Uma Questão de Justiça

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Ninguém é contra a SBM e muito menos que se comemore a escalada de 1912 durante a SBM. Ninguém é contra a visibilidade e os patrocínios que o evento possa atrair. Sou contra apenas a deturpação das palavras e da história.

Montanhista é coisa antiga e Ötzi, o homem do gelo, encontrado no Alpes italianos é o mais velho que conhecemos, mas certamente não foi o primeiro. Subir montanhas para fugir de predadores, migrar, caçar, garimpar, orar ou guerrear faz parte da humanidade desde a aurora dos tempos. Mas não é deste tipo de montanhismo que ainda causa alguma controvérsia no mundo esportivo brasileiro. Discute-se qual foi o marco inicial do montanhismo esportivo brasileiro. Para se chegar a uma conclusão lógica, isenta de bairrismos medíocres, devemos nos concentrar em três definições ou parâmetros importantes.

O que é montanhismo esportivo?
Esta resposta já é considerada consensual e estabelece uma relação simples com o prazer de escalar eliminando qualquer outro motivo de ordem prática ou econômica. O conceito de esporte conjuga prazer e competição desde a antiguidade clássica.

O que é montanhismo brasileiro?
É o montanhismo praticado no Brasil (território), por brasileiros (naturais ou naturalizados) ou ambos?
A maioria das pessoas interessadas afirmam que este parâmetro envolve apenas brasileiros escalando esportivamente montanhas em território brasileiro. Considero igualmente meritória a escalada de um estrangeiro em terras brasileiras como a de um brasileiro em terras estrangeiras. Mas a prática demonstra ser irrelevante tal conceito para se estabelecer o marco inicial.

O que vem a ser um marco inicial?
Poderíamos definir como sendo apenas a primeira escalada esportiva em território brasileiro e a questão estaria resolvida, mas a palavra inicial sugere que desta primeira ação resultou um movimento que se manteve constante até os dias de hoje. O estabelecimento de um marco inicial só se justifica para determinar a fonte inicial de inspiração para o moderno montanhismo esportivo brasileiro.

Duas escolas de montanhismo disputam esta primazia. O Rio de Janeiro, capital do império, cercado por montanhas maravilhosas sempre foi exposto às idéias e modismos das metrópoles mais influentes da época e já em 1817 viu a inglesa Henrietta Carsteirs escalar o Pão de Açúcar. Feito repetido no dia seguinte por um português com objetivos nem um pouco esportivos. No Paraná, em pleno sertão, o conceito de escalada esportiva chegou com os engenheiros italianos contratados para a construção da ferrovia, mas como veremos adiante, fincaram raízes fortes e profundas.

Duas meritórias expedições se candidatam ao posto, mas para o bem da verdade poderiam ser três. A de José Teixeira Guimarães no Dedo de Deus em 1912, a de Joaquim Olimpio de Miranda e a pouco conhecida expedição de Joaquim Antonio Coelho, ambas no Marumbi e que por rotas diferentes atingiram cumes distintos e pouco distantes entre si na mesma tarde de 21 de agosto de 1879.

De acordo com a lenda, o espírito empreendedor do pernambucano José Teixeira Guimarães sentiu-se desafiado pelas declarações de um grupo de escaladores alemães anteriormente derrotados pela montanha. Cheio de brios nacionalistas, reuniu um grupo de intrépidos teresopolitanos e depois de superar complexos desafios técnicos com audácia e criatividade lograram alcançar o cume. Não restam dúvidas quanto a sua natureza estritamente esportiva envolvendo ao mesmo tempo o espírito competitivo contra outra equipe – mesmo que imaginária – colaboração e sincronismo entre os integrantes do grupo, planejamento de uma logística complexa, desenvolvimento de técnicas sofisticadas para o local e a época e uma estratégia de divulgação que perdurou no tempo. Mas a iniciativa arrojada não inspirou seguidores e nem popularizou os avanços técnicos desenvolvidos durante a escalada, de forma que a repetição do feito demorou 20 longos anos quando a façanha não passava de velhas lembranças.

