Elbrus a montanha mais alta da Europa: Parte 4

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Acomodados, tivemos nesse dia um rápido almoço preparado pela nossa cozinheira, no cardápio tinha sopa, tomate, pepino, batata, bolachas, chocolate. Nossa cozinheira logo me “adotou”, quando tentei falar algo em russo com ela. Todo dia ela me chamava pelos apelidos russos do meu nome. Tatiana, Tania, Taniuchka e ganhei uma torcedora fiel para a minha escalada.

 
Após o almoço fizemos nossa primeira caminhada na neve, aprendemos a colocar os crampons, e nossa missão era, a todo momento livre, treinar como colocá-los corretamente e sem muita demora pois no dia do cume, sairíamos as 3 horas da manhã, e a colocação precisaria ser certeira e rápida, pelo frio que íamos enfrentar na madrugada. Eu havia visto um documentário sobre essa expedição, e imaginava um frio maior no momento da saída para o cume. O quê não aconteceu.
 
Voltando da caminhada pós almoço, saímos dos Barrels, e passamos por uma parte onde o gelo era duro e escorregadio, até chegar na base do monte onde a neve era mais fofa. Com bastões de caminhada , botas duplas e crampons começamos a subir. Aí começou meu teste de paciência e tolerância. No dia anterior não senti nada ao usar minhas novas botas duplas. Subimos para a montanha somente com elas. Carregamos as mochilas, duffles. Era a primeira vez usando tal equipamento, sentia-me como um astronauta, não conseguia dobrar os tornozelos, as botas são rígidas, mas imaginei que fosse assim mesmo para dar maior estabilidade na montanha.
 
O outro integrante da expedição que arriscou e comprou botas novas, também se queixava um pouco do desconforto, os outros que alugaram também, apenas minha companheira de quarto tinha gostado muito das suas botas alugadas. Elogiava a todo momento. Nessa caminhada pós almoço, comecei a achar que tinha feito bobagem. Comprar uma bota nova, na atual situação de não saber se ia continuar escalando montanhas, e começando a sentir dor nas pernas pelo impacto a cada passo dado. Acho que botas novas não foram uma boa idéia. A Cada passo um pensamento “porquê não aluguei como todo mundo???”, “quem mandou inventar moda?”.
 
Fizemos a caminhada programada do dia, fomos até 4100 metros, mas na descida, as minhas pernas doíam tanto que a cada passo eu perdia as forças, não tinha posição para pisar, comecei a cambalear em alguns momentos, tropeçar, que até um dos amigos me perguntou se eu precisava de ajuda, ele percebeu meu desconforto, eu disse que não precisava de ajuda, que estava com dor mas tudo bem. Como todo bom médico, ortopedista que sou, não pude deixar de imaginar que numa daquelas passadas, ao pular sobre alguma das pedras, minha perna ficaria, e meu corpo dobraria por cima dela e cleck…. Uma bela fratura de tíbia acabaria com a minha tentativa de chegar ao cume e me deixaria um tempo sem minhas caminhadas e escaladas.
 
Graças a Deus, cheguei ao Barrel sem cair nas pedras, mas quando tirei as botas tinha um grande hematoma em cada perna. No jantar todos queriam saber como eu estava, e ficaram preocupados, pois viram que nos outros dias eu estava bem, acompanhando bem o grupo e perder a escalada por causa das botas seria um pouco triste! Programava ir para essa expedição há uns 2 anos! Perder de subir por um capricho de comprar uma bota nova não fazia parte dos planos. Conversei com o Nosso Guia, e para o dia seguinte programamos que eu subiria até um ponto com uma moto de neve, caminharia até o ponto necessário para a aclimatação, e voltaria. Caso as botas ainda estivessem machucando, eu teria a opção de no dia do descanso, ao invés de descansar, descer para o vilarejo de Terskol e tentar alugar um outro par de botas.
 
Nessa noite havia outros escaladores no Barrel refeitório. Eu queria tentar treinar meu precário russo, tentei falar alguma coisa com eles, tentei explicar que fazia aulas de russo no Brasil, que tinha uma professora particular, mas percebi que não estavam entendendo o que eu queria dizer. O Russo é uma língua difícil, as inflexões nos finais das palavras são importantes, e o uso errado delas pode causar confusão, tipo sujeito da frase vira objeto, e vice versa. Confuso. Percebi que estava virando piada e resolvi me juntar aos meus amigos e encerrar o treino da língua russa por ali.
 
