Um Kilimanjaro de aniversário

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Kilimanjaro, ponto mais alto da África com 5895m, imponente e gigante como poucas obras da natureza no mundo. Depois de muitos meses de preparação, finalmente cheguei na semana onde iria enfrentar o maior desafio da minha vida. Subimos pela rota Machame, a mais difícil e das mais longas, e também mais cheia, porém com o melhor perfil de aclimatação, o que não atenuaria vencer os desafiantes 1200m verticais do dia do cume.

CHEGANDO NA TANZÂNIA
Na semana anterior tinha subido o Monte Kenya, o que serviu de escola pra esse novo desafio. Apesar de ter estado em altitude anteriormente, nunca tinha chegado lá na raça. Aprendi bastante sobre as diferenças entre montanhismo em altitude e o nosso brasileiro, em todos os aspectos possíveis. Isso me preparou pra me focar melhor no Kilimanjaro.
Entrei na Tanzânia por via terrestre pela fronteira de Namanga, que parece literalmente um cenário de documentário da National Geographic. Lembra um pouco a bagunça da Amazônia Peruana, porém mais pobre. São dezenas de caminhões, micro-ônibus e jipes fechando a passagem, centenas de turistas carimbando passaportes e mais uma dúzia de mulheres maasai que querem te vender qualquer coisa a qualquer custo, tudo isso com direito a muita poeira levantando pra lá e pra cá.
Da estrada avistamos o Kilimanjaro suspenso sobre as nuvens. Já tinha visto ele do avião, e ver mais de perto agora dava ainda mais medo, pois o negócio é gigantesco, e brotando sozinho do chão, sua proporção é ainda mais assustadora. Não fui pra lá com certeza de que chegaria no cume, e depois dessa visão, essa incerteza ficou ainda maior.
A montanha, por ser tão grande e proeminente, serve de gíria pra tudo que é grande, principalmente os pratos servidos em restaurantes e nos acampamentos (nosso famoso “prato de pedreiro”).
DIA 1 – ARUSHA > PORTÃO MACHAME > ACAMP. MACHAME
Na saída do hotel em Arusha, completamente tomado de gringos, já ficamos preocupadas com o horário por conta da demora na liberação de subida, no portão. Porém estando num grupo pequeno, éramos apenas 1 carro. O grupo de estudantes saiu na nossa frente em 2 micro ônibus, e um outro micro ônibus saiu com outro grupo enorme.
Da estrada dá pra ver a montanha: abaixo das nuvens sua gigantesca e larga encosta que parece não ter começo nem fim. Depois de muitas nuvens acima, apenas as geleiras, que parecem flutuar acima das nuvens. É estranho pensar que vamos chegar lá a pé. O Kilimanjaro definitivamente é a coisa mais imponente que já vi na minha vida: um monstro que sai da terra, solitário no meio da savana.
Paramos no meio da estrada pro James, o cozinheiro, comprar algumas coisas, e nisso acabamos saindo na frente de todo esse povo. Tudo isso não foi lá tão útil já que antes de passar pelo Portão Machame (1640m), de longe, já dava pra ver a multidão de gente esperando liberação pra subir. O procedimento é parar o carro, ir até a portaria, assinar o livro de entrada e aguardar o líder do grupo fazer os procedimentos pra pegar todas as vias da permissão de subida. Tudo isso demorou algumas horas, durante as quais Fiona e eu ficamos assistindo ao circo na entrada do parque. Enfim, passada essa parte, iniciamos a subida depois da 1 da tarde. Foi estranho logo de cara vir do Monte Kenya, onde só vimos outros grupos no dia do cume, e chegar no Kili em trilhas super congestionadas e barulhentas. Seria um inferno trilhar com essa zona todos os dias, e já tendo tido uma conversa prévia com a Fiona, sugeri pro Peter a estratégia de acordarmos um pouco mais cedo que o padrão pra evitar o trânsito. Já que não estávamos conseguindo dormir muito e acordando nunca mais tarde que 5 da manhã, ele adorou a ideia e ficamos acertados.
 Já aclimatadas, fomos numa velocidade acima da média e passamos inúmeros grupos no caminho. A parada pra almoço foi rápida, e de volta à caminhada, passamos mais um monte de gente. A trilha segue pela floresta o tempo inteiro, com contenção no chão, e um pouco de poeira. A paisagem não muda e pode ser um dia chatinho, mas fui puxando conversa com os guias pra descontrair um pouco. Chegamos no acampamento Machame (3000m) sem cansaço ou dor de cabeça. Aqui mais um choque, pois apesar de ser um acampamento espalhado entre árvores, tinha muita gente e muita barraca. Não dava pra ir no matinho, e as privadas eram absolutamente nojentas. Que saudade do Monte Kenya…

