Varando pelo Varadouro – 2a parte

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Cem (100) quilômetros percorridos a remo sob o sol e a chuva no Canal do Varadouro, fronteira entre São Paulo e Paraná com muita história. Situado numa região abandonada, esquecida e preservada, é território de matas virgens e estuários com águas salobras, montanhas e mangues, homens simples e animais selvagens. Uma viagem no tempo começando em Cananéia e terminando na Ilha do Mel.

 

A entrada do Brasil na segunda guerra mundial novamente postergou os trabalhos até 1952 quando finalmente a obra começou sob a direção do engenheiro José Ayres que o alargou para 50 metros. Apesar de aberto aos particulares desde julho de 1954 a obra só se encerrou em novembro de 1958 e foi inaugurada no ano seguinte. Dois anos depois, em 1960, a Cia. Fluvial Sul Paulista iniciou uma linha regular de barcas ligando Iguape a Paranaguá, hoje desativada.

Saímos do corte artificial quando ultrapassamos um sinistro e solitário atracadouro no meio do nada que atende a Congregação Cristã do Brasil, escondida por detrás dos morros da Serra do Gato que agora se desenhava a frente. Tal congregação é a primeira igreja pentecostal a se instalar no Brasil. De origem ítalo-america não faz cobrança do dízimo, não se envolve em política e é totalmente avessa a publicidade. A velocidade que a maré nos impulsionava era impressionante e em minutos contornamos os primeiros morros para vislumbrar o impressionante arco de montanhas cujo ponto focal é o Bico Torto do Rio dos Patos (6) e termina no morro de Sebuí. Por detrás deste anfiteatro natural se ergue a não menos marcante Serra do Gigante. 

Até me surpreendi ao ver o canal se dobrar a direita por detrás de uma ilha. Estávamos já às portas da Baía de Pinheiros e bem próximos de nosso objetivo do dia, mas a preguiça é o carrasco do preguiçoso. Resolvemos cortar caminho nos arriscando pelos baixios do lado direito da ilha em vez de acompanhar o canal profundo e nos demos mal. Encalhados com a Vila de Fátima a nossa frente perdemos uma boa hora empurrando o caiaque com o lodo visguento na altura dos joelhos, mas enfim atravessamos o baixio e o canal para bater a proa diretamente no banco de areia bem defronte a vila.
 
Em frente as casas sobre o barranco, um solitário caiçara nos observava com atenção enquanto manobrávamos para cruzar o bando de areia com o caiaque e as pranchas nas costas. Já dentro da laguna nos orientou para aportarmos em terra firme e quando perguntado sobre onde poderíamos passar a noite respondeu “Aqui mesmo”, apontando com o dedo a casa a suas costas. Tínhamos vencido os dezenove quilômetros desde Ariri em tempo recorde e rapidamente transferimos todas as tralhas para a grande varanda ao lado da casa, pendurando tudo na vã esperança de que secassem ao vento até o amanhecer. Imediatamente acionaram um gerador a gasolina e nos disponibilizaram dois dormitórios, a cozinha e o banheiro com água quente. As mulheres gostaram bastante do negócio e foram as primeiras a entrar no chuveiro tirar a craca de dois dias e uma noite ao relento. Dormir limpos e secos numa cama com teto acima da cabeça, paredes no entorno e assoalho debaixo dos pés, depois de percorrer sessenta quilômetros boiando na umidade constante não tem preço. 
 
O caiçara é o habitante tradicional do litoral sul brasileiro, descendente da miscigenação do índio guarani com o europeu das primeiras levas mais alguma pitada de sangue africano que desenvolveu cultura própria em função do isolamento da região. Muito hospitaleiro e oportunista, vive em comunidades familiares inter-relacionadas com as demais por laços religiosos e de parentesco. Sua identidade própria vem rapidamente se perdendo com a chegada dos turistas, da televisão e dos cultos neopentecostais que chegaram a região a partir de meados do século vinte.
 
Acordamos com o delicioso aroma de café fresco e imediatamente iniciamos nossa rotina vestindo as roupas sujas, molhadas e mal cheirosas, embalando tralha e carregando tudo no caiaque. A casa ao lado não tinha esquadrias e perguntei para o anfitrião se faltava instalar.
 
