Travessia Perus – Polvilho

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Perus é um distrito situado na zona norte da cidade de São Paulo que nasceu a beira duma rota tropeira. Contudo, o distrito ganhou destaque mesmo por ser um dos extremos da histórica “E.F Perus-Pirapora” e por abrigar a primeira fábrica de cimento do país, a Cia Brasileira de Cimento Portland Perus, q por sua vez cedeu material pra construir metade da Metrópole de São Paulo. Ao lado dos “Fornos de Ponunduva” e o “Morro da Gato Preto”, esta é mais uma caminhada de cunho histórico q palmilha os trilhos do bucólico trecho entre Perus e Polvilho, se embrenha nas ruínas “faraônicas” da Portland e finaliza rasgando o miolo “proibido” do maior parque municipal de São Paulo, o Anhanguera.

Saltei na Estação Perus por volta das 7:40hr, após tranquila e rápida viagem pela linha Rubi da CPTM. Aquela manhã de domingo encontrava-se coberta de opaca nebulosidade, q foi se dispersando no decorrer do período com promessa de dia limpo e quente pela tarde. Era segunda vez q pisava em Perus e já sabia previamente o trajeto inicial da empreitada daquele dia. Da estação basta sempre tocar pra noroeste, e isso se consegue tomando uma estreita passagem que dá acesso aos viadutos sobre a estação. Dali de cima se tem uma bela vista de Perus, assim como o recorte da silhueta da Mantiqueira logo atrás, e da Pedreira de Taipas.

Perus é um distrito situado a noroeste da Metrópole paulistana e seu nome se deve aos deliciosos perus que uma senhora preparava aos tropeiros que passavam por ali. Na beira de caminho tropeiro, a região cresceu timidamente, fato que somente ocorreu somente muito tempo depois. Graças a expansão ferroviária e á grande oferta de terras, em 1890 Perus foi escolhida pra abrigar a fábrica de papel “Cia Melhoramentos”, que passou a plantar pinheiros e eucaliptos na região pra atender a sua produção. E em 1914, um ramal da estrada férrea (Perus-Pirapora) impulsionou a instalação duma fábrica de cimento, outro grande negócio local no bairro: a Companhia Nacional de Cimento Portland-Perus, inaugurada em 1926 e responsável pela geração de emprego e renda na região durante 60 anos. Projetado por um grupo de empresários para ligar a Estação de Perus ao município de Pirapora, o ramal acabou sendo desviado para Cajamar, onde existiam grandes reservas de calcários considerados bons para a produção de cimento e cal, a matéria-prima ideal para a fábrica instalada 12 anos mais tarde.

Pois bem, do topo do viaduto o sentido é intuitivo já q basta cruzar a entrada duma propriedade que bordeja o pé dum morrote bem baixo. A rua é precariamente asfaltada e tangencia um antigo casarão abandonado de arquitetura bem bonita, mas incrivelmente largado ao descaso. É apenas ao fazer a curva q temos o primeiro vislumbre das antigas instalações da “Portland-Perus”, elevando suas majestosas estruturas q mesclam ferro e concreto em meio ao nevoeiro matinal. Já tinha passado aqui antes e prometido a mim mesmo q um dia entraria ali pra fuxicar o local. E o momento era aquele.

Seguindo sempre pela via principal e ser recebido por estridentes cachorros, desvio da entrada principal da fábrica abandonada (onde seguranças de idade conversam animadamente) e bordejo os limites da propriedade agora por precária estrada de chão, tocando sempre pro oeste. Enqto isso, o rumorejo dum espumante Rio Juquery, enfiado num vale assoreado a minha direita, embala a trilha sonora daquela manhã novamente silenciosa. Pois bem, é aqui q examino bem a cerca a minha esquerda e busco algum lugar de fácil passagem, local este encontrado sob a forma dum buraco feito a força, logo adiante. Me esgueiro sorrateiramente e pronto, estou dentro das dependências fábrica. Pra ser exato nos fundos do seu limite oeste e bem longe da “segurança”. Uns vagonetes enferrujados tomados pelo mato ao lado da decrépita casa de controle de tráfego servem como referência.

Daqui em diante td cuidado é pouco pois a ideia é conhecer sem fazer barulho e, principalmente, sem atrair a atenção dos cachorros. Indo em direção ao miolo do lugar, cruzo vestígios ferroviários q em mais duma ocasião me lembraram a estação de Paranapiacaba, pra dar nas proximidades dos enormes galpões onde era estocado o cimento produzido. Enormes chaminés apontando pro ceu indicam estruturas onde o moinho/silos recebiam a mistura de calcário e argila crua pra depois seguir em direção aos fornos rotativos. Estes correspondem as enormes estruturas metálicas tubulares, agora corroídas pelo tempo.

