O Mistério do Balança – Parte 1

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As encostas íngremes e os paredões negativos do Morro da Balança guardam calados os acontecimentos de um fim de semana frio e chuvoso que, mesmo depois de passados tantos anos, ainda desperta a curiosidade e atenção dos que ouvem a história. Aqueles paredões são as únicas testemunhas do infortúnio que precocemente tirou a vida de Oséas Gonçalves Araújo, o Black, e para sempre guardarão seu segredo.

1997 – Na época tinha pouco contato com o grupo autodenominado “Sociedade dos Poetas da Montanha” que se reuniam no Memorial de Curitiba sob a liderança de Paulo Segalla para teorizar, discutir e planejar suas incursões pela serra. O Elcio Douglas, Corrêa, Taylor, Anderson Nogueira (falecido em acidente de automóvel) e o Black estavam entre os mais atuantes e fisicamente capazes para concretizar estes planos. Nossos destinos se cruzaram no cume do Ciririca quando estavam empenhados em realizar a Travessia Bairro Alto – Graciosa enquanto me ocupava na exploração minuciosa da mesma região.

Pessoas diferentes têm objetivos diferentes, para mim pouco importa ser o primeiro ou o último, muito menos o tempo gasto na conquista. Procuro conhecimento e intimidade, só sossegando quando conheço tudo a respeito de uma montanha, rotas alternativas, rios, vegetação, inverno, primavera e verão. Talvez seja da própria natureza de cada um, mas sem dúvida havia componentes da paciência advinda da diferença de idade, afinal estavam entrando nos 30 anos enquanto eu já passava dos 40 e seu vigor físico pela conquista só não era maior que meu desejo em mantê-la.

Depois de muitas investidas preliminares já havíamos explorado todas as duas rotas clássicas até o Ciririca e montamos nosso acampamento debaixo da segunda placa num daqueles dias típicos, com chuva fina e vento gelado, quando três pontinhos em movimento apareceram no altiplano aos pés do Agudo da Cotia. Moviam-se rápido e levaram pouco tempo para se juntarem a nós. O Black deu por falta de um relógio ou bussola não me recordo, e voltou sobre seus passos para recuperar o objeto perdido enquanto o Elcio e seu outro companheiro permaneceram alguns minutos conversando. Estavam precariamente equipados para aquele clima e o Pioli, com sua característica cordialidade, foi até as barracas em busca de chocolate e frutas para compartilhar com os esfomeados visitantes que partiram em seguida. Horas depois, dentro dos sacos-de-dormir, ouvimos os passos resolutos do Black cruzando apressado pelo acampamento. Foi à primeira, mas não a última vez que nossos caminhos se cruzaram, sempre apressados, em evidente contraste com nossa absoluta tranqüilidade.

2011 – O ano nascia dedicado ao reconhecimento da Serra da Farinha Seca e estudamos as cartas topográficas, fotos de satélite e as histórias das duas travessias mais recentes e conhecidas, a do Cover com a AMC em 1998 e a do Nas Nuvens em 2007 onde ambas as expedições preferiram partir da Estação Véu de Noiva em detrimento da rota dos primeiros conquistadores desbravando o Morro dos Macacos. Desde as primeiras tratativas já havíamos decidido retomar o plano original dos Poetas da Montanha que começava escalando o Morro do Balança no extremo sul desta serra para atingir a Estrada da Graciosa no extremo oposto em continuidade a Travessia do Ibitiraquire.

A um só tempo iniciamos as explorações em campo avançando pelo norte através do Mãe Catira e Poaguaçu-Mirim, pelo oeste percorrendo o leito do Rio do Meio até o Tapapuí e depois cruzando o Tanguiri até o Farinha Seca e pelo sul a partir do Salto Rosário adentrando pelas encostas inclinadas e paredões a prumo do Balança.

Na primeira investida no sul participaram o Elcio, Moises, Johny, Otaviano e o Pedro Hauck além de mim. Num dia excepcionalmente quente cruzamos a Usina do Marumbi e seguimos pelo mato bravio até o Rio Ipiranga onde encontramos a trilha e a percorremos até o Salto Rosário. Lá aproveitamos o resto da tarde nadando na piscina e tomando banho de sol nas pedras enquanto estudávamos as possíveis rotas de ascensão por entre as imensas falésias que se desenhavam a nossa frente. A recordação daquele fatídico final de semana tornou-se inevitável com a presença do Elcio naquele cenário. Tinham previamente estudado aquelas encostas, assim como fazíamos agora, e combinaram de realizar a travessia no final de semana enquanto os outros “poetas” os esperariam com um festivo picnic num dos recantos da Estrada da Graciosa, desde que o clima colaborasse.

