Trekking ao acampamento base do K2 – Parte 6

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Após uma noite mal dormida, desperto às 6 da manhã. Nem a quantidade de roupas vestidas, tampouco o saco de dormir, foram suficientes pra me aquecer satisfatoriamente. Neste tipo de clima, tem de ser um de –10º C e o meu é de -5º C.


Por Beatriz Azevedo

Veja a parte 5 do relato.

Parou de chover e o sol deu as caras, embora seja preocupante a quantidade de espessas nuvens, especialmente, pros lados de Concórdia. Hoje, sim, consigo avistar, nitidamente – ontem, fora impossível -, os espalhados e irregulares flancos nevados da linda montanha Masherbrum. Os nativos deram-lhe este nome – masher significando arma, e brum, montanha – devido à semelhança de sua forma à de uma arma de fogo. Olha gente, tive de fazer um certo esforço de imaginação para visualizá-la desse jeito, e mesmo assim….sei não.

Saímos de Goro I às 7:50. Gostei demais do lugar, um mundo encantado em preto e branco. Damos uma parada para almoço às 11:45 e às 12:30, retomamos a caminhada. Ainda que o percurso apresente as indefectíveis subidas e descidas sobre o cascalho preto, não é dos mais extenuantes. Encantada, atravesso corredores formados por gigantescos blocos de gelo. A paisagem, na falta de melhor palavra, é sen-sa-cio-nal. O tempo que, durante quase toda a manhã, não se houvera revelado camarada – deveras nublado até então –, após o almoço, começa a melhorar: as nuvens espairecem, permitindo que o sol – oxalá assim continue – desponte com certa energia, realçando com seu brilho o contorno das montanhas e dos altos picos, cujas abruptas escarpas, ora se apresentam desnudas, revelando sua tonalidade cinza chumbo, ora vestidas pudicamente com o branco manto de gelo e neve que os recobre. Destaca-se na paisagem o Mitre Peak (6.025m).

O caminho continua sendo um sobe e desce constante. As nuvens não permitem que se aviste, com nitidez, o Broad Peak e o K2, considerada a segunda montanha mais alta do planeta com seus espetaculares 8.611 m. Fico pensando que se a face sul do K2 é considerada mais difícil do que as duas do Everest, pior ainda deve ser sua face norte, localizada na China. Só o trekking de aproximação ao campo-base dura “rapidinhos” 30 dias! Visíveis, contudo, os lindos picos Marble (6.256 m) e Cristal (6.252 m), situados um pouco antes daquelas duas montanhas. As águas de degelo continuam a escorrer através do cascalho que assoalha o glaciar. Afinal estamos no verão e os efeitos desta estação já se fazem sentir na região.

Um pouco antes de chegarmos a Concórdia, outro posto do exército, construído à semelhança de um iglu, justifica tais cuidados com a segurança: a região é zona de fronteira com a China, conquanto seja um país com quem o Paquistão mantém cordiais e profícuas relações comerciais. O ar frio e a baixa pressão atmosférica produzem precipitação de água-neve que se dissolve rapidamente ao cair. Chegamos em Concórdia às 3 da tarde e já se encontram instalados dois dos espanhóis que estavam com Carlos Soria em Paiyu. São trekkers e seguem amanhã pra Broad Peak onde vão se reunir à expedição liderada por seu conterrâneo, permanecendo no acampamento-base por três dias. Convidam-me a participar dum jogo, segundo eles muito popular na Espanha, que consiste no lançamento de pedras – três tentativas – numa estaca fincada na terra, de modo a derrubá-la. Não acerto uma.

Agora, consigo avistar o K2 e o Broad Peak, ainda que espessas nuvens os encubram parcialmente. Já percorri 87 km desde Askole. Sinto-me ótima embora vente e faça muito frio. Não é pra menos, afinal a altitude é de 4.600 metros. Desde que iniciei o trekking, uma indignação vem crescendo dentro de mim à medida que constato a falta de consciência e o descaso, tanto dos porters quanto dos turistas, largando sujeira ao longo das trilhas. Aqui em Concórdia, entretanto, o lixo atinge seu apogeu. Este belo cenário, de onde se pode contemplar algumas das mais magníficas montanhas do planeta, encontra-se, lastimavelmente, cheio de entulho: pilhas e mais pilhas de latas enferrujadas de comida das mais diversas procedências, papel higiênico usado e carteiras de cigarro vazias, além de diversos outros resíduos, jogados com displicência no chão. Além de ferir profundamente meu senso estético, chocante a falta de consciência e desrespeito dessa gentalha com a natureza (gentalha, gentalha, sim!! como diz, com propriedade, um dos meus ídolos, o Chavez, não confundam, por favor, o excelente ator mexicano com o seu bufão homônimo da Venezuela!!).

