Trekking ao acampamento base do K2 – Parte 9

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Quando acordo, já há movimento no camping. E olha que são 5:45. Assim acontece porque, como nós, os tchecos, também, retornam a Skardu a fim de curtirem os lagos Shangrila e Satpara. Aquela azáfama típica de desarmar acampamento toma conta do lugar. Cada porter cumpre sua função: alguns dobram as tendas, uns lavam louça e outros ajeitam toda tralha nos tonéis….enfim, uma excitação agradável de fim de festa, e de uma festa que foi boa.


Por Beatriz Azevedo

Veja a parte 8 do relato

Os tchecos estão, eles próprios, desmontando suas barracas. Seu esquema de viagem, bem independente, reduz em muito as despesas. Contratam guia porque é obrigatório, prescindindo, porém, dos serviços dos porters pra carregarem mochilas, barracas e comida. Eles levaram e carregaram todo o equipamento em suas mochilas cargueiras durante o trekking de 12 dias. Acabaram se revelando pessoas muito agradáveis. Ainda há pouco, o mais velho do grupo protagonizou um strip tease relâmpago e revelou, de quebra, detalhes curiosos de sua indumentária ou falta dela: enquanto trocava o pijama (usou, pijama, sim, pra dormir!) pela calça, mostrou, de relance, sua bunda branca porque não usa cueca…… hahahaha. Foi muito hilária a cena!

A essas alturas Anwar e Mustafa ficaram muito meus amigos. Anwar, inclusive, deu-me seu cartão pra desgosto de Ali, que não gostou de ver o outro guia me oferecendo seus serviços. Despedimo-nos, dando bye bye, alegremente, e embarcamos em nossos respectivos jipes. Ali, no início da viagem, não conseguia pronunciar meu nome corretamente, chamando-me de Bitriz. Nem tentei corrigir. No decorrer do trekking, comentei do meu apelido, Bia. Foi o que bastou pra eu ser chamada de Biá, de pronúncia mais fácil.

Partimos de Askole às 8:15. A viagem pela estrada cheia de curvas, beirando os alcantilados acima do rio Braldu, embora eu já a conhecesse, continua a me provocar calafrios de medo. A carroceria do jipe, além da bagagem, transporta bem mais de 10 porters. Todos suportam, bravamente, a poeira e o calor que se torna mais intenso à medida que a manhã avança.

Depois de duas horas de viagem, somos forçados a descer do jeep: novo desmoronamento de terra bloqueia a estrada. A travessia é qualquer coisa de perigosa. Temos de caminhar por uma empinada encosta de morro que mal comporta um pé. Ali segura minha mão e só diz “no problem…no problem” enquanto ergue a cabeça pra se certificar da firmeza do terreno acima de nossas cabeças. Deduzo que pode, a qualquer momento, ocorrer novo deslizamento…..ai meu Jesus! Caso houvesse acontecido, iríamos todos ser soterrados, despencando naquele rio repleto de pedras enormes e correnteza fortíssima, situado 40 metros abaixo. A essa altura, arrisco só um olhar, rápido, em direção ao rio e percebo suas águas turbulentas e vorazes me espiando guloso. Fico assustada mesmo. Graças a Alá, deu tudo certo, e chegamos sãos e salvos ao outro lado da estrada.

Embarcamos num novo jeep e lá vamos nós estrada afora, viajando durante uma hora até que fazemos uma pausa para almoçar no mesmo restaurante da ida. A comida, apetitosa, consiste em arroz bem soltinho, pedaços de galinha com farto molho de tomate, feijão ensopado (bem diferente do nosso, o grão, miúdo e redondinho, é amarelo-claro) e nan saído do forno, ainda soltando fumacinha.

Devidamente alimentados, embarcamos no carro e continuamos a viagem. Paramos, então, no mesmo posto do destacamento militar onde eu vivenciara todo aquele horror devido à falta de meu passaporte. O mesmo oficial, que me atendera, vem, amavelmente, me cumprimentar e pergunta “are you glad?” Respondo, alegre, com muitos yes. Ele convida para um chá, recuso, agradecendo com efusivos “Shukuriya”.

A viagem prossegue e atravessamos, agora, um vilarejo após outro, onde plantações de trigo exibem suas altas espigas, algumas bem douradas, prontas pra serem ceifadas. Quando alcançamos Shigar Bazaar, Ali ordena ao motorista que estacione em frente dum restaurante onde entramos para degustar um chazinho. Situado às margens do rio, sentamos, abrigados do sol, no interior duma construção arredondada de vime (lembra uma oca), bebericando nossas bebidas. Lugarzinho agradável este!