Da expedição de Joaquim Antonio Coelho pouco se conhece além de que alcançou um dos principais cumes no Marumbi usando uma rota própria na mesma tarde em que a equipe concorrente atingia o depois denominado Olimpo. Conhecendo o Marumbi e excluindo a rota usada pelos concorrentes pode-se seguramente afirmar que não faltaram desafios técnicos comparáveis aos enfrentados 33 anos depois no Dedo de Deus.

As duas expedições simultâneas no Marumbi, e documentos oficiais da época, comprovam o interesse esportivo pela montanha que mobilizou parte significativa da comunidade para colaborar e festejar as conquistas. A competição terminou com a vitória da equipe liderada por Joaquim Olimpio de Miranda que logrou alcançar o ponto mais alto por caminho menos técnico, mas não condenou o feito e as técnicas desenvolvidas na escalada de Joaquim Antonio Coelho ao esquecimento. Depois dele muitas rotas técnicas foram abertas nas paredes do Marumbi e tornou-se célebre a expedição de 1902 escalando os paredões da face leste.

Estas expedições promoveram um evento esportivo inédito no Brasil e coube a Joaquim Olimpio de Miranda, farmacêutico e comerciante, divulgar a façanha e inspirar todo um movimento que muito rapidamente extrapolou a comunidade ao pé da montanha para se alastrar pela capital. Joaquim Olimpio, conhecido também por Carmeliano, guiou sucessivas ascensões durante os 21 anos que antecederam sua morte em 1900. Um ano depois, em 1901, Hercília Pinheiro Lima torna-se a primeira mulher a escalar a montanha e a língua local ganhou o termo Marumbinismo como sinônimo de alpinismo.

Por todos os critérios que se possam imaginar, Joaquim Olimpio de Miranda foi pioneiro, deixou discípulos e o Marumbi naquele 21 de agosto de 1879 é incontestavelmente o marco inicial do montanhismo brasileiro. Isto é apenas uma questão de justiça com a geografia, com a data, com a montanha e principalmente com o homem.

Quanto a polemica sobre o Marco Inicial do Montanhismo Esportivo Brasileiro

A língua portuguesa é extremamente rica e exata para que nela encontremos palavras que nos permitem traduzir com precisão absoluta qualquer pensamento. A distorção do significado das palavras é reprovável sob qualquer ponto de vista, assim como é a distorção da história.

Montanhismo é o ato de subir montanha. Esporte é a prática competitiva motivada pelo prazer (arco e flecha só passou a ser esporte depois da consolidação das armas de fogo). A designação de brasileiro é exclusiva dos natos ou naturalizados no Brasil. Marco é um acontecimento documentado e incontestável e a palavra Inicial pressupõe continuidade.

O erro esta em distorcer a língua e a história para justificar objetivos ou necessidades atuais. A escalada de 1912 no Dedo de Deus é importante  o suficiente para ser comemorada com a festa planejada para a SBM sem a necessidade de elevá-la ao que nunca foi; ponto de partida incontestável do montanhismo esportivo brasileiro.

Argumentos contrários desfilam aos montes, mas é necessário um mínimo de honestidade intelectual, afinal neste ramo ninguém é bobinho. Alguém plantou o trigo, outro colheu, mas o bolo só começou a existir na cozinha. Na minha interpretação ninguém colocou a cobertura porque estamos longe de terminar com o recheio e nem chegou ao forno. Montanhismo é um processo e nunca chegará o dia de colocar a cereja no topo. A infeliz decisão de decretar um marco inicial para o montanhismo esportivo brasileiro foi política, assim como é política a atitude dos que discordam do termo. Nas democracias pode-se discordar enquanto nas ditaduras concordar é o único direito. Federações e confederações podem muito no mundo oficial, mas não tudo. Existem limites. Para se conhecer as reais motivações que se escondem por detrás de qualquer decisão bem intencionada basta recorrer ao expertise policial: siga o dinheiro.

Ninguém é contra a SBM e muito menos que se comemore a escalada de 1912 durante a SBM. Ninguém é contra a visibilidade e os patrocínios que o evento possa atrair. Sou contra apenas a deturpação das palavras e da história.
 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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