Trekking ao acampamento base do K2 – Parte5

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Às 5 a lua reflete, pela metade, seu brilho branco no azul esmaecido do céu. Como não está frio, visto apenas um moleton de fleece pra ir ao banheiro.


Por Beatriz Azevedo

Leia a parte 4 do relato

Agora, 6:30, finas nuvens cobrem o céu toldando-o de longe em longe. O acampamento está quase vazio. Os espanhóis há coisa de meia hora se mandaram em passo acelerado. Só nosso grupo e alguns porters, remanescentes da expedição espanhola, ainda se quedam cá. São 6:50 quando partimos em direção a Urdukas.

No início da jornada, vai ao meu lado um colombiano, o José. Falante e simpático (aliás, até agora não encontrei, graças a deus, ninguém antipático), o rapaz revela que é proprietário duma agência de turismo em Bogotá. É sua primeira viagem ao Paquistão e acompanha Fernando Gonzáles, seu compatriota, conquistador de 7 das 14 montanhas com mais de 8.000 m. Vão tentar o GI. Depois de um agradável bate papo, despede-se, e vai ao encalço de seu amigo, já bem à frente.

O caminho, agora, sim, se faz íngreme, cheio de altos e baixos, em especial quando entramos no Baltoro Glaciar. Fico desapontada porque imaginava esta superfície de gelo, com aproximadamente 60 km de extensão, toda branca. Qual o quê! Coberta por pedras e terra, só consigo acreditar mesmo que estou andando num dos maiores glaciares do planeta, quando empurro com o pé o cascalho que o encobre. Daí, sim, certifico-me de que caminho sobre um gigantesco bloco de gelo. O céu adquire uma coloração fortemente azulada, e a temperatura começa a esquentar pra valer. As pequenas moscas não dão tréguas, incomodam à beça. Incrível, porque estamos a mais de 3.500 metros! Não à toa, alguns porters carregam na mão um galho de flores arroxeadas: com elas espantam esses infames insetos!

Paro várias vezes, não só pra descansar – está sendo bem puxada essa trilha, confesso! – quanto pra apreciar a linda paisagem onde se destaca, nitidamente, o Paiyu Peak (6.610 m), uma larga formação rochosa coberta de neve no topo. Quando estava no acampamento de Paiyu, não o enxergava bem – apenas uma pontinha de seu cume – já que escondido por outras montanhas. Agora, mais à distância, sobressai, na paisagem, toda sua imponência. Encontro, no caminho, um grupo de trekkers retornando a Askole, esqueço, porém, de indagar de onde são.

Ali aponta uma gigantesca estrutura rochosa a nossa frente: são as famosas Trango Towers, preferidíssimas dos escaladores, especialistas em big walls. Algumas encostas de montanhas apresentam-se, ainda, atapetadas de grama. Começam a surgir arbustos rasteiros, alguns apenas com folhas, outros há em que brotam flores de diversas colorações: roxas, magentas, fúcsias, amarelas, vermelhas e brancas. Alguns lagos de águas verdes quebram a tonalidade ora bege, ora cinzenta da paisagem. Escuto um barulho imaginando ser uma cascata…qual o quê! é de água, não, e, sim areia escorrendo de uma ribanceira. Atravesso um rio pulando de pedra em pedra, tal qual uma cabrita.

Estou cansadíssima. Paro seguidamente. Quando menos espero, Ali e Niaz, sentados (os porters há muito seguiram em frente), fumam, enquanto me aguardam, com um ar, displicentemente, divertido. E eu botando os bofes pela boca…putz grila!! Fico sabendo por um espanhol – vindo de Concórdia – que Urdukas está fedendo muito, moscas demais e pouca água. Diante disso, afora meu evidente cansaço, Ali decide acampar em Khaburse (pronuncia-se cobursê, e significa o nome duma planta muito cheirosa, comestível apenas por animais) onde chegamos às 13:15. Este acampamento não tem a mesma estrutura do de Paiyu, justo uma casinha de pedra, residência do proprietário das terras. De um córrego estreito, onde escorre um minguado filete d’água, é retirada a água, após devidamente fervida, para fazer comida e também beber. A paisagem é muito legal. Cercada por várias montanhas e torres de granito, destacam-se as Trango Towers, formidável maciço rochoso com quatro cumes identificáveis, sendo os mais badalados a Trango Tower ou Nameless Tower (6.239 m) e a Great Trango, a maior agulha das quatro com seus 6.286m. Disputam a atenção, ainda, Cathedral Peak (5.866 m), Liligo Peak (5.600 m) e Uli Biaho (6.109 m), todas lindas, lindas, lindas.