Chegamos em Skardu às 14:45. Após tomar banho e retirar os 2 kg de areia dos cabelos, vamos, eu, mais Ali, Muhammad e Niaz a uma confeitaria. Não saio daqui sem antes provar os docinhos típicos que tanto chamaram minha atenção quando da minha passagem anterior pela cidade. O lugar, pequeno e escuro, comporta apenas quatro mesas. Os doces (gordurosos, insossos e açucarados demais, me desapontam) são trazidos num pratinho forrado com……jornal velho!
O mesmo se passa quando, após o término da partida de pólo à que assisti no Maqpon Polo Ground, provo um grão de milho torrado, e o petisco vem envolto num cone feito com…. jornal velho! Coisas do Paquistão.

Muito legal o jogo de pólo: no estádio, enorme, só há espectadores masculinos, uma charanga toca música durante o tempo todo, no intervalo, crianças são colocadas em cima dos cavalos e puxadas pelos adultos pra lá e pra cá dentro do enorme campo. No retorno ao hotel Mashabrum, escoltada por Niaz e Muhammad, convido-os pra beber um refri. Sentamos no páteo e lá ficamos apreciando as montanhas banhadas por aquela luz indecisa de final de tarde. A lua, agora, em sua fase decrescente, é apenas uma fina marca prateada no céu azul despido de nuvens.

Niaz, à despedida, recomenda, atencioso, que não devo sair à noite. Ao entrar no hall do hotel, um empregado da recepção pergunta se consinto em ser fotografada. E lá vou eu posar ao lado de um bonito rapagão, acomodados ambos em cadeiras de vime. Sei lá quem ele é e qual a finalidade a ser dada à fotografia. Estou em tal estado de graças que aceito tudo o que me propõem.

Agora já deitada, 21 horas, escuto batidas à porta. É o encarregado do andar, trazendo o cardápio pra que eu escolha meu jantar (tão gentis, adoro todos!). Recuso e digo-lhe que estou “very tired”. Pego no sono, embalada pelo ruído crepitante do vento a agitar os galhos das árvores no jardim.

Lago Upper Kachura: o autêntico Shangrila

Ali, hoje, abandonou suas roupas de ocidental e veste shalwar qameez branco. O roteiro inclui a visita a dois lagos: o Satpara e o Lower Kachura Lake, mais conhecido como Shangrila pois foi construído em seu entorno um complexo turístico chamado Shangrila Resort. Ali pergunta se Niaz pode ir conosco. Faço sinal para que ele se junte a nós dentro do jeep.

O trajeto, curto, não dura além de uma hora. À entrada, cobram 200 rúpias (não dá 5 reais). Não entendo por quê, talvez pra impedir o ingresso dos paquistaneses pobres, já que esta quantia é significativa pra eles. Numa das pontas do lago, destaca-se um edifício de estilo pagode, nítida influência chinesa: é o restaurante e pode ser freqüentado também pelos não-hóspedes. O local é bem cuidado, gramado impecavelmente aparado, variedade de flores colore os canteiros, destacando-se rechonchudas rosas. Amplos chalés com varandas. Arrisco uma espiada pro interior de um deles, decorado com móveis de madeira escura, pesadões, sóbrios. A decoração de interiores aqui no Paquistão não é lá das mais atraentes, tudo de gosto….hummmm….meio duvidoso, vá lá, cafona mesmo!

Shangrila é point no verão e os paquistaneses abastados adoram vir pra cá. Um bote singra as águas calmas do lago, conduzindo os remos um homem, vestido à ocidental, na popa, uma mulher e duas adolescentes, envergando as três shalwar qameez, conversam entre si. Uma elevação rochosa à borda do lago projeta sua sombra nas águas. Assemelha-se à figura duma colossal baleia.

Caminhando nos jardins, um homem e duas mulheres, ambas vestidas de burkha preto. Elas lançam em minha direção olhares severos. Será porque não uso sutiã e tenho os braços desnudos? Só pode! Apesar de calmo, o lugar não me atrai. Já vi hotéis bem mais atraentes encravados em lugares mais belos. Contudo, pros paquistaneses, este lugar é considerado um deus nos acuda em termos de conforto e beleza…..enfim, cada um com seus gostos. Prefiro mil vezes o desconforto da barraca durante o trekking no Baltoro glaciar.

Ali descobre, conversando com um segurança, o caminho pra outro lago, e lá vamos nós pro Upper Kachura Lake. Atravessamos uma ponte cujo rio, de onde afloram enormes blocos de rocha, lambidos por céleres corredeiras, exibe esverdeadas e límpidas águas. À volta, montanhas e mais montanhas. Chegando à vila de Kachura, o jeep pára, e observo a conversa animada entre o motorista e alguns aldeães. Intuo que estão falando de mim. Não dá outra. Ali, meio constrangido, explica que tenho de cobrir os braços, não os permitem desnudos (olha só: e estou com camiseta de manga curta!). Prevenidamente, carrego sempre na mochila uma camiseta de manga comprida caso esfrie. Visto-a e somos liberados. Passam por nós algumas vans onde no tejadilho vão aboletados alegres passageiros.