         – É casa de fandango! – respondeu de pronto.
 
E lhe disse que levava um disco de vinil com musicas de crente (15) para o filho do Leonildo na comunidade vizinha. 
 
         – Então conhece o Leonildo! O velho é o único que não se vendeu em troca de cesta básica. São todos crentes de meia tigela. Basta bater um tamanco deste lado que vem todos bailar o fandango. Isto se não tiver nenhum “irmão” por perto. 
 
O Johny e a Kellen já estavam no meio do canal e seguimos no rastro para aproveitar a maré favorável e com poucas remadas estávamos em frente a comunidade de Abacateiro. Cinqüenta metros de lodo nos separavam dos caiçaras que se amontoavam em terra para ver quem chegava. Desci do caiaque e afundei no lodo até os joelhos. Com o disco autografado pelo próprio Matheus Yansen (16) em mãos fui chafurdando no lodo cumprir minha promessa e entrega-lo ao Juari que o recebeu como se fosse um tesouro. Encontrei Seu Leonildo careca e perguntei se o cabelo tinha sido raspado pela polícia. Negou e riu com o bom humor de sempre.
 
          – Cortei pra acabá com os piolho!
 
Seu Leonildo é figura folclórica, exímio nas artes do fandango, fabrica violas e rabecas (17) em madeira de caxeta (18). O fandango tornou-se típico na região, mas começou nas cortes européias da idade média. O certo seria dizer fandangos porque são mais de vinte coreografias, uma para cada ocasião e variando nas seqüências. Possui hierarquia rígida e complexa determinando quem pode dançar esta ou aquela “marca” (19), mas o que mais o diferencia é quando os dançarinos acompanham os músicos batendo ou arrastando seus tamancos (20) de caxeta contra as tábuas rústicas do assoalho. 
 
Seus filhos são hábeis artesãos na fabricação da canoa caiçara, esculpida num só tronco de árvore. Esta canoa é uma obra prima da cultura tupi-guarani, originalmente escavadas em troncos de guapiruvú ou canela (21) a golpes de machado e enxó (22). Seu design é perfeito a ponto de resistir ao tempo e a tecnologia sendo ainda usado nos cascos de fibra de vidro. O Juari nos auxiliou na busca das ruínas do último estabelecimento industrial da região que faliu em meados da década de 1960. Tratava-se da serraria impulsionada por uma máquina a vapor de 1918 instalada próxima da foz do Rio dos Patos, em frente à Vila de Fátima. Da serraria ainda resta a locomóvel de fabricação inglesa enferrujando semi enterrada no barro e muitas histórias contadas pelos caiçaras da pequena comunidade familiar de Abacateiro. 
 
Os Pereiras foram expulsos de suas terras tradicionais para as margens da Baía dos Pinheiros após a criação do Parque Nacional de Superagui no ano de 1989 e subsistem apenas da pesca, do artesanato e de suas lembranças das animadas noitadas de fandango.
 
A Isabela permaneceu no caiaque se coçando das picadas de percevejos que ganhou no colchão do caiçara, indignada com a quantidade de cachorros sarnentos e famélicos (23) que se amontoavam a minha espera em terra firme. Mas a verdade é que os humanos não vivem muito melhor que os cães naquela comunidade e voltamos para águas fundas no encalço do Johny e da Kellen que já sumiam no horizonte.
 
Na imensa Baía dos Pinheiros reencontramos os guarás, as garças e os socós alimentando-se nos imensos baixios expostos pela maré. Os botos e os biguás nos faziam companhia nos canais profundos e o horizonte oeste estava todo bordado por montanhas e serras azuis. Da Serra da Prata ao Ibitiraquire seguindo até os três picos da Serra do Gigante. Éramos orientados pelo grande bloco de pedras brancas e salientes no meio da baía que a distância pareciam os panos de um grande veleiro. O branco é guano (24) de biguá e reveste apenas a parte superior do conjunto que permanece seco, acima da mais alta maré. 
 