O topo visto do acampamento Machame – Autor: Cissa Carvalho

Neste acampamento já dá pra ver a parte mais alta da montanha, e aí cai a ficha de que a subida começou. Depois da janta saí da barraca pra escovar o dente, e fiquei uns 15 minutos lá fora esperando a visão se adaptar ao escuro, o que foi permitindo que eu visse o céu cada vez mais salpicado de estrelas.
DIA 2 – ACAMP. MACHAME > ACAMP. SHIRA
5h45 da matina e todo mundo de pé! Aquele café da manhã inglês nojentinho de novo, mas vamos que vamos. Fomos o segundo grupo a sair de Machame, e logo passamos o primeiro – 3 americanos com a mesma estratégia da nossa e que encontraríamos nos dias seguintes.
O dia hoje seria íngreme com quase 1000m de ganho de altitude, e em teoria, escalaminhada. Na verdade a trilha segue por uma crista que começa no meio da floresta e segue por pedras e poeira, depois virando paralelamente à encosta e finalmente, uma última subida um pouco mais íngreme. Apesar de já ter parado de tomar Diamox, estava com a impressão de precisar ir no banheiro muito mais do que no Monte Kenya, mas pelo menos nesse dia ainda tinha bastante pedra grande pra ir atrás… porém, chegando lá todas muito sujas, o que seria padrão pros dias seguintes. As pessoas não só não enterram nada, como largam um monte de papel pelo caminho.

Vista pro Pico Shira de dentro da barraca – Autor: Cissa Carvalho

Fomos o primeiro grupo a chegar no acampamento Shira (3810m), o que nos deu a tarde livre pra descansar. Meu apetite já estava voltando com tudo e acabei comendo demais no almoço. Fiquei boa parte da tarde sentada do lado de fora da barraca e de frente pro cume, escrevendo, ouvindo música, papeando com os guias. Fora a culpa de comer demais, estava me sentindo bem e sem dor de cabeça. O corpo estava um pouco cansado, afinal já era mais de uma semana sem dormir direito, e uma montanha nas costas na semana anterior. Foi o único por do sol bem aproveitado da semana, onde realmente consegui tirar fotos com calma e apreciar sem ter pressa pra nada. No entanto, nesse acampamento já tivemos uma prévia do que seriam as noites seguintes, já que pelo fato de as barracas estarem muito mais próximas umas das outras, o barulho era muito maior, até quase 11 da noite. E do nosso lado, italianos que não conseguiam piscar o olho sem fazer barulho, e ainda acordaram de madrugada sabe-se lá pra que. Ou seja, foi a pior noite da viagem inteira.

