Cleo Weidlich à beira do abismo

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A essa altura, Cleonice Pacheco Weidlich não é mais novidade. Chamada por todos de Cleo, a alpinista manauara radicada nos Estados Unidos surgiu recentemente e abismou a todos.


Por Rodrigo Granzotto Peron

A ALPINISTA

Desconhecida do público brasileiro, seus feitos começaram a ser notados no Brasil a partir de artigo publicado neste website em 2009, por conta da polêmica sobre o alegado cume da brasileira no Broad Peak. Após eu ter noticiado no ExplorersWeb que ninguém havia feito cume no Broad Peak naquela temporada, recebi emails – em inglês – da Cleo. Até então, ninguém sabia que ela era brasileira, nem eu mesmo. Mas como eu me identifiquei como brasileiro, ela disse ser de Manaus, e respondeu em português. Foi aí que a – então desconhecida – Cleo passou a ser notada no Brasil, após eu ter publicado artigos sobre ela no AltaMontanha. Essa notícia preliminar serve para aclarar informações que têm saído equivocadas em alguns outros veículos de comunicação.

Cleo Weidlich se auto-entitula “sherpa girl”, e tem um projeto consistente para culminar todos os 14 cumes 8000. Em 2009, ela tentou o Broad Peak (8051m) e culminou o Cho Oyu (8188m), sem oxigênio suplementar. Essa foi a primeira ascensão feminina brasileira ao Cho Oyu sem oxigênio engarrafado.

Na primavera de 2010, ela culminou o Everest (8848m) e lançou-se a um double-header, ao também tentar o Lhotse (8516m), mas sem cume. Na temporada seguinte ela tentou o Nanga Parbat (8126m), sem êxito, culminou o Gasherbrum I (8068m, primeira ascensão absoluta brasileira ao pico), além de novamente enfrentar o Broad Peak (8051m), de novo sem alcançar o cimo. No outono ela rumou ao Nepal e conquistou o Manaslu (8163m, outra primeira ascensão absoluta brasileira).

Para 2011, os planos de Cleo eram ainda mais ousados. Na primavera, o Kangchenjunga (8586m). No verão, o K2 (8611m). E no outono, a difícil Rota Britânica da Face Sudoeste do Shishapangma (8027m).

Com o cume do Kangchenjunga, Cleo conquistou vários recordes:

1 – Primeira ascensão absoluta brasileira do Kangchenjunga,

2 – Primeira mulher sulamericana a culminar 5 picos 8000 principais,

3 – O Brasil concluiu o TOP 3 (EV com Michel Vincent, K2 com Waldemar Niclevicz, e Kangchenjunga com a Cleo Weidlich), o que é uma honraria conquistada por muito poucos países (na América do Sul, apenas o Equador, com o Ivan Vallejo, tem essa conquista).

A MONTANHA

O Kangchenjunga (8586m) é o 8000 mais oriental que existe, ficando na extremidade leste do Nepal, na fronteira com a Índia (Sikkim). É a terceira montanha mais elevada do planeta, e é considerada uma das três mais difíceis (juntamente com Annapurna e K2). Por ser remota, afastada, e difícil, é um dos 8000 menos escalados.

A primeira ascensão foi em 1955, por George Band (UK), Joe Brown (UK), Norman Hardie (N-Z) e Tony Streather (UK). O único sulamericano, antes de Cleo, foi o top climber Ivan Vallejo (ECU), em 2006.

Pouquíssimas mulheres até hoje subiram o Kangchenjunga, a lista completa é essa:

1 – Ginette Harrison (UK), em 1998
2 – Gerlinde Kaltenbrunner (AUT), em 2006
3 – Oh Eun-Sun (C-S), em 2009 [cume contestado]4 – Edurne Pasaban (ESP), em 2009
5 – Kinga Baranowska (POL), em 2009
6 – Go Mi-Sun (C-S), em 2009
7 – Cleo Weidlich (BRA), em 2011
8 – Rosa Fernandez (ESP), em 2011

O trajeto entre o Campo IV (7600m) e o cume (8586), com quase um quilômetro de desnível, e trechos bastante íngremes e com bastante acúmulo de neve, é extremamente desgastante, e há inúmeros casos de alpinistas que passam mal na descida, precisando de atendimento médico e socorro. Foi o caso, por exemplo, da famosa alpinista espanhola Edurne Pasaban, que completou os 14 cumes 8000 ano passado. Na descida, em 2009, ela precisou ser auxiliada e usou oxigênio medicinal para se recuperar.

