afluente do rio Forquilha no qual deveríamos entrar. Estudadas com calma e atenção, as elevações e vales que a neblina às vezes nos permitia enxergar batiam perfeitamente com a carta topográfica. Em dado momento foi possível visualizar uma pequena espinha de montanha que corria sentido noroeste à nossa esquerda, uma maior à frente que descia sentido norte-sul, e mais adiante um pedaço da encosta do Arapongas. Tivemos certeza de que se tratavam das espinhas que formam os vales do afluente e do Rio Forquilha, respectivamente. Pela primeira vez naquele dia estávamos certos de onde estávamos e para onde íamos. Ali eu sabia que qualquer riacho nos levaria para o Forquilha, que é o principal rio da região.

OS AFLUENTES E O RIO FORQUILHA

Descendo um vale com mais um tipo de curioso de vegetação, chegamos às 7h31 a um leito seco de rio. Descemos um pouco por este leito e finalmente chegamos ao afluente do Forquilha que procurávamos. Ali sim, nenhuma foto é capaz de capturar a beleza do lugar.

Pouco mais de 200 metros depois de onde entramos no afluente, há outro leito de riacho chegando, e ali há uma fita da travessia Alpha-Crucis. Provavelmente alguns grupos entram por ali, fazendo um caminho ligeiramente diferente do nosso.

Fomos percorrendo o afluente. Em certo momento antes de atingir o Forquilha, esse afluente tem um trecho de pedras gigantes e contínuas com um tom vermelho enferrujado bem marcante. Sabíamos que não deveríamos entrar ali, pois é tão escorregadio e íngreme que fica quase impossível avançar com segurança. Exatamente no momento em que as pedras vermelhas tornam-se visíveis, surge um riacho paralelo à esquerda, e foi por ali que seguimos até que ele desembocasse no Rio Forquilha, onde chegamos às 8h57. Descendo o Rio forquilha, o trecho mais interessante é uma cachoeira de cerca de dez metros que temos de transpor. É necessário todo cuidado, pois a rocha molhada é bem escorregadia. Infelizmente as fotos tiradas de baixo ficaram borradas.

No mapa está claro: quando o Rio Forquilha faz a curva para a direita, é hora de sair do rio à esquerda e começar a subir a encosta buscando a cela entre o Tangará e o Cotoxós. Além disso, sabíamos que haveria duas fitas amarelas na margem esquerda e uma na margem direita, sinalizando o ponto exato de saída. O que não sabíamos (e não percebemos no mapa) é que existe uma curva à esquerda antes daquela em que deveríamos sair. Como as nuvens impediam a visualização de qualquer tipo de referência visual fora do rio, ficamos procurando a saída depois da primeira curva. Até que eu peguei o GPS e pude constatar que ainda faltavam cerca de 150 metros para a "verdadeira" curva à esquerda, cujo ponto eu havia marcado do Google Earth antes de sair de casa. A diferença de ângulo no fluxo do rio entre um trecho e outro é extremamente pequena, dificultando uma decisão baseada na bússola sobre estar ou não no ponto certo. Por isso um GPS na primeira vez que se realiza esse percurso é importante.

SUBINDO A ENCOSTA EM BUSCA DA CELA

Andamos mais alguns minutos e finalmente, às 10h30, achamos a fita indicando a saída à esquerda. Uma etapa importante da travessia havia sido concluída e estávamos prestes a subir o conjunto que divide as águas do Rio Forquilha e do Rio Mãe Catira, conjunto formado pelos morros Tangará, Cotoxós e Arapongas. O objetivo era chegar à cela entre o Tangará e o Cotoxós para então descermos pelo Rio Mãe Catira desde a sua nascente até a trilha que leva ao Marco 22 da Graciosa. Algumas dezenas de metros acima da saída do Forquilha, caímos no leito de um riacho, o qual fomos subindo acompanhando a marcação recente com fitas amarelas. A dica do Julio era tender sempre à esquerda depois que o riacho sumisse, mesmo contrariando a intuição, senão cairíamos no cume do Tangará.