Já acomodada na barraca, escuto o barulho da chuva tamborilando no teto. Um vento forte começa a soprar. Entra um bocado de areia nos meus domínios e meus pertences cobrem-se de uma fina camada de pó. Curto, daqui de dentro, dois cavalinhos recém chegados de Bardumal, tentando retirar alfafa dum saco caído ao chão. Um deles leva um cincerro ao pescoço. Tão gostoso o tilintar do sininho! Alguns porters montam, ao lado da minha, duas outras barracas, pertencentes a uma expedição cujos membros ainda não chegaram. No dia seguinte, conversando com eles, um casal, descubro que são trekkers e trabalham na embaixada do Canadá, em Islamabad.

O vento se foi, a chuva, entretanto, permanece. Sinto, de repente, meu rosto molhado. Pois não é que a barraca tá vazando água? Grito por Ali, energicamente. Logo aparece ele, seguido de Muhammad e Mussa. Trazem um plástico para vedar as goteiras. Como minha barraca está justo ao lado do córrego, peço-lhe que a transfira de lugar. Sei lá, vá que continue a chover, e o tal córrego se transforme num riachão. Transportam-na para um local mais elevado. Aproveito, então, e peço que virem a abertura de entrada para Liligo Peak: assim, poderei ver, daqui de dentro, a espetacular paisagem desta montanha! Terminada toda essa faina, não é que a chuva estanca?!! Mesmo assim, veio a calhar a chuvarada, o ar tornou-se mais fresco e as malditas moscas sumiram do mapa. As montanhas ao redor estão encobertas por denso nevoeiro, cenário um tanto quanto espectral. Adoro tudo isso!! Se, inclusive, o conde Drácula fizesse uma aparição, eu, com certeza, podem crer, soltaria gritinhos, de tão deslumbrada estou. Pra completar o climão, estamos a 3.800 metros.

Estou desconfiada de que sofri uma bela contratura na coxa direita. Era só o que me faltava! E foi coisa à toa: quando abaixei pra entrar na barraca, ao chegar aqui, senti um estirão no músculo. Muhammad chega à porta de minha tenda, avisando que a janta está pronta. Niaz preparou um delicioso sopão. Apenas Ali e eu jantamos. Niaz e os porters, Muhmmad e Mussa, preparam chapatis num canto da barraca-refeitório. Só irão comer após o término de minha refeição. Aos outros três porters não é permitido freqüentar a barraca-refeitório, daí que acampam em local mais afastado, lá preparando sua comida. Como sempre, Ali e eu conversamos enquanto bebemos um escaldante chá verde. Magro e ativo, ele é simpaticíssimo. Adora sua profissão. Seu sotaque é tão ruim que demorou um eito até eu entender que “sonou” era “snow”. Apesar das dificuldades no idioma, conseguimos nos entender razoavelmente. Como todo guia de alta montanha, já trabalhou em várias expedições de escalada, fixando cordas entre um acampamento e outro. No K2 (8.611 m), subiu até 7.400 m, além da participação em um resgate, no Gasherbrum 2 (8.035 m), atingiu o campo 2, já no K7 (6.934 m), fez o cume. Dou-lhe trela, e ele não se faz de rogado. Prossegue em sua biografia, contando orgulhoso que iniciou a trabalhar, no turismo, aos 16 anos, como porter, durante as férias escolares. Depois, foi sirdar, assistente de cozinheiro, cozinheiro e assistente de guia, até a atual função, que vem exercendo há 12 anos. Para tanto, fez um curso técnico de 1 ano.

Exausta do longo dia, desejo “good night” a todos e vou embora. Minha perna está incomodando, portanto, ingiro, antes de dormir, um relaxante muscular e um antiinflamatório pra prevenir maiores complicações. Oxalá não seja nada grave! E a chuva reinicia, pois, pois…

Goro I, uma surpresa em preto e branco

Observo que o tempo se mantém nublado quando ponho o nariz pra fora da barraca. Muhammad, sorridente, me entrega uma caneca de chá quentinho. Faz frio. Levantamos acampamento e começamos a caminhada às 8. Ando devagar pois sinto fisgadas na coxa. De fato, contraí algum músculo perto da virilha.
Sacoooooo……

Do lado esquerdo do Baltoro Glaciar, após as Trango Towers, impossível passar despercebidas as Catedrais, duas soberbas torres de granito com mais de cinco mil metros de altura, separadas pelo glaciar de mesmo nome. À minha retaguarda, a linguona cinzenta do glaciar Khoburse distancia-se cada vez mais. Como afluentes de rios, os glaciares – situados entre as montanhas perfiladas em ambos os lados do Baltoro Glaciar – convergem em sua direção. À direita, já visualizo o glaciar Urdukas. Somente num pequeno trecho, o trajeto se faz diretamente sobre o gelo, necessitando um certo cuidado pra não se escorregar no terreno liso. No restante, cascalho preto e areia encobrem a colossal massa de gelo. O caminho não é difícil. Alcançamos Urdukas às 11 onde está instalada uma base do exército no sopé da íngreme colina que conduz ao acampamento. Ali, todo contente, avisa que descolou um cavalo para eu ir a Goro II e um abatimento de 1.000 rúpias no aluguel, já que o proprietário do animal exigira 5.000. Tento me abrigar, enquanto almoço, sob uma saliência de rocha, pois uma garoa marota se faz presente.