O ATAQUE AO CUME DO DIA 20 DE MAIO

Na noite do dia 19 de Maio, partiram rumo ao cimo do Kangchenjunga mais ou menos 45 alpinistas e sherpas. Compunham o ataque ao cume expedição russa, expedição indiana, expedição italiana, expedição comercial internacional, e vários alpinistas avulsos. O cume foi atingido na manhã do dia 20 de Maio, por 24 alpinistas (em relatos preliminares), os primeiros as 7 da manhã, e os últimos por volta das 10.

Estiveram no cume, por exemplo, Tunç Findik (TUR), Dawa Sherpa (NEP), Guntis Brands (SUI), Mingma I Sherpa (NEP, que concluiu, então, os catorze 8000), Basanta Kumar Singh Roy (IND), Debasish Biswas (IND), Pasang Phutar Sherpa (NEP), Pemba Chhuti Sherpa (NEP), Tashi Sherpa (NEP), Israfil Ashurly (AZE), Nikolay Totmjanin (RUS), Mario Panzeri (ITA), Rosa Fernandez (ESP), Anselm Murphy (IRL), Pawel Michalski (POL), Ted Atkins (UK), Blair Falahey (AUS), e Cleo Weidlich (BRA) com seus sherpas Pema Tshering (NEP), Dawa (NEP) e Tenzing (NEP).

Os primeiros relatos eram positivos, e Cleo havia feito cume sem oxigênio suplementar, um feito estupendo. Todavia, “o cume é só metade do caminho”, em ditado repetido múltiplas vezes por todos os alpinistas. Nos dizeres do grande mestre Ed Viesturs, “ir até o cume é opcional, descer é obrigatório”. E, na descida começou o longo calvário de Cleo Weidlich…

CLEO WEIDLICH À BEIRA DO ABISMO

O primeiro a noticiar que havia problemas com Cleo Weidlich foi o romeno Alex Gavan, em seu website: “A dangerous cloudy conditions helicopter rescue is just underway at 7000m on Kang for Cleo Weidlich client of the commercial expedition” (com tempo nebuloso, um perigoso resgate de helicóptero está sendo realizado a 7000 metros no Kangchenjunga para Cleo Weidlich, cliente de uma expedição comercial).

Depois, veio um longo e agoniante silêncio. Os fatos que envolveram o resgate de Cleo, comentados em primeira mão por Alex Gavan, somente foram elucidados quando chegaram reportes, por e-mail, de outros líderes de expedição, e publicações na internet, principalmente o blog de Anselm Murphy, que foi traduzido para inúmeras línguas, com falhas de tradução e erros em relação aos fatos.

Conforme apurado pelo autor, na descida do Kangchenjunga Cleo passou a ter problemas de visão. Ela relatava estar sentindo forte pressão no nervo ótico. Também começou a apresentar confusão mental, que é sinal perigoso de edema cerebral (HACE). Em decorrência da dificuldade de visão, tomou alguns tombos, o que acabou piorando sua situação, pois torceu o joelho direito. Assim, com problemas de visão e locomoção, precisou ser auxiliada por seus três sherpas – Dawa, Tenzing e Pema – dos 8500 metros até o campo IV (7600 m).

Na manhã seguinte – 21 de Maio –, Cleo amanheceu com piora no seu estado. Dois de seus companheiros de expedição comercial – Anselm Murphy (IRL, três 8000) e Ted Atkins (UK, também três 8000) – foram cruciais no processo de resgate da brasileira, e com certeza foram os responsáveis por ter salvado sua vida. O resgate a 7600 metros era impossível e a alpinista teve que, a duras penas, ser baixada ao Campo III (7000 metros). A descida foi épica, lenta, e desgastante para todos os envolvidos. O quadro clínico de Cleo somente apresentou melhora após terem-lhe sido aplicados oxigênio medicinal e uma injeção de dexametasona (vulgo “dex”, toxina que ameniza os efeitos dos edemas cerebral e pulmonar causados pelo mal da altitude). No Campo III, o líder da expedição comercial de Cleo, Mingma I Sherpa utilizou o telefone satelital para requerer um resgate por helicóptero. Entrevistado, o famoso sherpa lembrou que àquela altura “ela (Cleo) estava muito cansada e apresentava confusão mental”. Depois reportou que foi muito difícil convencer a brasileira a usar oxigênio, e que o resgate foi muito custoso e desgastante.