O sol nos castiga nesta travessia e fizemos algumas paradas sobre bancos de areia, a última defronte a Ilha da Pinheira já dentro do Canal de Superagui onde os padres da Cia. de Jesus já mantinham um estabelecimento agrícola e religioso de frente para a Ilha das Peças antes de 1640 e partiam em missão evangelizadora por toda a região. Mas oficialmente só receberam estas terras da Câmara e do povo de Paranaguá em 1707 que determinaram pertencer aos padres toda a margem seguindo o Rio Varadouro Velho até o mar grosso. 
 
Em 1721 o ouvidor pardinho os proibiu de cobrar pedágio pelo trânsito das canoas e estabeleceu contratos com particulares para realizar este serviço. O que não os impediu de alcançar ali, como em todos os seus empreendimentos, estrondoso sucesso só interrompido com sua expulsão do Brasil pelo Marques de Pombal que suspeitava de suas simpatias com a causa espanhola. 
 
Apesar das autoridades designarem inúmeros fiéis depositários para a administração dos bens deixados pelos padres jesuítas, a fazenda foi à falência sob a administração da Coroa (25) e depois abandonada. A capelinha da missão perdurou até o início do século vinte e a pequena imagem de São João Batista foi transferida ao Museu Paranaense.
 
Na Ilha dos Pinheiros, bem a nossa frente podíamos ver as ruínas do Armazém do Francês, na realidade do suíço Robert Melly, sócio com seu irmão George Charles Melly na casa bancária George & Robert Melly Cie. que muito apoiou a colônia fundada pelo ex-consul suíço Carlos Perret Gentil que chegou a Superagui acompanhado por cinco famílias de emigrantes em 1851 disposto a iniciar uma nova colônia. 
 
No ano seguinte adquiriu sem nenhuma ajuda governamental quase a totalidade da península de Superagui e a ponta sul da Ilha das Peças antes pertencentes a um comerciante inglês obrigado pelo governo da Inglaterra a desfazer-se dos escravos em 1830, o que tornou a terra improdutiva. Inicialmente pensava em adotar o modelo paulista mantendo o monopólio da compra da produção e venda dos insumos, mas as dificuldades do projeto o levaram a ofertar lotes de sete hectares a serem pagos em vinte anos ou o pagamento de aforamento anual aos que não apresentavam condições de compra.
 
Até sua morte em 1863 conseguiu reunir vinte famílias entre suíços, franceses, alemães, dinamarqueses e brasileiros sendo que apenas duas se tornaram proprietárias. Dedicavam-se principalmente ao cultivo do café para a exportação e a agricultura de subsistência, mas depois alcançaram notável progresso explorando madeiras de lei, cultivando uvas e produzindo vinhos. Construíram serrarias para beneficiar os troncos, olarias para fabricação de tijolos e telhas, moinhos e engenhos para processar a produção de alimentos que eram exportados por via marítima para Paranaguá, Guaraqueçaba, Cananéia, Iguape e até muito mais longe.
 
Aguardamos a chegada do Johny e da Kellen antes de seguir costeando as ilhas. O caiaque desenvolvia sem esforço o dobro da velocidade das pranchas de stand up e isto nos obrigava a paradas constantes. A segunda ilha, do Pinheirinho, é famosa por abrigar um santuário para papagaios-de-cara-roxa ou chauá que fazem uma bela revoada ao final da tarde. 
 
Seguimos costeando as ilhas até a comunidade de Barbados onde esperávamos encontrar algum lugar para almoçar. As encostas do morro de Barbados foi o lar de Guillaume Henri Michaud, o mais ilustre emigrado do grupo de Perret Gentil que se tornou conhecido apenas por William Michaud (7). Suíço francófono da cidade de Vevey que desembarcou no Rio de Janeiro em 1849.
 