Mergulhando cada vez mais no que praticamente era uma cidade, logo me vejo no meio do q suponho ser o setor próximo da jazida, onde um gigantesco galpão me recorda as velhas cidades detonadas do Leste Europeu. Desvio dum enorme buraco onde parecia eram retirados minérios q depois passariam pelo britador e, posteriormente, num não menos menor deposito de minérios. Tudo ali tinha dimensões superlativas e, portanto, td cuidado era pouco. O chão mtas vezes escorregadio, inúmeras fitas de isolamento sinalizando perigo assim como lacônicas placas escancarando “Cuidado – Buraco” são recorrentes.

Perambulando pelas estruturas adentro no q parece ser os moinhos verticais, as torres de pré-aquecimento e os resfriadores, onde tropeço com dois cavalinhos solitários deixando suas sujeiras no meio disso tudo. Procuro escadas e não encontro, boa parte das q eram metálicas foram serradas de modo a impedir acidentes, e as outras de concreto foram devidamente obstruídas com mesmo intuito. Pra aceder os níveis superiores da fábrica é  preciso escalaminhar as paredes, coisa q não é mto difícil, pois está cheio de buracos no concreto q auxilia nisso. Uma vez no primeiro nível as escadas são única alternativa de dar continuidade a ascensão, mas aqui as escadas estão inteiras… ou pelo menos demonstram sê-lo. Subindo no teto tenho perspectiva privilegiada dos outros setores, principalmente dos silos de cimento, mas logo percebo q corro risco real ali. Isto pq o chão q piso aparenta ser fino feito gelo e demonstra não sustentar mto peso, fato corroborado pelos buracos quebrados ao meu redor. Claro q vazo dali rapidamente, redobrando cuidado.

Volto pro chão e me dirijo aos silos de cimento, onde fuxicando aqui e ali encontro o labirinto de escadas rotatórias q dá no alto deles. Dali realmente se tem uma panorâmica de td fabrica, desde as jazidas, abastecimento de água, miolo da fábrica, setor logístico e burocrático e da linha férrea, q escoava td produzido. Mas o mesmo q a fábrica apontava pro céu mergulhava ao fundo da terra, na forma de incontáveis túneis, fossos e buracos fundos e inimagináveis. Tentei alcançar alguns deles, mas não recomendo. Sem lanterna, fui apenas até onde a luminosidade natural alcançava, pois boa parte dos “subterrâneos” da fábrica foi dinamitado ou entupido de água ou terra. Ainda assim ainda sobram muitos buracos passiveis de exploração pois o lugar é literalmente um “queijo suíço”!

Após o clinquer e atravessar estruturas q me lembraram muito a fábrica onde reside o Freddy Krueger, cheguei no q parecia ser o setor administrativo. Cadeiras e mesas ainda empilhavam-se ao lado dum decrépito cofre, na mesma medida em q uma sala de pesquisas ainda tinha espalhados saquinhos pequenos com amostras de td tipo de cimento!! Já no setor de distribuição ainda é possível encontrar a ensacadeira e muitos exemplares de sacas espalhados no chão, onde o produto era finalmente embalado e encaminhado ao país todos. Desnecessário dizer q td a fábrica cheira a cimento e cal, e seu pó reveste boa parte do chão de td aquele perímetro.

Explorar aquela “cidade abandonada” tava bom demais, e a cada curva q fazia havia mais uma sala, corredor, buraco, túnel ou galpão q me levava a outra, sucessivamente. Claro q fui memorizando cada passo dado pois se perder ali não é tarefa difícil. Creio q rodei aquilo lá por três horas facilmente, sem conhecer nem metade. Foi qdo alguém me chamou atenção ao longe. Era o segurança de plantão e com ele tive boa prosa, após me desculpar pelo fato de estar ali. Claro q fui repreendido, mas assim q quebrei o gelo a conversa fluiu naturalmente, pois tinha muitas coisas a perguntar pro cara, q não devia ter mais de 25 anos. Me disse q naquele horário logo chegaria um pessoal da polícia (ou exército, sei lá) treinar táticas de guerrilha ou algo do gênero (vestígios de paintball denunciam isso), e que não gostam de gente de fora. Fora isso, contou após o fechamento da fábrica (1987) passou a pertencer ao Estado, q por sua vez pretende transformá-la num centro cultural. Mas até lá o lugar está largado as moscas, sendo apenas frequentado por intrusos e q a segurança é pra evitar que pessoas se acidentem, coisa comum ali, principalmente a noite. Entre estes frequentadores ilegais estão principalmente casais jovens de Perus (em busca dum motel “diferenciado”) e crianças que brincam nas instalações e são as principais vítimas por caírem facilmente em buracos estreitos ou dos marimbondos, com ninhos espalhados as pencas pela fábrica.