1997 – O Elcio preparou sua mochila antes de dormir e acordou com o pior dos mundos, uma frente fria havia entrado durante a noite e o tempo estava péssimo, com garoa forte, vento e muito frio. Numa época que já vai longe onde os telefones celulares eram caros e raros, a internet inexistia e a previsão do tempo era uma piada ainda mais sem graça que atualmente, discar para o telefone fixo de uma família no meio da madrugada não era uma prática aconselhável e o tratado prévio assegurava que toda a programação estava cancelada, então voltou a dormir e não se preocupou mais com o assunto.

Acordei tarde naquele gélido e úmido domingo e, como de costume, me posicionei em frente da grande porta-janela da sala de jantar, que emoldura a Serra do Mar, tentando visualizar ao menos a silueta do Pico Paraná em meio à garoa grossa. A Solange preparava o desjejum e comentei que “era o dia ideal prá se morrer na serra” sem jamais imaginar o dramático desenrolar da aventura insana em que se encontrava o Black por não ter retornado para a cama na madrugada anterior como o fizeram todos os seus companheiros.

2011 – Na investida seguinte me acompanharam o Elcio, Moises e o Pedro Hauck quando cruzamos o Rio Ipiranga e adentramos as encostas do Balança seguindo em paralelo ao leito de um pequeno riacho. O calor estava insuportável e avançamos a duras penas até o primeiro paredão vertical de onde despencava uma refrescante chuveirada de água cristalina, contornamos este obstáculo para encontrar acima novo paredão projetando-se em negativo sobre nossas cabeças e reiniciamos as explorações a procura de uma falha na muralha para superá-la.

Seguimos a esquerda, pela base, até uma fenda coberta de limo verde e nos entalamos no buraco, rastejando até o outro lado onde havia um imenso tronco caído que serviu de apoio para ganhar mais alguns metros verticais até uma plataforma comprida e estreita que se perdia na curva. Com extremo cuidado avancei além do aconselhável onde o piso sumia num precipício de 50 ou 100 metros, é difícil avaliar nesta situação, e se projetava por 10 ou 15 metros acima antes do negativo encobrir a visão. Fim de linha e recomeçamos a busca na direção oposta, mas o muro não terminava nunca. Da face sudoeste contornamos a montanha pela base da parede até a face leste onde adentramos num espesso e inclinado samambaial com quase um metro de altura, infestado por teias de aranha gigantescas. Encontramos duas aranhas pretas com o corpo do tamanho de um camundongo e grandes patas compridas que não fugiram com a nossa aproximação.

Vencido o samambaial reentramos na mata com terreno muito inclinado para reencontrar o paredão logo à frente, mas enfim uma esperança. A encosta subia inclinada até quase encostar-se na linha superior e restavam apenas 5 metros de escalada para vencer o degrau, facilitada por verdadeira escadaria de troncos de árvores que nasciam na horizontal antes de fazer uma curva fechada em direção ao céu. A passagem era estreita e mais a frente o paredão novamente transformava-se em precipício. O Pedro e o Moises preferiram aguardar ali por notícias mais animadoras e o Elcio iniciou a escalada pendurado em raízes e troncos até superar o obstáculo e quando fui segui-lo uma raiz se desprendeu e despenquei de costas por mais de metro antes de conseguir me entalar nos troncos abaixo. O forte tranco me convenceu a ficar esperando junto aos dois pelas descobertas solitárias do Elcio.

O calor e as moscas tornaram a espera muito desagradável e o Pedro começou a passar mal, deitou-se no chão sem nem mesmo desfazer-se da mochila e permaneceu em posição fetal por todo o tempo. Aproveitamos a pausa para reidratar e comer alguma miudeza sentados nos troncos das árvores que ali cresciam na horizontal até que o Elcio retornou descrevendo a pior quiçaça do planeta.

Descartamos de vez esta encosta por não servir aos nossos objetivos e o estado do Pedro desaconselhava qualquer atitude além do retorno imediato. Descemos com cautela, mas o Pedro voltou a passar mal pouco antes de alcançar o riacho e desmoronou no chão, permanecendo imóvel por longo tempo. O Elcio já tinha descido e novamente aguardamos sentados a sua recuperação enquanto alimentávamos um exército de mosquitos com nosso próprio sangue. Já estava me preparando para carregá-lo nas costas quando mostrou sinais de vida e o convencemos a comer um pedaço de chocolate, depois mais outro e por fim aceitou alguns goles d´água. Finalmente levantou-se e deu os primeiros passos ainda inseguros, mas com nosso apoio foi se movendo até chegar ao Rio Ipiranga e depois de alguns mergulhos nas águas geladas ficou totalmente recuperado.

Na terceira investida demos com os burros n´água, coincidiu com as grandes enchentes que inundaram Morretes e Paranaguá e o Rio Ipiranga estava tão cheio que não permitiu a passagem. Acompanharam-me o Paulo Marinho, Moises, Elcio, Barbara e o Vinicius que alegou não saber nadar, mas naquela situação a falta deste atributo não faria a menor diferença, então seguimos até o Salto Rosário só prá não perder a viagem. No retorno alugamos algumas bóias e descemos o rio com câmeras de ar enquanto o Vinicius secava latinhas de cervejas num bar próximo e depois a confusão foi total. O irmão da Barbara, que nos encontrou pela manhã, seguiu para a Estação de Engenheiro Lange e na volta entortou a barra de direção da Land Rover deixando todo mundo a pé. Houve uma dispersão e a Barbara subiu a serra para ajudá-lo, o Elcio deitou o cabelo para Porto de Cima e nós esperamos no bar até o estoque de cerveja acabar para finalmente por o pé na estrada.