DIA 3 –  ACAMP. SHIRA > ACAMP. BARRANCO
Acordei quebrada pela noite mal dormida, mas com um feliz aniversário da minha companheira de barraca. Melhor que receber parabéns de estranhos era passar um aniversário fazendo o se mais gosta, ainda que “sozinha”, longe da família e dos amigos queridos. Mas a concentração era tanta que lembrei só mais 2 ou 3 vezes durante o dia que era meu aniversário.
Nesse dia tivemos uma baixa no grupo: o carregador Noordeen sentia fortes dores estomacais e teve que descer. Fomos o segundo grupo a sair de Shira, antes mesmo de qualquer carregador, e novamente cruzamos e passamos os americanos. Subimos por mais ou menos 2h30 um campo de pedras vulcânicas, em direção à boca do vulcão, sob sol forte, e uma trilha cada vez mais empoeirada. Quando chegamos no topo da crista, pudemos ver de longe a ponta da Lava Tower, uma formação rochosa a 4630m de altitude, e as trilhas que vão até ela (pra quem faz aclimatação), ou passam por baixo (mais rápida, usada pelos carregadores). Como hoje era dia de aclimatação, iríamos pela trilha de cima.
Depois de uma parte meio plana, entramos na subida propriamente dita e já comecei a sentir dor de cabeça e um cansaço fora do normal. Paramos em Lava Tower pra almoço, me entupi de água, e a dor de cabeça melhorou um pouco. Depois do almoço, descemos uma encosta íngreme, cruzamos um riozinho quase congelado, e subimos uma encosta suave. A dor de cabeça ia e voltava apesar da queda na altitude. Do topo da nova crista avistamos o acampamento Barranco (3976m) lá embaixo, e a famosa parede Barranco, que de longe realmente parece ter 90 graus. Depois disso é descer um vale com muitas lobélias (uma árvore gigante misto de bromélia com flores), cachoeira congelada e mais poeira.

Subida para Lava Tower – Autor: Cissa Carvalho

Chegamos lá e Peter perguntou da dor de cabeça: estava média pra fraca. Me mandou descansar na barraca, e eu fui. Mas aí a dor piorou e acabei tomando um Ibuprofeno. Meia hora depois ela passou, e mais um pouco fui jantar. Estava cansada, mas mais apreensiva por estar dormindo em média 4 horas por noite, e não conseguir realmente descansar tão próximo do dia do cume. O tempo estava passando muito rápido.
Na janta o Peter teve um longa conversa com a gente sobre como seria o dia de cume. Falou que iríamos passar mal sim, que ia dar dor de cabeça, iria cansar muito, poderíamos vomitar, mas que tudo isso era normal, e que o importante era sinalizarmos pra ele sempre que possível todo e qualquer sintoma. Mas avisou também que caso tentássemos esconder algo, ele saberia identificar coisas mais graves, e que nesse caso, a ordem seria descer. Portanto, descanso, água, e pole pole, sempre. Já começamos a brincar que ia ser difícil demais e que os dois teriam que arrastar a gente pro cume em um trenó.
Pedi água pra noite e falei que ia dormir mais cedo. De repente, todo mundo saiu da barraca refeitório, menos eu, Fiona e Peter. Eu sem entender nada, só queria minhas garrafas de água pra poder dormir. Mas aí veio a surpresa: um mega bolo de aniversário, com muitas velas pra apagar, um “happy birthday to you” macarrônico mas incrivelmente sincero! Apaguei as velas penosamente com um só assopro, mas foi emocionante! Tanto que cortei o bolo todo errado, mas fiquei super feliz e até o resquício de dor de cabeça sumiu. Digo sinceramente que não esperava nada disso, talvez apenas uns cumprimentos, mas um bolo feito a 4000m realmente foi um mérito do James. Depois dessa, fui dormir mega feliz. Na verdade tentar né… pelo barulho e tal…

Bolo de aniversário a 4000m de altitude – Autor: Cissa Carvalho

DIA 4 – ACAMP. BARRANCO > ACAMP. BARAFU
Este foi um dia que me causou apreensão em seu final. Você começa sabendo que vai ter que subir 600 metros verticais, sabe que vai ser o dia mais longo antes do cume e que vai cansar mais que os outros, mas não imagina a verdadeira canseira que é.
Muita gente tem medo da Barranco Wall, por conta de ser a única parte “técnica” da trilha. Na boa, o Kilimanjaro não tem nenhum momento de perigo ou emoção. A Barranco tem uma escalaminhada pouco exposta e relativamente fácil pra quem está acostumado com as montanhas pedregosas da Mantiqueira ou as trilhas do Soto pela Serra do Mar.