Enquanto algumas famílias abandonavam o empreendimento e muitas outras chegavam, William progredia em diferentes artes muito além da econômica. Tornou-se juiz de paz, agente dos correios e professor primário ministrando as aulas na sala de sua própria casa, mas se imortalizou por sua arte. Exímio aquarelista registrou a paisagem física e humana da região com tintas e papel enviados por suas irmãs da Suíça e por figuras marcantes da política provincial como o Visconde de Nacar e Alfredo Taunay que mantiveram com ele continuada correspondência. Suas maravilhosas aquarelas hoje enriquecem coleções particulares e museus no Paraná e na Suíça. A própria casa em que nasceu na cidade de Vevey é ocupada pelo Musée Historique em grande parte dedicado a preservação de seu legado.
 
Michaud, apesar de apolítico, também teve seus problemas com o Estado. Durante a revolução federalista foi, junto de toda a comunidade, extorquido pelos maragatos (oposição) e depois preso pelos pica-paus (situação) do Mal. Floriano e arrastado com os dois filhos para Paranaguá. Ao retornar encontrou a casa saqueada pelos soldados e a família escondida no mato. Novamente na miséria caiu em lenta depressão que se agravou um ano e meio depois com a morte da esposa e companheira de uma vida difícil de imigrante.
 
Toda a colônia entrou em declínio com a confusão e as incertezas que se seguiram à proclamação da república em 1889 e pouco afastado da atual Vila de Barbados ainda restam os alicerces de pedra da antiga casa de William Michaud enquanto seus ossos descansam no cemitério de San Martim, nas margens do Canal de Superagui, onde foi enterrado em 1902.
 
Barbados não foi uma escolha feliz. Avariamos o leme do caiaque numa manobra desastrada ao aportar na pequena praia e não havia comida no único restaurante do lugar. Mas as mutucas (14) estavam insaciáveis e atravessamos o canal até a comunidade de Bertioga. Manobrar o caiaque sem ajuda do leme se mostrou bastante complicado e cansativo. Em Bertioga o vento mantinha as mutucas afastadas e encontramos feijão, arroz e peixe para o almoço. Demorou, mas não decepcionou. Enquanto almoçávamos e esperávamos a maré mudar para vazante chegou quatro pescadores esportivos devidamente uniformizados. Vinham para um banquete de ostras previamente encomendado e deu até pena do caiçara quando pediram molho tártaro.
 
Junto com os pescadores veio uma tempestade do leste. O vento do mar encrespou a água e fez os barcos ancorados se chocarem acabando de quebrar o leme. Então temi pela continuidade do passeio, mas chegar a Barra de Superagui não era uma opção e seguimos em frente. 
 
Também sobre o Canal de Superagui nos descreve o Eng. Sarmento em 1850; “as dez horas de 12 de setembro, clareando o dia embarquei, mas logo depois do meio dia caiu um forte aguaceiro que me obrigou a desembarcar num sítio na margem de um rio onde nos demoramos até as três horas. Então continuei a viagem até as 4 ½ horas em que caia um forte temporal de vento. Desembarcamos na casa de uma pobre velha que nos agasalhou o melhor que pode. Todo o resto da tarde e noite ventou muito e choveu. Tivemos de passar muito incomodados do frio, por termos molhado nossas cobertas, e não ter a pobre gente que nos hospedou, as suficientes para se garantirem do mesmo frio, dormindo grande parte das pessoas da família em roda do fogão”.
 
A chuva e o vento contrário nos proporcionaram um sério obstáculo, mas também me ensinou a manobrar o caiaque apenas com os remos. Quem mais sofreu foi a Kellen que não conseguia avançar com sua prancha e a rebocamos até o trapiche na Barra. Procuramos abrigo na Pousada Centauro que já conhecíamos de outros carnavais e quase apanhei da Kellen quando descobriu que o proprietário era o barqueiro que nos conduziu ao Rio dos Patos (6) um ano antes.
 
          – Então você já conhecia o sujeito? – perguntou indignada.
 
Expliquei que não tive escolha já que foi o único a aceitar aquela empreitada, mas depois de inspecionar as acomodações limpas e extremamente confortáveis para o padrão da viagem até que se acalmou. 
 
