Circuitão de Fim de Ano

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Dois mil e dez rapidamente se aproxima do final, o inverno já se foi e o verão chega com muita chuva. É hora de mudar a agenda, abandonar os pernoites na serra em favor das caminhadas rápidas de um dia perseguindo as tempestades.

No primeiro domingo de dezembro com muita chuva, acompanhando o Elcio e o Moises, descemos o velho Caminho do Itupava andando até Porto de Cima para saborear um sorvete no Banana da Terra em frente a igreja. No domingo seguinte, com o Paulo e o Moises, iríamos fazer uma investida ao 00B, na Farinha Seca, mas na subida do Pequeno Polegar já se ouvia os estrondos dos trovões. Enganei os companheiros o máximo que pude alegando tratar-se de explosões de dinamite na pedreira de Rio do Meio, mas na metade da encosta que nos separava do objetivo abriu-se uma janela na cobertura de árvores que permitiu ver a tempestade se aproximando.

Empoleirados numa pedra saliente almoçamos algumas frutas, sanduíches e uma barra de chocolate branco extorquida a muito custo da mochila do Paulo e depois descobrimos que o mesmo nos aplicou uma mentira cabeluda. Adiantou seu retorno com a justificativa de fotografar uma bromélia, mas o que fez de fato foi comer sozinho três pêssegos argentinos que manteve escondidos para não dividi-los com os amigos, pecado este que teve seu preço cobrado na mesma tarde.

De volta ao Mãe Catira a tempestade nos cercava furiosa e ficou urgente abandonar os descampados para procurar a proteção das árvores, mas não sem antes fotografar algumas caranguejeiras em plena atividade sexual. Estas imensas aranhas cabeludas possuem hábitos noturnos e raramente são vistas a luz do dia fora da época de reprodução. Um grande macho namorava uma fêmea receptiva bem na entrada da toca. Pacientemente imobilizava suas patas enquanto a fecundava, é uma tarefa delicada em que todo o cuidado é pouco para não se tornar a próxima refeição da amante.

Neste quesito as aranhas não diferem muito dos humanos com o atenuante de que no mundo animal tudo é mais rápido e definitivo. Para fotografar a sacanagem o Paulo começou a escolher e montar objetivas, mas não foi bem no chão que se sentou, na pressa só notou se tratar de um formigueiro depois das primeiras picadas e daí já estava coberto por furiosas formigas. Neste mundo é assim que acontece, aqui se faz e aqui mesmo se paga, lembra dos pêssegos?

A descida do Mãe Catira foi tensa com os trovões pipocando ao nosso lado e os relâmpagos rasgando os céus a poucas centenas de metros distantes. Em poucos minutos tudo ao redor virou rio e cachoeira debaixo do aguaceiro gelado e quando se sente a água fria escorrer pelo rego da bunda é porque não existe mais nada seco no corpo.

No meio da semana foi a Isabela, minha filha, que pediu para fazer uma caminhada no fim de semana e liguei convidando todo mundo, mas depois de alguns mal entendidos compareceram apenas o Moises e o Zig para enfrentar a empreitada. Partimos da fazenda na primeira manhã ensolarada depois de uma semana inteira de chuvas torrenciais para um tradicional bate-volta no Pico Paraná e nos descampados do Getúlio o sol já fervia a caixa de idéias. Julguei pela transparência da atmosfera que o Caratuva proporcionaria um visual impagável naquele dia e como tanto o Zig como a Isabela ainda não conheciam esta montanha resolvemos gastar um tempo com ela antes de descer pela aresta do leste até o Abrigo um.

No cume o calor estava próximo do insuportável, amenizado apenas por uma brisa suave e as butucas entraram em estado de êxtase quando chegamos. E realmente a perspectiva do PP vista do Caratuva estava magnífica nesta manhã com a atmosfera muito limpa apesar de o incessante bailar do mar de nuvens que contribuía para deixar a paisagem mais dinâmica e interessante. Neste horário a vista estava lindíssima, mas a luz estava muito dura e longe do ideal para fotos que só atingiria ao entardecer. Mesmo assim o Zig parecia alucinado detonando um click após outro por mais de sessenta minutos seguidos.