Saímos de Urdukas às 12:00 e necas do cavalo. Assim, Ali e eu retomamos a caminhada. Niaz, desta feita, não nos acompanha. Foi à frente avisar aos porters que nos aguardem no acampamento de Goro I. O chuvisco, intermitente, não dá muita trégua: pára, reinicia, pára e reinicia. 13:15, e eis o cavalo puxado por seu dono, apontando colina abaixo. Monto, meio receosa, sei lá se é manso. Como o tempo está nublado e nuvens encobrem as montanhas, mal as posso divisar. O cavalinho revela-se dócil demais. Porta um sininho no pescoço e, enquanto trota, um tilintar de blim blem quebra o silêncio daquelas paragens. Vez por outra, Ali e o proprietário do cavalo o incitam com palavras ou sons. Certos trechos íngremes, rentes a precipícios, me deixam tensa. Os dois homens, percebendo meu medo, me tranqüilizam sorridentes.

Começam a surgir, entre as escuras rochas, grandes blocos de gelo, brancos, muito brancos. Não é uma paisagem acolhedora, muito pelo contrário, há de se reconhecê-la inóspita. Mesmo assim, ou talvez por isso, eu gosto demais do que vejo. O cavalo só negaceia uma vez, ao atravessar um dos inúmeros córregos que se formam do degelo dos glaciares. O dono puxa-o, ele empaca. Então, o homem larga a corda e deixa-o à vontade pra procurar o melhor lugar para cruzar a correnteza. E eu lá em cima me borrando de medo enquanto o bicho, conhecedor dos caminhos, atravessa tranqüilo até a outra margem. Durante o trajeto, diversos riachos de espumosas e cristalinas águas verdes escorrem céleres por entre as pedras e blocos de gelo.

Uma loucura esta paisagem. Agora não se vê quase nada de vegetação, excepto a encosta dum pico que avisto do interior da barraca onde descanso após a jornada. Algumas montanhas estão rodeadas por camadas de nuvens como se vestissem saiotes de tule branco como os usados pelas bailarinas. Um claro aqui e lá deixa entrever o azul do céu pros lados de Concórdia, no mais, densas nuvens tingem-no de cinza. Vamos ficar em Goro I porque o dono do cavalo se recusa, sei lá por quê, a pernoitar em Goro II. Por isso, o aluguel, inicialmente, acertado em 4.000 rúpias, diminuiu para 3.000, graças a um novo desconto, conseguido por meu mago das finanças, o grande Ali.

No final, como dei 1.000 rúpias de gorjeta, o cavalo custou mesmo 4.000. Ali, orgulhoso de sua capacidade de negociar e regatear, afirma que o aluguel de um cavalo não sai por menos de 10.000 rúpias. Como ele é um homem muito esperto talvez tenha dito isso pra se fazer de “bonzinho”. Recordo, contudo, a seu favor, que, quando eu quisera dar 1.000 rúpias de gorjeta a cada um dos dois porters que só levaram carga até Paiyu, ele, incisivo, não deixara. Falou que bastavam 500. Concluo que ele gosta de ser prestativo, cuidando, inclusive, das finanças de seus clientes.

Minha perna já apresenta uma melhora considerável, resultado da combinação dos medicamentos e de minha relativa imobilidade, ao me poupar da árdua caminhada de Urdukas a Goro I. Amanhã, já conseguirei ir a pé a Concórdia.

A chuva continua. Por todo o lado, há enormes e compactos blocos de gelo. Alguns lembram os iglus dos esquimós, assentados solidamente no terreno pedregoso. Outros se equilibram precários sobre estreitas superfícies de rochas. Peço pra Muhammad um pouco de gelo. Ele cavouca o terreno e logo me entrega um pedaço que aplico no lugar onde a coxa está dolorida. As tonalidades das pedras são lindas: rosas, vermelhas, verdes, amarelas. Estou bem louca, se pudesse levava todas as que há espalhadas pelo chão.

Pela primeira vez, como, com gosto, a deliciosa massa, bem fininha, refogada com cebola, couve e alho, preparada por Niaz. A chuva cessou porque já não escuto mais o tamborilar das gotas no teto da barraca. Está frio pra caramba, prenunciando uma noite daquelas. Visto, por via dúvidas, três blusões e duas calças de fleece, mais três meias de lã antes de me enfiar no saco de dormir, recomendado pra temperaturas de até –5º C. Sei lá se irá me proteger adequadamente. Minha experiência neste tipo de clima e situação é zero à esquerda. Um porter passa cantarolando pela minha barraca. São 21:30 e os grandes blocos de gelo resplandecem na escuridão da noite.

Continua…

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