Da barra de Superagui temos notícias de 24 de setembro de 1549 através do mercenário alemão Hans Stader que viajava numa nau espanhola desgarrada da esquadra por uma terrível tempestade; "Quiz Deus, porém, que ao chegarmos mais perto dos escolhos se nos deparasse porto, no qual entramos. Ahi avistamos pequeno barco que fugiu de nós e se escondeu por detrás de uma ilha, onde não o podíamos ver, nem saber que barco era, porém não o seguimos. Deitamos aqui ancora, agradecendo a Deus que nos salvou, descançamos e enxugamos a nossa roupa. 
 
Eram mais ou menos duas horas da tarde, quando deitamos ancora. De tarde veio grande embarcação com selvagens, que queriam falar comnosco. Nenhum de nós, porém, entendia a língua delles. Demos-lhes algumas facas e anzóis com que voltaram. Na mesma noite veio mais uma embarcação cheia, na qual estavam dois portugueses. Estes nos perguntaram de onde vínhamos. Respondemos que vínhamos de Espanha. A isto replicaram que devíamos ter um bom piloto, que pudesse nos levar ao porto, porque, apesar de elles bem o conhecerem, com uma tempestade destas não poderiam ter entrado. Contamos-lhes então tudo e como o vento e as ondas quase nos fizeram naufragar, e quando nos julgamos perdidos, ganhamos inesperadamente o porto. Foi, pois, Deus que nos guiou milagrosamente e nos salvou do naufrágio, e nem sabíamos onde estávamos.
 
Ao ouvirem isso, admiraram-se muito e agradeceram a Deus e nos disseram que o porto onde estávamos era Supraway (Superagui), e que estávamos a 18 léguas de uma ilha chamada São Vicente, que pertencia a El-Rei de Portugal, e lá moravam elles e aquelles outros que tínhamos visto no barco pequeno a fugirem por pensarem que éramos franceses.
 
Perguntamos também a que distancia ficava a Ilha de Santa Catharina, para onde queríamos ir. Responderam que podia ser umas 30 milhas para o sul e que lá havia uma tribo de selvagens chamados Carios (Carijós) e que tivéssemos cautela com elles. Os selvagens do porto onde estávamos chamavam-se Tuppin Ikins (Tupiniquins) e eram seus amigos, de modo que não corríamos perigo.
 
Perguntamos mais em que latitude estava o lugar, e responderam-nos que estava a 28 graus, o que era verdade. Também nos ensinaram como havíamos de conhecer o pais. Quando o vento de es-sueste cessou, melhorou o tempo com o vento de nordeste. Levantamos então ferro e rumamos para a terra já mencionada".
 
Bem instalados e de banho tomado pudemos estudar os desafios do dia seguinte com toda a calma. Estudamos demoradamente a arrebentação das ondas sobre as praias da Ilha de Peças e observando a passagem dos barcos também identificamos um canal natural. Passaríamos numa avenida entre as duas arrebentações, a externa no banco de areia e a interna da praia. Também conversamos com os pescadores que confirmaram nossas deduções e forneceram o melhor horário para a partida. 
 
A Kellen nos reservou duas surpresas para a noite. A primeira é que estava completando 33 anos e a segunda é que não sabia nadar. Fez 88 quilômetros em pé numa prancha instável e se no dia seguinte, no mar grosso, continuar teimando em não usar o colete salva-vidas dificilmente chegara aos 34.
 
Mas nossa jornada estava só a 14 quilômetros do fim e a noite era de festa. Percorremos toda a vila a procura de um bolo para comemorar o aniversário ou um simples jantar. Só encontramos boteco de pinguço aberto e como havia deixado o facão no barco tivemos que voltar a pousada e nos contentar com pastel de queijo, iscas de peixe e cerveja, muita cerveja! Foi a melhor noite da viagem com chuveiro realmente quente, cama limpa sem percevejos e nem sombra dos pernilongos. 
 
Durante a madrugada choveu um pouco e amanheceu melhor que a encomenda. Às seis horas já estávamos em pé tratando de levar os apetrechos até a água depois de encarar um café bem reforçado. Partimos com mar sereno no intervalo entre as marés e desta vez obrigamos a Kellen usar o colete salva-vidas. Melhor assar os sovacos do que alimentar os peixes! Executamos o plano seguindo por um corredor de pouco mais de dez metros de largura com ondas arrebentando dos dois lados. Algumas vezes se estreitava a ponto do caiaque navegar na crista da onda e noutras a distância crescia tanto que só subíamos e descíamos lateralmente na marola.
 