Mini escalaminhada na Barranco Wall – Autor: Cissa Carvalho

Logo na saída nos deparamos com o grupo de estudantes à nossa frente. Eu e o Peter já bufamos e ele pediu passagem. Subimos a parte principal do paredão em mais ou menos 40 minutos, e terminamos a subida total em pouco mais de 1 hora, estando então a 4200m de altitude. Paramos um 20 minutos pra esperar nossa equipe passar já que tínhamos saído bem cedo. Daí começa o sobe e desce. Descemos pra caramba um vale, depois subimos tudo de novo. Daí descemos suavemente outro vale, e subimos suavemente novamente. De cima desse vale é possível avistar o acampamento Karanga (3995m), onde iríamos almoçar. O Karanga é o acampamento de quem sobe a Machame em 7 dias. Mas antes dele, uma descida bem íngreme com um pouco de desescalaminhada, água correndo por baixo de gelo, e umas plantas exóticas. No fundo do vale, atravessamos um riozinho (último ponto de água antes do cume), e depois uma subida bem íngreme. Chegando em Karanga, parece que o dia vai acabar, pois já estamos bem cansados de tanto sobe e desce. Mas é apenas a metade, e isso em termos de distância. Quando olhei o GPS, me dei conta e bateu uma raiva, pois estávamos na mesma altitude de quando saímos de manhã. Ou seja, depois dessa canseira, ainda tínhamos os 600 metros pra subir.

Um dos inúmeros vales a cruzar antes do acampamento Barafu – Autor: Cissa Carvalho

Depois de um almoço rápido, nos pusemos na trilha de novo. Foi 1 hora de subida interminável, de frente pra crista por onde subiríamos. Gigante, altíssima, cheia de neve. Aquilo era o caminho do dia seguinte. Chegamos no topo da subida e olha lá o que temos: outra descida de vale, e depois um paredão pra subir. No fim dele, o acampamento Barafu (4673m). São 2 horas pra vencer esse trecho. Chegamos no acampamento lotado, e penamos pra achar nossas barracas. Tivemos 2 horas de descanso, depois janta, e dormir. Já estávamos no dia do cume. Depois de mais de 7 meses de espera, tinha chegado o dia.