No dia seguinte acordamos, fui para o café da manhã e cheguei um pouco antes do meu grupo. Quem encontro, o pessoal da tentativa de conversa em russo da noite anterior. Quando entrei foram logo me recebendo com um “PROFESSORA” , em russo, e eu com medo de virar piada soltei logo , em russo , “sou médica”, isso eu sabia falar. Os russos arregalaram os olhos , ficaram sérios e logo saíram do Barrel. Um, porém, continuou sentado e se aproximou de mim, vestia uniforme do exército e perguntou se eu falava inglês. Falei que sim e começamos a conversar.
 
Ele ficou curioso, não entendeu se eu era médica ou professora juntando a conversa do dia anterior. Então expliquei que eu era médica ortopedista, mas que gostava de falar outros idiomas, que tinha curiosidade de aprender russo, e fazia aulas com uma professora no Brasil. Falei que falava francês, inglês e espanhol, que gostava de viajar e conhecer pessoas e outros países. Conversamos um tempo, e ali descobri que os russos não são tão carrancudos e sem educação como dizem por aí. O rapaz me falou que eles tem muita vontade de conhecer outras culturas e países, pessoas, que tem vontade de falar outras línguas, mas que ainda sofrem com os costumes e preconceitos dos russos mais antigos. Ele trabalhava ali na montanha, morava ali. E encerramos nossa conversa com uma brasileira ficando com boa impressão dos russos, e um russo conhecendo  uma brasileira que estuda russo.
 
Chegaram, já agora, meus amigos de expedição. Tomamos nosso café da manhã, que todo dia era composto de  um mingau de sabe-se lá o quê, tomate, pepino. Não tinha muita fome mas comia. O que me incomodava mesmo eram as pernas. Mesmo sem bota os hematomas continuavam doendo. E eu imaginando que bobagem tinha feito. Perder a viagem por causa das botas! Como conversado na noite anterior, saí mais tarde que restante do grupo, pois fui de moto até onde caminhamos no dia anterior. Dali comecei minha caminhada, sozinha, mas com os mais lentos logo à minha frente.
 
O dia estava bonito, como o anterior. Só mais no fim das tardes o céu nublou. Comecei a subir e novamente a cada passo dado uma lágrima contida. Tentei subir o mais que pude. A meta para a aclimatação neste dia era 4700m, Pastukov Rocks, ponto onde no dia do cume o Snowcat deixaria o grupo para começar a escalada ao cume. Alcancei minha amiga e mais dois amigos que estavam para trás, e Nosso Guia Russo, que nos acompanhava com o Nosso Guia desde o início das atividades na montanha. Os demais integrantes do grupo já estavam bem mais alto com Nosso Guia. Nosso Guia Russo me perguntou como eu estava, e eu lhe disse que sentia muita dor. Tinha tanta dor que não conseguia nem pensar e nem falar direito. E olha que para eu reclamar de dor, é que algo está acontecendo. Geralmente aguento bem a dor.
 
Ele me perguntou se eu queria continuar ou descer. Eu nem sabia o que queria, não conseguia pensar, ele se irritou um pouco, então eu disse que ia descer. A outra opção era esperar o grupo voltar ali. Mas estava difícil caminhar , eu não ia dar conta de aguentar a dor até o alojamento. Pedi a moto. Fiquei aguardando a moto chegar, desci, e fui arrasada para meu Barrel. Tirei as botas, os hematomas não estavam tão roxos, mas a dor era terrível. Cada vez que a bota encostava no local, eu tinha a impressão de que a perna ia fraturar. Um dos amigos chegou antes, esse era um dos mais bem preparados, sempre no pelotão da frente. Ele veio ver como eu estava, trouxe gelo, perguntou se eu não tinha tomado nada para a dor, eu , ortopedista, até aquele momento não tinha tomado nada.
 