O 4×4 segue através duma estradinha de chão batido muito safada. Sacolejos inevitáveis durante o trajeto que se desenrola entre plantações de trigo já maduro pincelando de dourado a paisagem. Secam, sobre enormes pedras, damascos recém colhidos. O jeep pára e descemos. Enveredamos por uma estreita senda cercada em ambos os lados por altos muros de pedra. Adiante, algumas casas toscas, também feitas do mesmo material. Pra mim tudo é pitoresco, mesmo a pobreza das construções.

Árvores e mais árvores de damasco vergam ao peso dos frutos cuja coloração alaranjada empresta um ar alegre ao dia cinzento. Desce-se por uma trilha íngreme em meio a uma luxuriante vegetação, árvores verdíssimas, flores silvestres de delicadas pétalas, e lá embaixo, esplendorosas, as águas azul turquesa do lago fazem com que eu solte exclamações deliciadas diante de tanta beleza. Esse lugar, sim, é um genuíno Shangrila! O gerente do lugar, muito gentil, informa que é permitido o banho. Sentados os três, lado a lado, cada um perdido em seus pensamentos, lá nos quedamos durante um tempo a contemplar a tranqüila e sedosa superfície azul-esverdeada do lago Upper Kachura. Não muito distante, à beira de um pequeno cais, curto a animação de um bando de garotos mergulhando e chapinhando dentro d’água. Seus gritinhos de prazer chegam até mim abafados. Tão bucólico tudo isso!

Subimos de volta ao restaurante de onde se descortina o lago. Simples, o recinto é triacolhedor com cadeiras e mesas de vime cobertas com toalhas vermelhas. Uma agradável surpresa no cardápio: trutas. São trazidas cruas para que eu escolha a quantidade e tamanho. Ali sugere encomendar apenas dois pedaços. Uns vinte minutos de espera, e eis os peixes inteiros e grelhados soltando fumacinha. Mal espero esfriar, dou uma assoprada e mastigo, faminta, tal pitéu. Ali, ao ver que eu deixara de lado a cabeça, nem hesita, devora-a com olhos e tudo, fazendo cara de satisfação…..uiiii!!! Niaz, envergonhado, quase não come nada. Dá como desculpa uma dor de cabeça. Eu tenho cá com meus botões que o coitado, percebendo a pouca quantidade de comida, inventou a tal enxaqueca de modo a que não faltasse peixe pra nós. Eu não deveria ter ido atrás de Ali e ordenado dois ou três pedaços a mais de peixe. Para acompanhar, sabem o quê? O nosso indefectível chazito com leite (foi a única vez que senti falta de beber um vinhozito branco bem geladinho. No mais, a proibição de ingerir bebidas alcoólicas nem deixou saudades. E olha que curto uma birita!). De sobremesa, abricós colhidos do pé da árvore.

Terminada a refeição, vamos conhecer o lago Satpara. O balneário não se mostra tão atraente quanto o de Upper Kachura. No jardim, à beira de suas águas, igualmente, azul-turquesa, há mesas e cadeiras onde o povo curte o domingão. Lamento, ao ser informada, que a construção de uma colossal represa, já em adiantados trabalhos, determinará a extinção desse atrativo turístico. A finalidade é sanar o precário sistema de energia elétrica da região onde ocorrem freqüentes cortes de luz quando menos se espera.

O tempo continua nublado e agora venta bastante. Bate uma fome e peço chá com leite e biscoitos. Três homens, sentados à mesa ao lado, pedem licença e sentam-se à nossa. Um deles é professor. Está curioso e deseja conversar comigo sobre a Amazônia, as cobras, América do Sul, qual língua é falada no Brasil. Questiona, lá pelas tantas, se as cobras andam soltas nas ruas, hahahahaha. Essa é boa!!

De volta a Skardu, após Ali me levar numa loja para eu comprar cd de música balti, vou numa lan house checar meus emails. Fico lá durante duas horas escrevendo pros amigos rodeada de….moscas…..arghhh!! E de quebra, uma trilha sonora animal: o mugido de uma vaca, alojada no estábulo, situado bem ao lado da loja onde estou. Com vontade de urinar, pergunto ao atendente se há toalete. Ele indica um a 50 metros, no piso superior de uma casa mais adiante. Acho tudo muito estranho mas vou lá. Estou eu arrumando minha mochila, já me preparando para descer quando vejo Ali e Mussa ao pé da escada me procurando. Ele havia ido à loja da internete me buscar porque está chovendo. E de carro! Tudo pra eu não me molhar! Não é um amor este homem?

continua…

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