DIA 5 – ACAMP. BARAFU > UHURU PEAK > ACAMP. MWEKA
A subida
11 da noite. Hora de levantar. 4 ou 5 horas de sono leve. Despertei com o barulho das pessoas no acampamento, como se fosse de manhã. Estava já com a roupa do cume, faltando apenas vestir o casaco de pluma, bota e polainas, meias, etc. Tomamos chá com biscoitos rapidamente e partimos. Não estava muito ansiosa, na verdade estava bem tranquila. Dor de cabeça praticamente zero, corpo surpreendentemente descansado (vai entender), objetivo claro, mente tranquila.
Antes de chegar no pé da trilha já dava pra ver o que era pelo menos uma centena de lanternas preenchendo o ziguezague da trilha ao cume. Fiquei com a impressão de que iríamos começar tarde, mas foi impressão, pois no meio do caminho ainda tinha no mínimo o mesmo número de pessoas atrás de nós, a perder de vista. Logo no começo passamos inúmeros grupos já muito lentos porém bem numerosos, o que iria atrapalhar nossa própria subida. Acho que valeu a pena um ritmo mais forte no começo, pra poder equilibrar depois, e se livrar do “trânsito”. Porém após pouco mais de uma hora senti que o guia assistente que ia na frente estava rápido demais pra mim. Parei e disse que seguiria no meu ritmo, mas aí todos resolveram ir mais devagar.
Tudo em volta era muito escuro, e sequer conseguíamos enxergar o contorno no Mawenzi atrás de nós. O Peter já tinha falado que era costume dele não falar quanto faltava ou se estava longe, e pra mim era uma boa política. Me resignei a subir de cabeça baixa me concentrando em manter um ritmo constante, e a frequência cardíaca relativamente normal. A temperatura estava bem tolerável, algo em torno de -7 C.
Comecei a reparar que a Fiona, que ia à frente grudada no Joseph, estava dando passos desequilibrados e se apoiando demais nos bastões pra conseguir dar cada passo. Me lembrei que ela tinha comentado comigo antes de dormirmos (porém não com o Peter) que estava com dor de cabeça a viagem inteira e agora sentia dor no pulmão. Como já tinha tentando dar uns toques na menina mas fui literalmente ignorada, fiquei na minha. Mas isso teve consequência, e mais ou menos 2 horas depois de começarmos ela parou subitamente e reclamou de uma dor de cabeça muito forte, inclusive na nuca (segundo o Peter, sintoma de edema cerebral). O Peter orientou ela a tomar Ibuprofeno, me mandou na frente e falou pra ela ir no ritmo dela, o que demorou a acontecer. Fiquei um pouco preocupada com a inconsequência do que estava acontecendo, mas enfim, o guia estava lá pra observar e cumprir o papel dele. Ele deixou claro que se ela piorasse, iria descer, o que aterrorizou a menina, que queria chegar lá a qualquer custo. Mas acho que foi isso que fez ela parar de correr, e ajudou a melhorar os sintomas da altitude.
Em pouco tempo comecei a reparar que tinha vômito fresco pela trilha.Vi várias vezes até mais ou menos o que foi a metade do caminho. Numa das paradas mais longas que fizemos, de uns 10 minutos, um grupo pequeno parou do nosso lado e ouvimos a hora – 4h20 da manhã. Era mais do que eu achava, mas já era mais da metade. Fazia sentido também porque já tinha esfriado bastante, eu já estava incomodada com dedos dos pés gelados e minhas mãos não estavam mais quentes. Apesar de toda a roupa, já sentia frio no tronco. Pouco depois vimos a primeira baixa, uma mulher descendo apoiada em um guia. Comecei a parar cada vez mais pra respirar. Paradas curtas de menos de um minuto, mas que ajudavam a recuperar o fôlego. Estava com o GPS ligado dentro do casaco mas não queria saber qual era altitude, pra não afetar meu psicológico, tanto em termos de quando faltava pra chegar, quanto em termos de quanto ar faltava.
Em certo momento a Fiona perguntou pro Peter quanto faltava, e ele disse que já estávamos a 3/4 da borda da cratera. Olhei pra cima e vi lanternas muito, mas muito longe mesmo, e muito mais pra cima. Senti que minha frequência cardíaca já estava beirando o anaeróbico. Mas pensei “meu corpo precisa de mais oxigênio e menos esforço”. Achei que devia andar mais devagar. Mas como andar mais devagar se eu já estava extremamente lenta? Decidi dar passos menores, e a frequência baixou um pouco. Em outro momento, o Peter disse que faltavam 25 minutos. Nessa hora desisti de olhar pra cima, e senti uma queda na minha paciência, o que não era lá muito bom já que minha paciência quando acaba vai toda de uma vez. Se não era pra chegar, não chegaria, e se fosse demorar uma eternidade, eu continuaria assim mesmo. Paguei caro demais em todos os sentidos pra estar ali. Portanto, em momento algum pensei em desistir. A perna não obedecia, e estava há horas com a taquicardia do coração batendo a todo custo pra mandar oxigênio pro corpo. Parecia que minhas coxas tinham sumido.
Meu pé estava gelado apesar dos toe warmers, e os dedos das mãos bem frios apesar das duas luvas. Meu buff estava completamente molhado da respiração, e gelado, incomodando quando encostava no rosto. Já estava no ponto de começar a me apoiar nos bastões, e os pés escorregavam a cada passada, o que me obrigava a apoiar um bastão de cada vez pra dar cada passo. Mas não pensei em desistir. Estava muito cansada, porém não exausta. Lembrei de cada travessia em água gelada, em que a única solução pra sair dali era continuar nadando, ainda que contra a corrente. Ou seja, uma hora eu sairia do lugar. Lembrei do playlist que fiquei ouvindo por 6 meses pra essa viagem, e tudo isso me deu força pra continuar subindo. Uma hora o Peter me cutucou pra olhar pra trás: o dia começou a nascer nas nossas costas, e tudo à frente começou a passar de preto pra azul escuro. Resolvi arriscar uma olhada pra cima, na outra direção. Foi quando vi a placa do Stella Point (5739m) e não me contive, comecei a soluçar de choro, ouvindo o Peter gritar atrás de mim pra segurarmos a passada pois era agora que as pessoas começavam a passar mal se não se controlassem. Chorei muito, muito mesmo. De cansaço, de emoção, de perceber o quanto eu tinha dado pra estar ali, ainda mais sabendo que praticamente todo mundo que chega e passa de Stella Point, chega no cume. “É em Stella Point que a maioria das pessoas que não conseguem chegar fazem a volta” – lembrei dessa frase que li em algum site. Lembrei de um video de um cara que chegou em Stella Point, sentou, desistiu, e gravou sua razão. Tive muito medo disso acontecer comigo. Mas eu cheguei em Stella Point, e passei de Stella Point. E sabia que ia conseguir isso quando vi a placa lá debaixo. Por isso, chorei. Foi um festival de abraços no grupo!