A procura pelo ponto de cela entre o Tangará e o Cotoxós é sem dúvida o momento mais crítico da travessia em termos de orientação, sem contar o mato fechado, as unhas-de-gato, o bambuzal denso, os caraguatás gigantes e os troncos impedindo a passagem. Não há rio nem trilha que guie, a angulação da encosta vai mudando e nunca temos certeza de estar ou não indo na direção certa. Por vezes uma silhueta de cela fica visível no fundo da floresta, mas as dimensões das coisas são grandes demais e é difícil navegar grandes distâncias ali com certeza do que se está fazendo. Eu tinha marcado no GPS os cumes do Tangará e do Cotoxós, e de vez em quando calculávamos a proporção da distância da nossa localização até cada um deles para tentarmos nos localizar no mapa. Isso também garantiria que percebêssemos caso transpuséssemos a encosta para o outro lado.  Num dado momento, o Joel estava convicto que deveríamos caminhar à direita seguindo a curva de nível e logo alcançaríamos a cela. Eu e os outros preferíamos subir mais, pois receávamos ainda estar em altitude mais baixa do que a cela e, se isso fosse verdade, navegar à direita em curva de nível nos faria ir indefinidamente na direção do Cotoxós e depois do Arapongas. Nesse momento o Joel se separou do grupo, avançando um pouco mais por baixo. Mantivemos contato por voz o tempo todo, e logo o Joel gritou empolgado que havia achado a cela. Corremos todos na direção de onde vinha a sua voz, e lá estava a cela entre o Tangará e o Cotoxós, um trecho plano dividindo as duas encostas, e no meio dele o tubo de PVC contendo o livro de assinaturas. Corremos para baixo, ou seja, estávamos mais altos do que a cela.

Éramos o terceiro grupo a assinar o livro naquele ano. O primeiro foi um grupo que realizou a travessia no carnaval e o segundo foi a dupla do Alpha-Crucis, que realizou a Ciririca-Graciosa acompanhado de mais uma pessoa. Quando fui sacar minha câmera para documentar o momento percebi que ela havia caído. Ela provavelmente caiu pouco antes de alcançarmos a cela, num trecho cheio de cipós. Pensei em voltar para procurar, mas seria muito mais difícil do que procurar uma agulha em um palheiro. O melhor era descansar um pouco, assinar o livro e tocar pra frente. Eram 12h02, e tínhamos um Mãe Catira inteiro pela frente.

O RIO MÃE CATIRA

Eu ainda tinha uma única curiosidade com gosto de preocupação: será segura a transposição do Salto Mãe Catira? Fora isso, eu sabia que não haveria percalços, pois parte da caminhada seria sobre o trecho mais seco do Mãe Catira e a outra parte (depois do Salto) eu conhecia muito bem das incursões anteriores. Minha aposta era de que concluiríamos a travessia às nove da noite, e as apostas de todos os outros eram mais otimistas.

O leito do Rio Mãe Catira começa bem alto na encosta sul do Tangará-Cotoxós, a poucos metros da cela. Ali é a nascente deste que é o principal Rio da região. Que me corrijam se eu estiver falando besteira, mas digo que estávamos sobre um importante divisor de águas, já que o Mãe Catira desce a serra desaguando logo ali na Baía de Antonina, enquanto o Forquilha cai no Iguaçu e cruza o sudeste do continente no Rio Paraná e no Rio da Prata, caindo no Atlântico apenas na Argentina.

Na descida da encosta há alguns trechos recém desmoronados que podem ser perigosos. Evitamos ao máximo nos apoiar em pedras que estivessem presas a paredes que apresentavam desmoronamento recente. Aos poucos o Mãe Catira vai ganhando volume e ficando plano. Passam-se alguns trechos com troncos de árvores assustadoramente grandes caídos sobre o rio. Em raros momentos vale a pena subir a encosta e ir pelo mato. Paramos para almoçar por volta das três da tarde e eu fiz um cálculo deliberadamente pessimista concluindo que atingiríamos o Salto Mãe Catira por volta das 18h00. Assustados com a notícia, devoramos os macarrões instantâneos e nos aprontamos em pouco mais de vinte minutos. O pessimismo do cálculo surtiu efeito ainda na marcha, que foi muito mais rápida a partir daí, principalmente porque deixamos de evitar de molhar os pés. Às 16h12, mais de uma hora antes do previsto, alcançávamos o cânion de diabásio.

Apesar de não saber nada de geologia e geografia física, vou expor o que entendo sobre o cânion e o Salto Mãe Catira, novamente sob o risco de estar falando besteira. Se olharmos no Google Earth para a região do Rio Mãe Catira, fica clara a presença de uma saliência no relevo, uma espinha contínua e baixa que cruza a serra desde o planalto de Curitiba até a Baía de Paranaguá. Segundo um relato da travessia que li, escrito pelo montanhista e geógrafo físico Pedro Hauck, essa saliência está no encontro de dois tipos de rocha: o diabásio no lado de cima e outra (provavelmente migmatito) no lado de baixo. O Rio Mãe Catira fura essa saliência formando um cânion. Logo depois, no desnível formado pelo encontro, está o Salto Mãe Catira. Creio que essa saliência possa ser ser considerada a divisão entre as serras do Ibitiraquire e da Farinha Seca.
 
