Uma conquista, um fracasso

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No mundo do montanhismo, os protagonistas que são os montanhistas precisam encarar sempre na sua vida na montanha aquele terrível momento “Vou voltar porquê não dá mais“. Passei por isso em abril!

Combinei com um guia local de La Paz (excelente por sinal) de fazer uma investida ao Tarija e Pequeño Alpamayo. A investida seria rápida também, com apenas uma noite de acampamento na base do maciço do Condoriri, a 4.700 msnm. Aluguei a bota plástica da ASOLO e um par de crampons e vamo que vamo.

Ele me pegou com o transporte ontem cedo e de cara tive uma surpresa, ele estava levando o próprio cozinheiro! Não combinei isso, mas ele me disse que não queria ocupar a cabeça cozinhando e sim me guiando profissionalmente e com qualidade, tudo bem. Tomamos nosso rumo para o vilarejo de Tuni, que fica a 4.448 msnm. De lá fizemos o trekking ate o AB de mais ou menos cinco quilômetros.

Chegamos, montamos acampamento, tirei dezenas de fotos daquele lugar maravilhoso, de animais, formações rochosas, das lagunas e claro, lindos demais… e quando foi 18h nos recolhemos para dormir, pois começaríamos a investida as 02:00h (madrugada).

Obviamente não consegui pregar os olhos nem um minuto. Estava super excitado pela chance de escalar o Tarija e o Pequeño Alpamayo! Isso já foi um erro. Na hora do café da manha, outro erro. Não quis comer nada, só bebi dois copos de chá de coca, não pra aclimatar porque já estou muito bem aclimatado, mas porque adoro o chá.

Muito bem, me levantei meia noite sob um frio dentro da barraca de apenas 1 grau. Preparei-me, vesti tudo e sai para ficar olhando o céu absurdamente estrelado no frio de -4 graus, até aí tudo bem… He He he

Quando eles se aprontaram, seguimos pela trilha na madruga, com lanternas de cabeça. Apos um trekking de aproximadamente uma hora e meia chegamos à base da geleira do Condoriri, que leva ao Tarija e ao Pequeño Alpamayo. Coloquei o segundo par de luvas, a balaclava, os crampons, empunhei meu piolet (emprestei o outro pro cozinheiro), coloquei a cadeirinha, mosquetão, nos encordamos os três e começamos a subida.

Segundo problema, a bota plástica. Maldição de bota! Eu usava dois pares de meia profissional para alta montanha que comprara no dia anterior, e mesmo assim elas me machucavam muito as canelas e panturrilhas. Tudo bem, continuamos. Adotei o esquema meio que caranguejo, andando meio de lado para amenizar a dor na escalada.

Tudo piorou quando contornamos uma greta gigante e a inclinação da geleira passou a ser de cerca de 60 graus. Foi duro, mas delicioso escalar… Não para por ai, começou a ventar, e aquela neve poeira corria pra todo lado…A temperatura começou a cair.

Depois de três horas escalando a geleira, os três cordados, desviando de gretas enormes, lindas e mortais, senti meus dedos congelando, olhei para o relógio e ele marcava -14 graus. Okay, só faltava essa… Tive medo da maquina congelar e deixei ela dentro do casaco o tempo todo, era duro tirar foto portanto, da escalada em si, só tirei 6 fotos e fiz um vídeo.

Resolvi alternar as mãos e reduzir minha segurança pra salvar os dedos. Alcei o piolet no punho, e guardei a Mao no bolso. Quando ela ficava melhor, eu trocava de Mao e isso se repetiu ate o sol sair. Pra melhorar ainda a escalada, a neve estava muito fofa nos últimos 100 metros de desnível da geleira, e mesmo de crampons, dois passos para frente, um para trás. Isso foi terrível… gastei muita energia.

Chegamos ao cume do Tarija as 07h45minh da manha, o sol já saia o que atrapalhou bem as fotos no cume da montanha, pois eu queria tirar uma foto com o P. Alpamayo ao fundo. Descemos do cume e nos afastamos uns 30 metros para a lateral, e de La conseguimos um angulo legal para as fotos.

Foi ai que eu chamei o meu guia e disse: "Erwin, um montanhista que preze a própria pele deve saber a hora de retornar. Se eu continuar contigo agora tenho certeza, chegaremos juntos ao cume do p alpamayo, mas na volta você terá que me carregar porque esgotei minhas energias. Por isso, prefiro fotografá-lo e voltar. O que você acha?"

E ele me respondeu: "Paulo, você tomou uma atitude de montanhista, confio no seu julgamento, vamos descer."

Foi muito duro pra eu chegar a essa decisão. Quando atingimos o topo da geleira e só um declive de uns 45 a 50 graus com um desnível de só uns 40 ou 50 metros me separavam do cume do Tarija, eu já estava acabado. Pensei comigo mesmo "vamos la, mais um pouquinho, só ate o cume do Tarija pelo menos…", e fui.

Quando percebi que não teria mais forcas pro retorno, o que eu considero a parte mais importante de qualquer investida a montanha, seja ela alta ou não, comuniquei ao Erwin minha decisão e chorei. Chorei de felicidade por ter conquistado o cume do Tarija, e por estar ali, de frente pro Pequeño Alpamayo, meu desejo de conquista de quase dois anos.

Mas não fiquei triste não, pelo contrario, me sinto um baita sortudo por ter "mirado" o pico ali, cara a cara. Infelizmente fui derrotado pela soma de circunstancias com as quais não contava: Não ter dormido, não ter tomado café da manha, frio intenso na geleira, quase congelamento das mãos, neve fofa demais, a dor intensa causada pelas botas, e sei la mais o que… só faltou diarréia.

O frio foi delicioso, eu adoro o frio, mas foi intenso. Meu reservatório de água dentro da mochila virou um bloco de gelo. Minha barra de chocolate congelou. O sanduiche que o cozinheiro me deu pra comer quando chegássemos ao cume virou uma pedra, tudo isso dentro da mochila. Parece exagero, mas não e…

Foi demais… Intenso, maravilhoso, genial, não sei ao certo descrever a sensação que tive quando paramos na frente da geleira as 03:30h da madruga, e enquanto colocávamos o equipamento a geleira "cantava" seus sons essencialmente naturais enquanto o gelo rachava…e esse som ecoava por todo o vale, pois era muito alto!

E isso ai, felizmente eu fui sábio e decidi retornar. Uma conquista no dia era suficiente, e tive forcas pra retornar ao solo no final da geleira, onde paramos por uns 20 minutos e comi a barra de chocolate congelada pra repor as energias pro trekking de retorno ao Acampamento Base.

Nesse mesmo dia outros grupos tentaram o Pequeño Alpamayo e todos desistiram por causa das condições do gelo, coberto de neve fofa, e do frio forte no comecinho do inverno…

É isso ai…

Cerro Tarija. Maciço do Condoriri.
5.300 msnm
Temperatura no cume sem vento: -5 graus. Temperatura encarada na geleira: -14 graus
27.937 metros concluídos do projeto.

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Sobre o autor

Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.

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