Com a Ilha de Peças se distanciando e a maré crescendo apontamos as proas para as ilhotas de Palmas no meio do Canal Norte recheado de tintureiras (26). O caiaque e as pranchas corcoveavam como se montados em potros xucros. Ondas vinham de frente, de lado e por trás, às vezes ao mesmo tempo em direções opostas, levantando o caiaque na crista para depois joga-lo direto no vão. Quinhentos e tantos metros bem adrenados para em seguida esquentar as pás de remo rumo a arrebentação numa pequena praia de areia a direita da ilhota mais ocidental. Aportar na arrebentação com as pranchas é mole, mas surfar com o caiaque de sete metros pesando quase trezentos quilos foi tenso.  
 
A Ilha de Palmas é um pequeno aglomerado de três morros rochosos cobertos de palmeiras jerivá e trepadeiras distantes pouco mais de três quilômetros do istmo de Brasília na Ilha do Mel. Dali tem-se excelente visão tanto da Fortaleza de Nossa senhora dos Prazeres como do Farol das Conchas na extremidade leste da ilha, instalado em 1872 sob a supervisão do Eng. Zózimo Barrozo. Importado dos Construtores P&W Maclellan de Glasglow, Escócia, é todo em ferro fundido e é ainda operacional.
 
No dia 13 de setembro de 1850 escrevia o Eng. Sarmento; “amanheceu ainda chovendo, porém já não ventara boa parte da noite. Daí saímos às 3 ½ da manhã e às 8 horas estávamos na fortaleza da barra de Paranaguá. Passei o resto do dia examinando o estado de suas fortificações, armamento, etc”.
 
Os habitantes de Paranaguá se sentiam inseguros desde o fim da união ibérica e reivindicavam algum tipo de proteção da Coroa. A situação ficou crítica quando um navio pirata francês naufragou dentro da baía em 1718, mas somente em 1734 foi instalada uma única peça de artilharia na entrada da barra. Em 1765, o Marques de Pombal ordena a construção da fortaleza na Ilha da Baleia (27) diante da crescente tensão entre Portugal e Espanha. A obra foi entregue ao Tenente Coronel Afonso Botelho de Sampaio e Souza que montou seu escritório no antigo colégio dos jesuítas. Três anos depois o projeto de autoria do também Tenente Coronel José Custódio de Sá e Faria estava pronto com as muralhas de sustentação do terrapleno, corpo da guarda, prisão e enxovias com abóbadas, capela, quartel da tropa, casa da pólvora e casa do comandante, equipada com seis peças de ferro e bronze – duas de calibre 23; duas de calibre 18 e duas de calibre 12. Nos anos seguintes passou por algumas reformas e melhoramentos, mas também por longos períodos de completo abandono.
 
Os canhões disparam apenas uma vez em 1850 contra o cruzador inglês HMS Cormorat que adentrou a baía e aprisionou os brigues Sereia e Dna. Atina e a galera Campeadora sob suspeita de tráfego de escravos. Ao retornar ao mar, passando pela fortaleza com suas pressas a reboque, foi surpreendido por fogo de artilharia que o deixou a deriva. A ação foi conduzida à revelia por um grupo de indignados parnanguaras e custou o posto de comando ao Capitão Joaquim Ferreira Barbosa que depois foi submetido ao conselho de guerra.
 
Recebeu pequenos melhoramentos em 1905, 1911 e 1913, quando no alto do Morro da Baleia foi construída uma bateria de canhões de maior alcance e dotados de equipamentos giratórios que permitiam a guarda dos dois canais de acesso à baía, o antigo ao Norte e o da Galheta ao Sul. Durante a Segunda Guerra Mundial toda a ilha esteve sob ocupação de forças militares, medida na época considerada indispensável à proteção do porto e Baía de Paranaguá e depois definitivamente desativada. Hoje está sob a guarda do IPHAN.
 