Seja como for, o paredão do cânion é um tipo de formação rochosa muito interessante e diferente. Esse é provavelmente o lugar mais exótico em que passamos durante toda a travessia. De dentro do cânion vê-se que dali pra frente a caminhada é por uma região mais baixa, e nesse desnível está o Salto Mãe Catira. Logo que chegamos ao topo do salto, olhamos à esquerda e confirmamos: realmente há uma passagem para a encosta mato adentro. Nosso receio era ter que desescalar pelo lado cachoeira.

A TRILHA DO MARCO 22 DA GRACIOSA

Às 16h55 estávamos no pé da cachoeira, prontos para seguir o último trecho sobre o Rio Mãe Catira. O rio é bem plano e bastante bonito nesse trecho, principalmente se houver sol. Andamos quase uma hora sobre o rio e às 17h49 entramos na trilha. Ali já comemorávamos a conclusão da travessia. Faltavam ainda duas horas de trilha, mas naquele momento a presença de uma trilha já era considerada luxo.

A encosta que leva do Rio Mãe Catira à Estrada da Graciosa é bastante íngreme, e por isso muito cansativa. O que deveria ser o trecho mais fácil da travessia foi na verdade o mais cansativo, sem a menor dúvida. Depois de subir e descer o Ciririca, cruzar colinas e vales, transpor cachoeiras e montanhas sem trilha e percorrer o Mãe Catira desde a sua nascente, a subida ao Marco 22 foi o primeiro momento em que nos sentimos cansados. A maior parte do curto trajeto de duas horas foi feita à noite. Eu possuía no GPS o tracklog da trilha, que às vezes fica um pouco confusa. Por esse motivo, assumi a frente do grupo quando anoiteceu, e quando eu olhava para trás via somente cinco lanternas movendo-se de forma arrastada pela floresta. Eu sentia a coluna, o Joel sentia os joelhos, o Roger sentia os ombros, e íamos todos subindo no passo mais lento de toda a travessia. Foi também a primeira vez durante a travessia que me escorreu suor da testa, provavelmente porque a neblina deixava a floresta extremamente úmida.

Eu costumo dizer que o montanhismo é a atividade que melhor nos mostra quão curto é um dia. O tempo passa muito rápido, e se você bobear a noite te pega. Às vezes alguém pergunta a hora, você responde e a pessoa repete a pergunta pensando que você respondeu a hora prevista para chegar em algum ponto mais adiante. "Não compadre, AGORA são 18h30, acredite se puder". Mas na subida ao Marco 22, no fim da travessia e quando sabíamos que não havia mais motivo para pressa pois todos os obstáculos haviam sido transpostos e já havia anoitecido, o tempo passou mais lento do que quando eu tinha nove anos e estava assistindo a aulas terrivelmente chatas na escola. Entre uma olhada e outra no relógio, passavam-se dois, três minutos. Ao passo que quando descíamos o começo do Mãe Catira, no começo da tarde, cada olhada no relógio era um salto de pelo menos 40 minutos no tempo.

Às 19h55 chegamos ao Marco 22 da Estrada da Graciosa, 13 horas e 25 minutos depois de iniciar a jornada do segundo dia na Colina Verde, após dois dias de caminhada por ambientes exóticos e desafiadores na parte mais preservada da Mata Atlântica brasileira e uma noite de chuva, apreensão e preocupação. A neblina estava tão espessa que ficou difícil dizer o que era pior: foto com o ou sem flash.
 
Chegada ao Marco 22 da Estrada da Graciosa

Caminhamos os 800 metros até o mirante do alto da serra. De lá, eu, o Thiago Mayer e o Roger continuamos subindo a Graciosa sem as mochilas em busca de sinal de celular. Em dado o momento o Roger conseguiu mandar uma mensagem  mas não conseguiu ligar. Mais acima ligou em casa e constatou que seu pai havia visto a mensagem e já estava a caminho. Depois de quatro meses de espera, incursões, estudos e planejamentos, havíamos concluído em dois dias a Travessia Ciririca-Graciosa.

AGRADECIMENTOS
·    Ao Julio Fiori, pela receptividade e pelas dicas precisas que foram essenciais para o sucesso da empreitada;
·    Ao pai do Gustavo, que levou o Gustavo, o Thiago Mayer e o Carlos até a Fazenda Bolinha;
·    Ao Leonardo, que levou o Joel, o Roger e a mim à Fazenda Bolinha;
·    Ao pai do Roger, que nos resgatou na Graciosa e deixou todos em casa;
·    Ao Francis Sarturi, que se ofereceu para o transporte caso fosse necessário;
·    Ao Guilherme Peron por acordar às 5h30 para nos fornecer a previsão do tempo;
·    Ao Thiago Ferreira e ao Carlos Toledo por participarem das incursões de reconhecimento.
 

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