Não gosto de ficar tomando remédio. Mas me rendi e comecei a tomar um anti-inflamatório, coloquei o gelo que o colega trouxe e fiquei ali pensando que no dia do cume iria até onde desse. Pelos acontecimentos do semestre, chegar até ali já tinha sido uma grande conquista. Diversas vezes no semestre eu pensei em cancelar a viagem. Já tinha entrado em paz com a questão do condicionamento físico, minhas atividades físicas me dão a força necessária para subir montanhas. Só não contava com machucar a perna por causa de botas novas. Então o Nosso Guia chegou e me perguntou como eu estava. Nesse momento desatei  num choro e lhe disse que chegar até ali já era uma vitória naquele momento, que eu não gostaria de comprometer o grupo, e que no dia do cume iria subir até onde desse.
 
Então ele me lembrou da opção de descer no dia seguinte, nosso dia de descanso, e alugar outro par de botas. Um dos amigos se ofereceu para ir junto, fiquei aliviada, não teria que descer sozinha. Mas quando ele descobriu que teria que pagar para descer e subir de novo, desistiu. Ele estava com o dinheiro contado para mochilar depois da expedição. Bom , eu ia sozinha mesmo, era a única chance de tentar subir sem dor. Minha dupla de quarto chegou um pouco depois e me ofereceu suas botas para experimentar. Nossa!!!! Naquele momento todo desânimo desapareceu! Minhas energias se renovaram. As botas eram mais moles, de tão usadas! Um pouco menores, não pegavam no ponto de dor no meio da perna. Finalmente eu conseguiria continuar a expedição que eu programava há 2 anos! Fiquei animada!
 
No jantar contei para os colegas que a bota alugada provavelmente ia dar certo e todos se animaram com a notícia. E mais boa notícia, os 3 amigos que vieram juntos para a expedição, aqueles que encontrei no início da viagem no aeroporto,  achavam que os casacos que tinham não dariam conta do frio do cume, e resolveram descer para a vila alugar outros casacos, e me acompanharam na descida. Mais um grande amigo resolveu descer para tomar um ar e uma coca cola lá embaixo. Desci feliz e acompanhada por quatro grandes pessoas! Só não tão feliz ainda que tive que ir com as botas novas até os teleféricos, sentindo a dor.
 
Aí as já conhecidas emoções no trajeto de descida com as cadeirinhas “novas” e bem conservadas à moda russa, e com os teleféricos, estes da descida, sim, novos! Estávamos com o tempo contado para alugar botas e casacos, e retornar com os outros guias russos que subiriam neste dia do descanso para acompanhar o ataque ao cume naquela madrugada.
 
Ao chegarmos na loja de equipamentos o Russo Doido do aluguel me viu pela vitrine da loja e saiu com um par de botas nas mãos dizendo “Tatiana!!! Tatiana!!!”, me entregou as botas e eu experimentei ali mesmo na calçada! Nessa hora desabei novamente, as botas eram iguais as minhas, só que de outra cor. Quase chorei, falei para os meus acompanhantes, e eles me deram uma força, “vai lá e vê se não tem outras”. Nem esperei os clientes saírem da loja, fui entrando, e como o Russo Doido se entendeu comigo desde o primeiro dia, nem ficou bravo por eu ter invadido a loja e ultrapassado o limite de dois clientes por vez. Mostrei para ele que a bota era a mesma, ele foi dentro do estoque e voltou com 3 pares, daquelas moles e usadas, como as da minha amiga. Experimentei uma , apertada, outra grande, até que encontrei a exata! Energias e ânimo renovados novamente!! Agora sim subiria o Elbrus!!! Meus amigos encontraram os casacos, e o grande amigo tomou sua coca-cola.
 
E fomos em busca dos guias que nos auxiliariam na subida. Aí conhecemos os 3 auxiliares da expedição. Um deles, o mais experiente, já tinha subido umas 50 vezes o Elbrus, ficou conhecido por nós como “O Chato”. Logo saberão o por quê. Ajudar a subir ninguém ajudou, a comunicação em inglês com os 3 novos guias era precária. Imaginamos como seria lá em cima. Enfim, para comprar os bilhetes do teleférico e cadeirinhas nós, os cinco amigos, nos ajudamos. Então no final da tarde estávamos todos reunidos novamente nos Barrels, prontos para na madrugada subir o monte Elbrus.
 
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Sobre o autor

Tatiana Batalha, natural de Mogi das Cruzes SP é médica ortopedista e montanhista, tenho escalado diversas montanhas como Aconcagua, Huayna Potosi, Acontango, Kilimanjaro e outras.

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