O Caratuva é a segunda montanha mais alta do sul do Brasil com poucos metros a menos que o PP, mas o acesso fácil a torna vulnerável ao ataque da anticivilização. Não faz muito tempo lá só existia uma pequena caixa e um catavento ruidoso que atrapalhava o sono. Hoje crescem antenas, cabos de aço e containers. A cada nova visita encontro mais bugigangas, novas antenas, novos penduricalhos, outra caixa de metal, mais cabos de aço e mais lixo abandonado. Tecnologia ultrapassada a serviço dos motoristas de caminhão, degradando e poluindo o cume.

Apareceram três loucos a caminho do PP, passaram apressados pelo A1 e sumiram no Fio de Ligação, depois ressurgiram subindo a sela e lá se foram, castigados pelo sol em direção ao Abrigo de Pedra sem nenhuma proteção. Isto me fez repensar os objetivos e os sacrifícios do dia. Iríamos literalmente fritar naquela trilha exposta e sugeri mudar os planos para o Taipabussu, muito mais próximo e com trilha protegida pela sombra das árvores além da suave brisa que sempre transpassa aquela aresta.

Já estávamos morgando por ali uma boa hora quando nos apareceu companhia, um sujeito falando mais do que a "Mulher da Cobra" e duas coitadas com o ouvido zunindo pela verborragia incessante e isto selou nosso destino. Hora de cair fora, e vazamos pela encosta norte com as butucas em nosso encalço. A trilha está em excelente estado e bastante fechada, o que proporciona uma caminhada agradável sobre um piso macio de folhas secas com alguns arranhões produzidos pelas onipresentes taquaras.
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Chegando ao primeiro cume do Taipa as butucas deram um refresco e fizemos um bom lanche sobre a pedra do urubu que se pendura sobre o vazio assustador. O Moises aproveitou o intervalo para descansar mocado entre a vegetação e a Isabela tirou uma soneca estirada sobre a pedra. Não pode sonhar nem virar de lado porque a queda é longa. O Zig aproveitou a luz mais inclinada e a transparência excepcional da atmosfera para registrar em fotos os imensos paredões rosados do PP e do Ibitirati. Seguimos até o cume principal para variar o ângulo das fotos e depois iniciamos a descida suave pela trilha direta que na sua maior extensão acompanha a cota 1500.

Chegamos adiantados ao cume do Getúlio e sobrou tempo para curtir com tranqüilidade a vista da represa enquanto o Zig documentava todas as nuances do final de tarde. Jogávamos conversa fora empoleirados sobre as pedras quando reconheci uma figura solitária subindo a montanha. Era o Jurandir Constantino que de Paranaguá foi a Curitiba, trocou de ônibus e desceu no Posto Tio Doca andando os 7 quilômetros de estradinhas poeirentas até a fazenda apenas para vir passar a noite no Itapiroca e no dia seguinte repetir toda a jornada a tempo de bater o cartão em Paranaguá depois do almoço. Está aí um verdadeiro apaixonado pelas montanhas e pela vida ao ar livre que se juntou a nós para um bate-papo descontraído sob as luzes do crepúsculo.

Já tinha dado o ano por encerrado quando no sábado de natal o Elcio ligou convidando para repetir a pernada debaixo de chuva que fez com o Richard, de Londrina, na mesma época do ano anterior. É uma jornada insana que nasce no Posto Tio Doca, sobe pelo Itapiroca, passando pelo Cerro Verde, Tucum e Camapuã até a fazenda da Bolinha para se encerrar resgatando o carro novamente no Tio Doca.

O dia prometia muito calor e chuva as 7:00 horas da manhã quando iniciamos a caminhada acompanhados pela Bárbara e vencidos os primeiros quilômetros já estávamos banhados de suor. A subida do Getúlio com sol no lombo depois de sete quilômetros de estrada estava de matar, mas a umidade da mata nas encostas do Caratuva veio rápido oferecer um refresco e na bica aproveitamos para descansar as pernas e reidratar o corpo. O Itapiroca estava tomado pela neblina e fizemos um longo pit-stop ao lado do caderninho apreciando as encostas do Tucum que as vezes se deixava entrever nas brechas da serração.