As geleiras do Kilimanjaro Autor: Cissa Carvalho

Com tanta emoção, me desconcentrei. O cume estava perto, “just around the corner” disse o Joseph. Parecia logo ali, então bora correr pra foto. Erro crasso. Comecei a andar rápido demais (apesar de que ainda muito devagar), e em poucos minutos comecei e perder um pouco a sensação de equilíbrio. Eu conseguia ficar de pé, mas parecia que só me sentia segura se também me apoiasse nos bastões. Eu tinha noção da altitude, da escassez do oxigênio, do esforço físico descomunal que tínhamos acabado de fazer, caminhando mais de 6 horas pra estar lá, e tudo isso bateu na curta (em metros) porém interminável caminhada ao cume. A cada 5 passos, sentia que precisava sentar. Parava, me apoiava nos bastões, abaixava a cabeça e o corpo, e respirava muito. Quando voltava a andar, me concentrava nas geleiras, no tapete de nuvens, olhava pra trás pra ver o sol nascendo, admirava a neve na cratera, tudo isso pra me distrair um pouco e não sentir tanto a dor do esforço. Pedi aquele empurrãozinho e ganhei, pelas costas, e depois Peter me pegou pelo braço e acelerou um pouco o ritmo, mas tudo isso na base da piadinha – eu estava passando mal sim (apesar de que nada grave) mas não tinha como perder o bom humor. Quando não dá pra compartilhar a felicidade com os amigos, não tem porque não compartilhar com “estranhos”. Subimos então gradativamente até umas pedras, passamos pelo meio delas, e finalmente, lá longe, pudemos ver a placa. O Peter soltou meu braço e ficou um pouco pra trás. Não sei de onde veio a energia, mas foquei na placa lá longe (nem estava longe, talvez 100, 150 metros), e comecei a andar praticamente sem desconforto, mas somente até começar a chorar de novo. O Peter me perguntava o que era e tive que repetir 3 vezes pra ele entender já que eu chorava tanto que nem eu entendia o que estava falando. Me abraçou novamente e disse “why are you crying! you made it!”. E veio mais energia, andei até próximo da placa, coloquei a mochila no chão próxima ao Joseph, peguei as bandeiras, e tirei a foto em meio àquele monte de gente. Inclusive lembro bem que quando abri a bandeira Palestina algumas pessoas ficaram meio surpresas e até tiraram fotos, mas não guardei seus rostos. Meu único arrependimento foi não ter forças pra abrir a mala, pegar a carteira, dela tirar os adesivos do Corinthians, e cobrir aquele do Flamengo que está lá. Nem vou dizer que fica pra outra ocasião. Que fique pra outra pessoa. Meu objetivo era primeiro chegar lá, e isso eu consegui. Fazer festa em altitude é pra quem pode!