Anselm Murphy, em seu blog, narra inúmeros problemas de relacionamento com os sherpas, que vão desde a falta de prestatividade em ajudar, tentativas de extorquir dinheiro em um momento delicado como este (o sherpa de uma outra expedição pediu 400 dólares por uma garrafa de oxigênio que costuma custar metade disso), e brigas no acampamento-base. Há informes anteriores similares a este em outras montanhas, mas o que mais chamou a atenção no caso de Cleo é que nunca se ouviu informes assim com relação a alguém que precisava de resgate, o que é muito mais grave.

Descreve Anselm:

“Encontramos um sherpa que carregava uma garrafa de oxigênio cheia e pedimos ela para ajudar a Cleo. Ted ofereceu em troca outra garrafa cheia, que estava no Campo 2. Ou seja, o sherpa não iria perder nada, e ainda iria poupar o trabalho de carregar um garrafa cheia até o acampamento abaixo. Inacreditavelmente, e com a vida de uma mulher em risco, o sherpa exigiu a quantia de US$ 400 (o preço normal é 280) pelo cilindro de oxigênio”.

Sem comida, bebida, e em uma tenda emprestada de outra expedição, Anselm e Ted heroicamente ficaram no Campo III, na noite do dia 21 para o dia 22 de Maio, auxiliando a alpinista de nosso país. No dia seguinte continuaram descendo, e como Cleo progredia muito lentamente, Anselm e Ted foram na frente, e a deixaram com seus sherpas. Anselm foi até o Campo II, pegou outro cilindro de oxigênio e retornou para o ponto onde Cleo estaria, quando a encontrou caída na neve, inconsciente, e sem os sherpas (que aparentemente a abandonaram para morrer). O irlandês conseguiu reanimar Cleo e ministrou oxigênio, como narra em seu site pessoal, e a duras penas a levou para o campo 2 (6400 metros). Mais uma noite sem comida e bebida, e na manhã do dia seguinte – dia 24 de maio, após 7 dias acima de 7000 metros e muita atribulação, Cleonice foi resgatada de helicóptero e levada a Kathmandu para o hospital.

CONCLUSÃO

“Dentro da garanta da Morte,

Dentro da boca do Inferno” (Tennyson, em A Carga da Brigada Ligeira).

A alpinista brasileira conseguiu a sua maior conquista até o momento. A primeira ascensão brasileira à terceira maior montanha do planeta. Mas na descida, como no célebre poema de William Tennyson, ela esteve, por breves momentos, “dentro da garganta da morte” e “dentro da boca do inferno”. Por sorte, e com a ajuda de dois verdadeiros heróis, ela conseguiu sobreviver ao ordálio gelado.

A perplexidade que ficou é a de como uma expedição organizada por alguém tão experiente (Mingma I Sherpa, primeiro nepalês a completa os 14 cumes 8000), e tendo Cleo três experientes sherpas guiando sua subida ao cume (um deles Pemba Tshering, com 7 cumes 8000 no currículo, e já tendo feito o Kangchenjunga antes), pode ter dado tão errado e ser tão desorganizada a ponto dela ter corrido o risco de morrer? De toda sorte, é uma pergunta a ser respondida com mais calma, após mais investigações sobre o tema…

Por fim, uma nota positiva, também no site de Anselm Murphy: “Eu visitei a Cleo ontem, e ela agora recuperou totalmente a visão, embora esteja andando de muletas. Ela vai precisar de uma cirurgia no joelho, que fará quando retornar para a Califórnia. Ela está indo muito bem e dá pinta de que vai se recuperar totalmente”. É o pensamento de todo mundo no Brasil. Com certeza em breve ela retornará ao ao circuito, escalando muitas montanhas mais.

Para quem quiser ver fotos do resgate aéreo, feita pela Fishtail Air, visite o site apontado abaixo, que tem três fotos da Cleo dentro do helicóptero. Para quem quiser saber mais detalhes sobre os acontecimentos envolvendo Cleo Weidlich, recomendo como fontes de consulta:

Explorersweb (http://www.explorersweb.com/everest_k2/news.php?id=20186)

Blog da empresa de resgate aéreo (http://fishtailair.com/blog/2011/05/american-summiter-rescued-from-kanchenjunga/)

Site de Anselm Murphy (http://www.anselm-murphy.com/)

Site de Alex Gavan (http://alexgavan.ro/expedition/kangchenjunga-2011)

Veja mais:

:: Controvérsias nas conquistas de Cleo Weidlich

:: 10 Razões para não escalar o Kangchenjunga

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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