Na Ilha de Palmas já tem sinal de celular e a Kellen queria ligar para a mãe avisando que estava bem, mas precavida perguntou antes:
 
            – Ligo agora ou ainda corremos o risco de morrer?
          – Não vamos morrer, mas pra ter certeza ligue quando chegar na Ilha do Mel – respondeu a Isabela de forma automática.
 
Depois desta resposta animadora tratamos bandear toda a tralha para a praia oposta, de frente para a Ilha do Mel, onde as ondas quebravam com mais força. Avisei então que não podia dar suporte para as pranchas até passar a arrebentação e ali cada um cuidaria do próprio pescoço. Embarcamos debaixo de cacetada do mar e forçamos os braços com a bunda mergulhada em meio palmo d’água para só descansar cem metros adiante. A Kellen passou apuro e caiu da prancha, mas a garota tem fibra e perseverou. Subiria novamente na prancha quantas vezes o mar a derrubasse.
 
No meio do canal reencontramos os golfinhos nadando despreocupadamente, sinal que deste lado não haviam tintureiras (26) e a praia crescia a nossa frente. Desta vez aportamos sem traumas, mas em terra firme a Kellen chorou copiosamente.
 
Mas faltava muito para a brincadeira acabar e tínhamos ainda que transportar cento e vinte quilos de tralhas para o outro lado do istmo, na baía onde atracam as barcas. Do mar vi alguns parapentes flutuando sobre a ilha e em terra liguei para os loucos torcendo para que aterrassem e viessem nos ajudar. Mas os loucos conhecidos estavam muito distantes naquela tarde e tivemos que nos virar sozinhos com a carga.
 
Carregamos o caiaque a quatro mãos por uns cinqüenta metros em duas paradas, mas as costas começaram a gritar. Então saímos explorando as imediações em busca de uma solução e encontramos uma carreta para transporte de lancha dando sopa na praia. Um juiz me garantiu que furto para uso não é crime e surrupiamos a bicha. Acomodamos o caiaque e as pranchas, mas não agüentamos puxar nem cem metros pela areia fofa. Descarregamos tudo e levamos só o caiaque até a baía onde a Isabela se encarregou de navegar com ele até o trapiche, então voltamos para buscar as pranchas e as cargas que a Kellen vigiava na praia. 
 
Ao meio dia no Canal da Galheta com tudo em cima da barca e as costas em pandareco, enfim concedemos a tão esperada autorização:
 
          – Kellen agora pode ligar pra tua mãe!
 
 
Protagonistas:
Isabela Maria Fiori, João (Johny) Carlos de Andrade, Julio César Fiori e Kellen Yoko Nakao.
 
Lugares percorridos:
Ilha de Cananéia, Baía de Trapandé, Canal de Ararapira, Ilha de Casca, Ilha do Cardoso, Morro do Pedro Luiz, Balneário de Marujá, Vila de Ararapira, Rio Varadouro Velho, Vila de Ariri, Canal do Varadouro, Vila Fátima, Comunidade de Abacateiro, Baía dos Pinheiros, Ilha dos Pinheiros, Canal de Superagui, Comunidade de Barbados, Ilha de Peças, Comunidade de Bertioga, Barra do Superagui, Ilha das Palmas, Ilha do Mel e Istmo de Brasília.
 
Data: 12, 13, 14 e 15 de outubro de 2016
 
Notas explicativas:
      (15) Gospel ou envangélicas.
      (16) Proprietário da Radio Marumbi AM é também cantor gospel.
      (17) Espécie de violino rústico.
      (18) Madeira leve e macia, fácil de entalhar, muito comum nos mangues.
      (19) Tipos, modalidades.
      (20) Calçados com sola de madeira.
      (21) Árvores de grande porte.
      (22) Ferramenta para escavar madeira.
      (23) Eternamente esfomeados.
      (24) Excremento.
      (25) Estatal.
      (26) Tubarão Tigre
      (27) Nome antigo da Ilha do Mel
 
 
 
 
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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