Me despedi do segurança prometendo não pisar mais lá e prossegui minha pernada, coisa das 11hrs, agora com o sol radiante e um céu limpíssimo pairando sob minha cachola. Daqui retomo meu rumo pela antiga estradinha, q ainda acompanha os trilhos da antiga linha férrea. Deixando a fábrica pra trás, passo pelos vestígios da antiga vila operária (igualmente abandonada) que mais parece um presépio tomado de mato, e finaliza no que parece ser uma residência. Mas não tem erro, ao lado dela percebo uma trilha em meio ao pasto dando continuidade á precária estrada. Em tempo, durante todo tempo tenho a companhia do Rio Juquery, marulhando suas espumosas águas a minha direita. Uma trilha escondidinha leva as suas margens, onde algumas macumbas dividem espaço com muito lixo depositado pelas pessoas, desde televisões até sofás.

Sempre pela supracitada vereda em meio ao pasto, termino passando por baixo da Rod. dos Bandeirantes (SP-348), e dali em diante meu horizonte se abre e sou recebido pelas corocovas abauladas do Morro da Pedreira, a noroeste. A pernada prossegue tranquila pela tranquila vereda, cruza algumas casinhas de alvenaria (onde aparentemente moram algumas famílias) a margem da antiga rodovia e tem continuidade sentido oeste, sempre em nível. O aroma agridoce e intenso de ameixas inunda as narinas e logo percebo voçorocas do pé ornando a bucólica vereda.

Mas logo adiante, por volta das 11:45hr, desemboco numa estrada de chão maior q cruza perpendicularmente os trilhos. Claro q ignoro esta via e me mantenho sempre nos trilhos, tocando pra oeste. Mergulho então na floresta e avisto meu caminho, obvio e perceptível, lindamente ornado de bijus e marias-sem-vergonhas, tendo sempre o Rio Juquery marulhando mansamente a minha direita, ora próximo ora afastado. Caminhada agradável, desimpedida e praticamente sem desnível algum, emoldurada pela mata espessa q filtra a luz natural, q ilumina minha rota q praticamente segue sempre em sua maior parte em linha reta. Não raramente este rolê me lembrou o “ferrotrekking” Angra-Lidice, principalmente nos trechos onde os trilhos se embrenhavam no meio dos morros, com ambos lados como que cortados a prumo na mais pura rocha.

E assim a pernada se desenvolvou durante um bom tempo, alternando trechos retilíneos com breves curvas na encosta de morro, como q desviando pra sudoeste. Trechos de mata fechada começam a se alternar com descampados abertos, onde a mata nos trilhos parecia se mostrar mais crescida mas sem nenhum impedimento pra prosseguir em frente. Brejos, banhados e pequenos afluente do Juquery tb pontilham este setor da via férrea, assim como a presença maior de sujeira de capivara ente os dormentes. A frequência de arvores frutíferas a margem da via é maior, e muito pé-de-ameixa disponibiliza o fruto a quem tiver sem lanche na mochila.

Após andarilhar pouco mais de uma hora nesse compasso, eis q me deparo com o q parece ser um vilarejo abandonado, mas na verdade é um pequeno centro de abastecimento de água dos antigos trens q circulavam por aqui. Um único senhor estava ali naquele momento e se surpreendeu com minha visita ali, já q ele se apresentou como segurança dali. “É que tem gente q vem aqui remover metal das composições!”, explica ele. Entre outras particularidades interessantes, o senhor revela q é ali q estão tds os trens da antiga “Estação Gato Preto”, tanto q me esbaldei de bater fotos das antigas Maria Fumaças, relíquias inestimáveis do “boom” ferroviário paulista. Contudo, o tiozinho não se conformava deste q vos fala chegar ali a pé. “É confuso o caminho pra chegar aqui, seja pelos trilhos devido ao mato, seja pela estrada q rasga o reflorestamento do setor norte do Parque Anhanguera!”, completou. Perguntei das condições da ferrovia dali em diante e ele deu de ombros. Era ver pra crer. Simbora, não?