1997 – Alcançamos o Elcio nas proximidades da Pousada do Sr. Ibrahim Segalla onde, uma semana depois de ocorrido o acidente, funcionava o QG da operação de busca ao Black. Muita coisa contribuiu para esta demora no início das operações. A família já habituada com longos períodos de ausência só procurou por informações na segunda feira quando não apareceu para assumir seu posto na Base Aérea onde era suboficial. Na terça feira quando os amigos pensavam em organizar uma busca surgiram boatos de que fora visto circulando pelo quartel e as possibilidades de que estava sumido na cidade ganharam força, mas esgotadas todas as alternativas só restava a serra e então finalmente foi acionado o Corpo de Bombeiros de Paranaguá que designou o comando das operações ao experiente Sargento Armstrong.

O Elcio Douglas e o Anderson Nogueira, com suas mochilas cargueiras preparadas para vários pernoites, se apresentaram como voluntários ao comando do CB na condição de amigos do desaparecido e imediatamente foram integrados as equipes de buscas pelo conhecimento que tinham sobre a serra e dos planos para a Travessia da Farinha Seca. O clima de harmonia só foi abalado quando um recém formado grupo de socorristas integrou-se ao comando das operações e, com a humildade típica dos agentes do FBI, nem tomaram conhecimento dos planos do CB causando grande desconforto entre os soldados e os voluntários. Mas contornadas as diferenças prevaleceu o bom senso em busca do objetivo maior e o Elcio com o Anderson foram designados para acompanhar um grupo de buscas até o Salto Rosário onde se presumia haver alguma pista.

Uma viatura do CB os deixou na Usina do Marumbi e entraram no mato com o Elcio e o Anderson a frente, equipados com suas mochilas cargueiras, seguidos por dois socorristas e dois soldados do CB, que pelo fato de nenhum deles carregar equipamento para o pernoite já demonstrava que não tinham a mínima intenção de ir muito longe. No Salto Rosário enquanto os quatro estacionaram as 11:00 horas para o almoço, os já indignados Elcio e Anderson cruzavam o Rio Ipiranga. Dividiram-se em duplas para aumentar suas chances de encontrar indícios e em menos de uma hora o Elcio chamava a todos para examinar rastros frescos e vegetação recentemente cortada.

Era a pista procurada e os dois integrantes do grupo de socorro tomaram a frente da coluna impondo na marra sua autoridade enquanto aos demais restou contentar-se com a retaguarda, mas vencido aproximadamente a primeira terça parte da subida de um contraforte lateral, subitamente pararam avisando que seguiriam sozinhos dali em diante e ordenaram o retorno imediato do grupo. Ninguém entendeu esta atitude e o Elcio ainda tentou negociar uma solução conciliadora, mas o clima foi esquentando diante das negativas sem explicação e o Anderson precisou intervir para esfriar os ânimos beligerantes. Com sua costumeira tranqüilidade acabou por convencer o Elcio de que não havia mais clima para continuarem juntos e muito contrariados iniciaram o retorno juntamente com os soldados.

Próximo das 16:00 horas na usina, enquanto aguardavam a chegada da viatura para conduzi-los ao QG, distraíam-se ouvindo as conversas pelo rádio em freqüência aberta e com muita surpresa acabaram interceptando um pedido de resgate vindo das encostas do Balança. Os socorristas solicitavam um helicóptero depois de destacar que estavam apenas os dois e não sobrecarregariam a aeronave. Para os quatro na base não havia mais necessidade de nenhuma explicação e chegando ao QG, todos continuaram acompanhando os detalhes da operação pelo rádio.

O helicóptero pilotado pelo habilidoso Wanderlei Drull voou em círculos, mas o vento forte não permitiu a aproximação necessária então retornou a base buscar as mochilas com equipamento para o pernoite que foram arremessadas do ar. O vento forte novamente interveio e as duas mochilas caíram em meio à macega, causando grande transtorno para recuperá-las na semi escuridão, mas o grande final estava ainda por vir quando constataram que uma das mochilas continha parte do equipamento de sobrevivência e a outra apenas documentos, material de higiene pessoal e roupas limpas reservadas para o retorno. O ambiente no QG instalado na Pousada do Sr. Ibrahim andava pesado em função dos confrontos com o grupo de socorro e este infortúnio imediato provocou risadas hilariantes entre os bombeiros e demais voluntários que naquela noite dormiram sentindo-se vingados pelos desígnios do destino.

Continua…

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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