Finalmente, o cume – Autor: Cissa Carvalho

Voltei pra minha mochila, fechei, coloquei nas costas. Peter nos ofereceu chá, mas não me caiu bem. Minha cabeça estava pesada, e avisei que iria descer. Queria sim ficar lá em cima admirando, fazendo a gravação mental do lugar, fazendo uma baguncinha básica e tal, mas sabia que não era possível. Finalmente ficou plausível pra mim que chegar no cume não é só 1 noite, mas são vários dias, vários meses, várias pessoas. Na minha mochila carreguei nossa equipe inteira, minha família, os amigos, os meses de trabalho, os freelas solitários que tomaram fins de semanas inteiros, os sacrifícios e os treinos, as experiências anteriores, os conselhos, as decisões que nada tem a ver com montanha mas que culminaram nesse momento. Gravei um video lá em cima onde chorando, disse que foi foda. Não foram só as sete horas subindo que foram foda. Foram os 2 anos. Mas cheguei no meu cume, e cheguei bem. Pra mim, foi o ápice desse processo de ter voltado a viver. Senti orgulho e firmeza nas decisões que tomei pra estar ali. Me senti pequena, mas também me senti grande. Depois disso, tudo que é pequeno na vida fica cada vez menor. E por isso, queremos mais.
Como não tirei muitas fotos na subida, desci tirando foto de tudo. A cabeça latejava um pouco, mas cada metro abaixo era mais oxigênio e eu começava aos poucos a respirar melhor. Outros grupos subiam parecendo mortos vivos. Várias pessoas apoiadas em guias, outras sequer conseguindo ficar de pé. Vi 3 ou 4 pessoas subindo com oxigênio. Vi um ou outro cara com aquela cara de quem tá pronto pra correr uma maratona. De resto, todo mundo exausto, se arrastando. Em alguns grupos que fizeram a trilha no mesmo esquema que a gente, percebi que tinha gente faltando. Mas assim como fizeram comigo, conforme cruzava as pessoas, cujos rostos estavam sedentos por chegar no cume, eu falava “you´re 5 minutes away, congratulations”, e ainda que sem ouvir resposta, sabia que estava dando uma força. Meu grupo me acompanhou e paramos rapidamente em Stella Point pra comer uma coisinha e tomar uma água. Olhando pra frente e pra baixo, não acreditei que tínhamos subido tudo aquilo, e de novo, como no Kenya, fiquei feliz de ter feito no escuro. O ângulo da descida, e a quantidade de neve logo no nosso lado me surpreenderam. Com o sol brilhando e já várias pessoas tendo descido, a terra estava remexida. A poeira levantava conforme as pessoas desciam, a terra cobria a perna acima da canela, e eu assistia os guias e assistentes descendo com se estivesses esquiando. Nisso vimos uma mulher descendo apoiada em seu guia, bem estranha, pois se mexia mas parecia estar fora de si. Atrás deles provavelmente seu marido, meio atordoado também. E um pouco depois, outra pessoa descendo apoiada em um guia. Não demorei muito e peguei a técnica do esqui, conseguindo acelerar a descida, sempre de frente pro Mawenzi. Às vezes parava pra admirar em volta. Olhar pra trás. Mas não tinha noção que tinha estado lá em cima. Minha companheira tomou alguns tombos e foi ficando pra trás, então decidi terminar a descida no meu ritmo, quase até o começo do acampamento.

