Trekking ao acampamento base do K2 – Parte 3

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Acordo justo às 4:30 com vontade de fazer xixi e saio da barraca. Nem preciso de lanterna. A lua, embora descrescente, ilumina bem ainda os campos ao redor. Volto pra tenda e durmo até as 6:00.


Por Beatriz Azevedo – Cuca de Prata

Leia a Segunda Parte

Acordo em definitivo com o zunzum dos porters levantando o acampamento para seguirmos até Korophon. Muita discussão enquanto pesam as bagagens. Os carregadores cuidam atentamente a balança e fazem aquela algazarra quando os 25 kg permitidos são ultrapassados.

Bem atrás de nosso acampamento, há um enorme paredão de granito cor de ferrugem clara com veios horizontais mais escuros. Uma beleza! O dia está lindo, sem nuvens, calor legal.

A lua, ainda visível, no azul claro do céu. Assim, às 7 e 30, do dia 24 de junho do ano de 2008, tem início o meu trekking até o acampamento-base do K2. O caminho é quase plano acompanhando o curso do rio Braldu que, largo, agora, se espraia, calmo, entre dois contrafortes de montanhas. Dura pouco, porém, tal mansidão porque vem engrossá-lo o rio Biafo, voltando a ser mais uma vez um indomável caudal.

De um lado, os contrafortes são pura pedra desnuda, do outro a rocha está coberta por grama verde: parece veludo. Encontro no caminho um grupo de espanhóis que vão escalar o Gasherbrum I, também conhecido como Hidden Peak (8.068m). Entre eles, Carlos Soria, um escalador de 69 anos!! Após sua aposentadoria, lançou-se de corpo e alma na escalada, alcançando o topo de vários 8 mil, entre eles o K2. Este ano, esteve com Niclevicz no Makalu e exibe, orgulhoso, um chaveiro, em formato de mosquetão, presente do brasileiro. Há anos vem ao Paquistão. Conhece todos os lugares onde há montanhas desafiantes para escalar. Estou adorando conhecê-lo. Não demora muito, se despede de mim – que peninha! -, caminhando em passo apressado. Pretende alcançar Jhola antes de a temperatura se elevar em demasia. Alcança-me, um pouco depois, outro espanhol, amigo de Carlos, também coroa, Alfredo. Batemos papo, e ele conta que, no Equador, há ótimas montanhas e vulcões pra fazer trekking, destacando, entre eles o Cotopaxi, com quase 6 mil metros, cuja cratera, no topo, apresenta-se rodeada de neve.

Um pouco depois de atravessarmos uma tremelicante ponte de madeira, nos despedimos alegremente. O passo dos espanhóis é rápido, estão noutro ritmo, bem diferente do meu. Vida boa essa! A paisagem é linda, já dá para se perceber algumas montanhas situadas no Baltoro Glaciar. No meio da aridez do caminho, uma surpresa: arbustos floridos de rosa. Tão insólito esse colorido no meio do bege do terreno. Agora, 11:00, chegamos em Korophon, um lugar onde também é permitido acampar.

Há duas casas de pedra e árvores fornecendo um sombreado aprazível. Niaz prepara o almoço e sou servida enquanto os porters comem mais adiante. Ali vem me fazer companhia e almoça comigo. A refeição consiste em sardinha, queijo polenguinho, paratha, geléia de apricot, sopa de massa e chá verde. Partimos de Korophon às 12:10. O trajeto se faz praticamente costeando o rio Jhola. Às vezes a trilha se eleva a 200 metros acima do nível das águas. Destaca-se, na paisagem, a agulha fina de granito do pico Choricho (6.756m), tal qual um dedo indicador, apontado verticalmente em direção ao firmamento.

Perto do acampamento de Jhola, vêem-se nuvens que, semelhantes a grandes chumaços de algodão, recheiam de branco o azul, agora, forte do céu. A areia perto do rio é fina e branquinha tal qual a do mar….pode?!

Há lindos blocos de granito, listrados de branco e azul claro, polidíssimos pela ação milenar da água. O rio apresenta longos trechos secos em seu leito, onde afloram claros e miúdos seixos. Segundo Niaz, devido à baixa precipitação pluvial durante o verão. Atravesso outra ponte de madeira e alcanço a outra margem do rio Jhola Daqui se vê o pico Bakhor Das (5.809m), uma estrutura rochosa que lembra o Pão de Açúcar.

O fio do telefone satelital vem nos acompanhando desde Askole e Ali confirma que se estende até Concórdia. O movimento dos porters na trilha é incessante: o vai e vem entre Askole e os campos bases, situados no entorno de Concórdia, prova que a temporada de escalada está no seu auge. Bem diferente dos guias brasileiros, chilenos, argentinos e peruanos que disparam na frente como se fossem tirar a mãe da forca, sou escoltada por Ali e Niaz. Um vai à frente enquanto o outro segue atrás. Às vezes, Ali e eu batemos papo, e eu fico curtindo o gentil paquistanês. Quando fala comigo, seu tom de voz é baixo, faz inclusive olhinhos sedutores, hihihi. Já quando se dirige aos porters, sua voz sobe dois tons e se torna enérgica, sem ser, porém, áspera. Muito hábil este guia.

Se curti alguns temores, antes de iniciar esta jornada, por estar sozinha no meio de tanta testosterona – minha expedição compõe-se de 12 homens, entre carregadores, cozinheiro e guia – sinto-me, agora, absolutamente segura. Chegamos às 14:45 em Jhola onde acamparemos. Agradável surpresa me espera: o lugar possui uma infra de sanitários, banheiros, pias e até postes de luz, que só se repetirão, como fico sabendo, posteriormente, em mais dois acampamentos: o de Paiyu e o de Urdukas. Os demais acampamentos não terão tal “conforto”. Os espanhóis já lá se encontram. Conversam e riem muito, enquanto se abrigam da forte canícula, empunhando enormes guarda-chuvas pretos.

Conversando com um jovem espanhol, pertencente à expedição de Soria, fico sabendo que, este ano, há pouca neve nos picos, motivo por que os escaladores estão esperançosos de fazer o cume em suas almejadas montanhas. Quando retorno ao Brasil, me inteiro de que a expedição de Soria não conseguiu ultrapassar o acampamento 2 do GI, devido às péssimas condições climáticas. Contrariando a otimista expectativa manifestada pelas expedições, a temporada de escalada em Concórdia, foi tragicamente coroada com a morte, no K2, de 18 alpinistas. dizimados com a queda dum serac.

Afora a epedição espanhola, acampa, também aqui a franco-iraniana. No GII, já está instalada uma expedição de portugueses e uma outra, italiana, vem a caminho. A quantidade de equipamento e comida que esta gente trás é algo. Também, pudera, a maioria fica até final de agosto quando encerra a temporada de escalada. Estou na barraca lendo e apreciando uma montanha com o topo coberto de neve daqui de dentro. São quase 19 horas. Vai ter quiabo com cebola no jantar. Adoro tanto um quanto o outro. Estou cansada. Sinto que vou me apagar cedo, tão logo tenha jantado.

Amanhã teremos uma longa caminhada de mais de 20 km até Paiyu. Pois não é que a fitinha branca do Sr. do Bonfim, atada em meu pulso há 4 anos, desatou ontem em Askole? Meus desejos se realizarão? “Inshalla”, como saúdam em urdu, ou na tradução brasileira: oxalá, se realizem!

Continua…

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