Poucos são os que tratam de carregar seu lixo pessoal, porque, claro, dá trabalho, sei por mim. O resultado é o descarte do lixaredo nos acampamentos, aqui elevado à enésima potência. Olhando pros morretes de entulho, lembro da breve palestra do funcionário do Ministério do Turismo, quando fui fazer o briefing em Islamabad, discorrendo entre outras coisas sobre as dezenas de containers retiradas pelos porters no final da temporada de verão quando, em mutirão, percorrem os mais de 120 km da trilha toda, cujo início é em Askole e final na vila de Hushe. Isso poderia ser evitado se todos agissem com um pouquinho mais de cuidado.

Para o sul, o tempo está fechando, ainda que vez por outra o sol surja dentre frinchas de robustas nuvens. Da minha tenda, avisto o Broad Peak e o Gasherbrum 4 (gasher significa bela, e brum, montanha). Conversando com Ali sobre montanhismo, surpreendo-me com a revelação dos riscos envolvidos na escalada deste segundo pico. Explica ele que, embora o G4 seja um 7 mil, é bem mais perigoso devido aos constantes deslizamentos de gelo e neve que guarnecem suas encostas, se comparado ao Broad Peak com seus 8.047 m.

Vejo os tais pássaros pretos voando em várias direções. Ainda há pouco, um deles pousou no teto da barraca e se pôs a assoviar. Coisa mais querida! Olha só o que são os mal entendidos quando não se sabe falar direito um idioma estrangeiro. Ontem quando perguntei ao Ali a idade de sua esposa, entendi, quando respondeu, que sua mulher seria Niaz. Bueno, aceitei na boa, considerando a tolerância ao homossexualismo existente no país. Hoje, resolvo, novamente, questioná-lo – por descargo de consciência – até porque não gosto de fornecer informações incorretas. Ali sorri e, deliciado, exclama, divertido “oh, no, no, Biá”. Pede, sussurrando, que eu não comente nada com Niaz, enquanto faz engraçadas caretas pelas costas do outro, soltando risadinhas de satisfação pelo nosso segredinho. Aceito a conspiração, é claro, com muito gosto. Este Ali é um baita gozador, isso, sim! Mais do que não saber falar bem inglês, lamento mesmo é não entender patavina de urdu. Como não aproveitaria mais a viagem se pudesse me comunicar fluentemente com os paquistaneses. Ia extraiar tantas informações interessantes deles, ora se ia!!

À tardinha, visito os três porters em sua “casinha”. Abrigados no interior duma construção circular feita com pedras e coberta com plástico transparente, ficam muito contentes com minha presença. Sou convidada pra tomar uma sopa que está sendo preparada pelo mais velho dos três. Engulo, sem vontade, a insossa mistura de água e farinha, e, levantando o dedão enquanto balanço a cabeça pra frente e pra trás, sinalizo que gostei. Fico sabendo depois que justo o mais velho deles não tem saco de dormir. E sua indumentária consiste numa calça, camiseta e jaqueta, cujos tecidos são de algodão….pode? Pode sim!! E calça um tênis de plástico branco, sem meias! E é meio surdo. E mesmo assim, sorridente e prestativo demais!

Cantoria em Goro I

Saco é ter de acordar na madruga para fazer xixi. Foi o que me aconteceu. O frio, tremendo, me obrigou a tanto. Depois custei a pegar no sono. Escuto barulho de chuva batucando o teto da barraca. Quando desperto qual não foi minha surpresa ao ver que o tal ruído que eu supusera ser chuva fora de neve!

Está tudo branco, branquinho, e o sol tenta escapulir de uma cerrada formação de nuvens. Há no céu, entrentanto, partes descobertas, revelando um azulão promissor. Vamos ver quem vencerá esta peleja.

Niaz acaba de me trazer uma caneca de chá verde, e o sorridente Muhammad pergunta se eu dormi bem. O vento cessou. Dou uma banda e falo com uns escaladores húngaros, 6 homens, muito simpáticos, que estão indo ao acampamento-base do GI e GII onde pretendem fazer o cume desta montanha. Os espanhóis também estão de partida para lá (o acampamento-base para os dois picos é o mesmo), e Raul comenta que o tempo, talvez, só melhore amanhã, isso se a pressão não continuar declinando.