Terminando a descida do cume – Autor: Cissa Carvalho

Chegamos exaustas. Goodfrey e Good Luck foram os primeiros a nos parabenizar. Outros dois vieram também. Não perguntavam se tinha sido dificil: afirmavam que é difícil, e parabenizavam. Sentei por um tempo pra tomar chá, mas não consegui entender que estive lá. Também nem tinha forças. Fui pra barraca descansar um pouco, e o Peter nos deu 1h30 de sono. Ele também estava exausto.
A descida
Depois do descanso arrumamos tudo e tomamos um brunch pra recuperar um pouco a energia. Íamos em direção ao acampamento Mweka (3068m). Apesar de já termos andando 10 horas, as 3h restantes pareciam que iriam ser um passeio no parque, e foram. Com apenas 5% de subida, e o restante descida constante, a trilha se afasta rapidamente da cratera, e em menos de 1 hora já não é mais possível ver o topo do Kilimanjaro. O número de carregadores e grupos é muito maior já que esta é a única rota de descida pra todas as rotas de subida. Rapidamente saímos de deserto alpino e adentramos vegetação baixa, depois arbustos, e finalmente floresta fechada. A maior parte do percurso foi em tempo fechado, já que as nuvens já tinham subido.
Desci tentando conversar com o povo pra dar uma animadinha mas com exceção do Peter na segunda metade do caminho, não deu muito certo. Mas fui perguntando um monte de coisa e ouvindo um monte de história bacana sobre a experiência dele como guia. Ele comentou sobre nosso ritmo, sobre o ocorrido durante a subida, etc, etc. Foi bacana pra aprender o ponto de vista de quem é responsável por outras pessoas em situações extremas, e sobre como se portar como “cliente”, como montanhista, como parte de uma equipe.
O acampamento Mweka talvez seja o mais bem estruturado, tem até pia! Depois da janta já fizemos a cerimônia de agradecimento (leia-se gorjetas), onde novamente sobrou pra mim fazer o discurso. Mas como fui muito sincera, acabamos ficando todos bem emocionados. Isso é coisa deles, apesar de estarem lá toda semana, de conhecerem um monte de gente que nunca mais vão ver, acho que apreciam nosso agradecimento e o reconhecimento do trabalho extremamente organizado e eficiente deles. Eu jamais teria conseguido carregar tudo meu até ali. Um dia talvez consiga, mas muito do meu sucesso foi graças a eles – a comida ótima do James e do cozinheiro assistente Elias, que estimulava a gente comer mesmo sem apetite, a gentileza extrema do Said, o sorriso eterno do Good Luck, o bom humor do Peter que caía nas minhas piadinhas, Goodfrey com sua cara amarrada mas que cuidava das nossas barracas e foi o primeiro a nos cumprimentar depois do cume.
Fui dormir cedo, e foi a melhor noite da viagem enquanto em acampamentos.
DIA 6 – ACAMP. MWEKA > PORTÃO MWEKA > ARUSHA
A descida pro portão Mweka se dá por uma floresta fechada, mas com uma avenida de trilha. Em mais ou menos 3 horas se chega na saída. Assinamos o livro de saída, pegamos nossos certificados, almoçamos rapidinho. Foi talvez o momento mais triste da viagem, se despedir do nosso grupo, sem poder ter tempo de conviver com eles fora da montanha. Fiquei extremamente amuada de ter que dizer tchau pra todos eles. Inclusive de não poder dar mais equipamento (deixei minha luva de ski com o Joseph, já que ele não tinha nenhuma), de dar mais dinheiro, de fazer qualquer coisa pra ajudar a melhorar a vida deles um pouco, de não entrar naquele papel de turista gringo que está sendo servido, mas sim de companheiro de equipe, com ajuda recíproca. Foi triste, mas parte da viagem. Tanto que, assim como no Monte Kenya, na última despedida eu não disse “tchau” em swahili, disse “nos vemos um dia”.
Voltamos pra Arusha, e obviamente que na minha cabeça eu já pensava: bem, vim aqui pra ver como meu corpo reagiria à altitude, se eu ia gostar. É óbvio que eu ia gostar, afinal de contas eu me conheço, e fiquei fascinada com a altitude e isolamento das montanhas na Bolívia quando estive lá. Terminar este relato com o pensamento mais óbvio possível pode soar clichê, mas pra quem se identifica, é o melhor desfecho possível: talvez não tão longe, porém mais alto, mais difícil, mais desafio, mais conquista. É hora de me preparar pra próxima.

Parte da equipe na despedida – Autor: Cissa Carvalho

Asante sana Africa!
DADOS FINAIS
Km total 64,68 km
Altitude máxima Uhuru Peak, 5895m
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Sobre o autor

Nômade por acaso, Cissa Carvalho nasceu em São Paulo, já morou no Alabama e na Amazônia, e atualmente reside na capital Paulista até que os ventos novamente a levem pra algum destino inusitado do planeta. Trilha desde pequena e conheceu as montanhas com vinte e poucos anos, mochilou a América do Sul, andou pelas montanhas brasileiras e nos últimos anos tem se dedicado ao montanhismo de altitude, e mais recentemente à escalada em rocha. É bacharel em design gráfico e pós-graduada em design editorial.

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