Após pegar água numa bica natural me despedi do tiozinho, q pelo visto não via ninguém ali faz tempo e tava doido pra esticar o dedo de prosa, retomei a jornada pelos trilhos ainda sentido oeste. Mas a previsão do tiozinho logo se cristalizou e voçorocas e mais voçorocas de capim-navalha e capim-velcro inundaram a via férrea dali em diante. Bem q tentei “nadar” naquele mar de vegetação mas logo desisti. Não por não portar facão mas sim pq isso apenas me atrasaria mais e mais, e passar noite no mato tava fora de cogitação. Quem sabe numa próxima visita, sei lá…

Dali então rasguei mato pra esquerda e imediatamente cai numa precária e estreita estrada de terra. Ao invés de retornar a última “estação do tiozinho” decidi sair dali me valendo unicamente da carta e bússola, tomando sempre a via que fosse no sentido desejado, ou seja, sul ou sudoeste. E assim foi, comecei a bordejar em suave aclive um enorme morrão cuja espessa vegetação secundaria se mesclava a reflorestamentos de eucaliptos. Contornado o morro teve sequência a descida onde cai num vale fundo onde havia água e a vegetação era mais exuberante, correspondendo a mata ciliar.

Tropecei então com uma, duas, três e quatro bifurcações e encruzilhadas, sempre tomando a via q fosse na direção desejada. O fato da via tomada as vezes nem sempre ser a mais batida me deixava com a pulga atrass da orelha, mas ainda assim optei por confiar no meu bom senso e navegação. “Aqui até eu me perco quando venho de carro pela estrada! O pessoal ta abrindo muita picada transversal!”, lembrei do tiozinho ter avisado. De fato, estava palmilhando o miolo “proibido” do Parque Anhanguera, o maior parque municipal de São Paulo, sendo q apenas 5% é aberto a visitação.  E eu tava nalgum cafundó dos outros 95%. Claro, as paradas eram breves e apenas pra conferir rota, pq os mosquitos estavam ensandecidos por sangue fresco. Na pior das hipóteses teria q retornar a estação, isso se lembrasse do caminho e das bifurcações tomadas..

O fato é q após andar algo de hora e meia, finalmente desemboquei no q pareceu ser a estrada principal do parque, onde dois guardinhas me olharam com espanto, tipo se perguntando de onde diabos havia saído. Me encheram de perguntas e ao saber q vinha da ferrovia não acreditaram. Disseram q até eles se perdem no emaranhado de estradas no meio do parque, mas me pareceu que engoliram o fato de eu estar “perdido”, me deixando sair pela portaria principal. Na verdade, aquele setor é reservado e restrito apenas pra preservação, uma vez q td o parque já fora uma antiga fazenda de reflorestamento, o Sitio Santa-Fé. Quem sabe um dia me anime a visitar o parque “oficial”, situado do outro lado da estrada no sentido de Perus…

Após andarilhar um tiquim pela “Estrada de Perus”, foi a vez de pisar o asfalto da Rodovia Anhanguera (SP-320), onde chinelei o trecho restante de 4kms entediantes ate Polvilho com sol rachando o côco, concluindo assim parcialmente o rolezito proposto pouco antes das 16hr. Em Polvilho, distrito menor de Cajamar, fiz questão de encostar por meia hora num boteco e na sequencia tomei condução de volta pra Sampa, envolto no mundo dos sonhos.

Resumindo, esta segunda visita a Perus foi bastante proveitosa no quesito caminhada, seja ela o tipo q for. É possível dar continuidade a pernada pelos trilhos da “EF Perus-Pirapora” além de Polvilho, mas vá munido de um bom facão, uma vez q o trecho q rasga o Parque Anhanguera se encontra totalmente tomado pelo mato. No parque propriamente dito é possível dar um rolê pelo seu emaranhado interno de estradas de reflorestamento, mas desde q se saiba sair de lá depois. E com relação a Fábrica Portland fica a dica de tomar muito cuidado ao se embrenhar em seu interior, pois além de proibido boa parte de suas estruturas não demonstram ter estabilidade suficiente e racham ao menor contato. Além de levar uma boa headlamp pra bisbilhotar o labirinto de túneis q percorre o lugar. Noutras, uma aventurina q não deve em nada as tradicionais explorações espeleológicas.

 

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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