Digo a Ali que é melhor não permanecermos mais aqui. Não estou a fim de ir até o acampamento-base do K2 com este tempo – uma caminhada de 12 horas entre ida e volta – pois a probabilidade de o clima melhorar é ínfima. Afora isso, a pouca visibilidade impediria uma boa visão do Baltoro Glaciar e das montanhas adjacentes.

O plano é retornarmos e descansarmos um dia a mais em Paiyu. São 8:15 e o frio intensifica-se porque o sol não consegue furar o bloqueio das espessas e cinzentas nuvens que cobrem totalmente Concórdia. Estamos partindo para Goro I. São 9:20. Neva durante boa parte do caminho. Flocos espessos caem continuamente e o frio não dá trégua.

Uma densa neblina impede que se veja a paisagem. Finalmente, cessa de nevar, e até tenho a ligeira impressão que esquentou um pouco. Incorpora-se ao nosso grupo um porter que usa uma touquinha branca de croche. Ali, galhofeiro, comenta que ele é amigo de Osama Bin Laden.

Durante todo o trajeto, ele segue atrás de mim. O homem tira o tênis (usa-o sem meias como a maioria dos porters), e aponta o calcanhar: esfolado, sangra bastante. Entrego-lhe dois band aids….coitado!

Chegamos a Goro I às 14:40. Uma chuva fininha cai. Como eles armaram primeiro a barraca-refeitório, abrigo-me lá dentro enquanto espero que a minha seja montada. O tempo, para onde se olhe, apresenta-se péssimo. Além do mais, um nevoeiro, proveniente do sul, entristece mais ainda a paisagem ao redor. À tarde, surpreendentemente, um tímido sol surge dentre as nuvens. Aproveito e ponho meias, calças, mochila e touca, penduradas numa cadeira, para secar. Estão super úmidas.

Decido acompanhar Muhammad na sua rotina de buscar água. Ele põe o container azul nas costas e caminha até o local onde há um pequeno córrego de águas límpidas Garante, sempre sorridente, em seu inglês estropiado, ser “good….good”. Retornamos ao acampamento na seguinte ordem: ele à frente, e, eu atrás, filmando-o sem parar. Recolho a roupa e vou à barraca- refeitório ver o que está rolando. Niaz prepara a janta, eu aproveito e filmo um pouco a sua faina culinária. Peço, então, que cantem algo. Muhammad e Mussa não se fazem de rogados: o sorridente e alto porter improvisa, com um vasilhame de plástico e duas colheres, servindo de baquetas, uma percussão. Os dois entoam algo em balti cujo tema, suponho eu, deve versar sobre dor de cotovelo (não será viagem minha? e se eles estiverem entoando loas ao profeta Maomé?) Niaz, envergonhado, mantém-se mudo até que, incentivado pelos amigos, se junta a eles. Agradabilíssimo serão musical.

Ali, até então no redil junto com os outros porters, chega para o jantar. Conversamos muito. Eu sempre com a ajuda de “my best friend, the dictionary, do you know, don’t Ali?” Ele conta que o idioma falado entre eles é o balti, não o urdu. Isso ocorre porque porters, cozinheiros e guias são todos oriundos de Hushe Valley, Shigar Valley ou Hunza Valley, localizados no Baltistão, região pertencente à Northern Areas. No Paquistão, acrescenta, são 32 as línguas, destas, 7 são balti. Cita, como exemplo, que shukuriya – obrigada, em urdu – significa aju em um dos idiomas balti. Gaba-se de falar 4 idiomas: 2 em balti, urdu e inglês. Indago se não são essas 7 línguas balti apenas dialetos, porém ele, categórico, recusa minha observação. Bueno, quem sou eu pra discordar, nem filóloga sou, mesmo! Tenho mais é de aceitar caladinha tal informação.

Depois de beber em goles miúdos o chá, dou boa noite a todos e vou deitar, não sem antes retomar a leitura de Pólo Sul. Não preciso fazer esforço algum de imaginação pra imaginar como é a região polar: o clima frio, sem contar os inúmeros blocos de gelo espalhados ao redor, remetem àquelas paragens…..hehehehe!!

Continua…

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