Rompemos com a inércia descendo a longa aresta sul do Itapiroca até o falso fundo de vale onde a tênue trilha começa a desaparecer, no verdadeiro fundo de vale a trilha some completamente depois de uma árvore tombada e deu trabalho para reencontrá-la mais acima, já próximo da imensa greta. No riachinho nos abastecemos de água e saímos nos descampados em meio a neblina densa e gelada para atingir o cume do Cerro Verde açoitado pelo vento frio. Deitamos no chão para permanecer protegidos pelas caratuvas enquanto dividíamos uma maçã e lembrei que comprei no posto um pacotinho de bananas desidratadas, mas ao desembrulhá-las deixei cair algumas no chão sujo. Naquele instante fui tomado por profundo desgosto ao ver aquelas poucas bananas cobertas de areia contra o lodo negro. Pensei em abandoná-las ali, mas o Elcio pacientemente as lavou com a água do cantil da Bárbara e as dividiu em três porções avidamente devoradas.

Neste episódio senti na alma toda nossa loucura, estamos ficando tão confiantes na natureza e em nossa capacidade de se safar destas enrascadas que chega a dar nojo. Um dia ainda cairemos do burro e a coisa vai ficar séria. Saímos para esta caminhada com recursos mínimos e nenhuma margem pra erro. Eu carregava apenas uma pochete com 2 maçãs, 2 sanduíches, uma embalagem com bananas desidratadas, o canivete, a lanterna com duas pilhas enfraquecidas que não troco desde janeiro e uma capa de chuva, a Bárbara tinha na mochila apenas o anorake, quatro maçãs e duas head lamps enquanto o Elcio não carregava absolutamente nada. Todos vestíamos apenas camiseta, shorts e chapéu num lugar em que o tempo é instável a ponto de mudar em poucas horas, as trilhas são confusas e muitas vezes simplesmente somem. Não tínhamos um GPS, uma bússola ou uma carta planialtimétrica e a neblina nos cercava totalmente com uma densidade tal que não enxergávamos nosso companheiro distante cinco metros.

Qualquer escorregão naquelas condições poderia ser fatal, uma torção ou fratura que nos obrigasse a um pernoite forçado naquele frio e umidade extremas nos exporia a hipotermia e a um amanhecer incerto. Em princípios de outubro, em plena primavera, quando se alternam as condições do verão e do inverno no intervalo de poucas horas partimos para uma daquelas jornadas épicas em três dias por terreno desconhecido e sem rastros. Cinco pessoas para duas minúsculas barracas que em caso de necessidade mal dariam conta de quatro pessoas. Ao passar pela cozinha de casa antes de sair, num golpe de sorte vi um envelope com gaze e um rolo de esparadrapo micro fibra que instintivamente enfiei no bolso. Para meu azar precisei usá-los já no primeiro dia depois de despencar de uma cachoeira que destroçou meu cotovelo direito. Estamos perigosamente autoconfiantes e isto é quase porra-loquismo!

A neblina estava densa e palpável no intervalo entre o Cerro Verde e o Tucum, poder-se-ia fazer uma bola com ela e rola-la montanha abaixo. Os sons sumiram na imensidão branca e por vezes éramos atingidos por uma saraivada de pingos d´água. Seguimos em fila indiana atentos ao mais leve indício, uma folha quebrada, uma pegada no barro, uma fita velha e desbotada, o chão levemente mais compactado do que o entorno, a pequena depressão debaixo das moitas de capim até encontrar a bifurcação para o Ciririca quando viramos a direita e nos aprofundamos no mato.

Dentro do mato a situação é bastante confortável, temperatura agradável e visão desobstruída com o caminho ainda marcado pelas velhas fitas que fixamos ainda no período exploratório no início dos anos 90, mas rapidamente chegamos as encostas do Tucum e iniciamos a escalaminhada pelo trepa mato, barro, caraguatás, raízes podres e pedras soltas. Ao romper a faixa protegida pelas árvores reencontramos o vento frio, a neblina e a chuva. Quanto mais alto pior ficava o perrengue e depois do primeiro platô senti uma fisgada de câimbra na panturrilha que me obrigou a redobrar os cuidados. Agora não se enxergava dois míseros metros acima ou abaixo. Estava grudado numa pequena bolha de pedra e barro que flutuava no meio das nuvens com o vento enfurecido querendo me varrer dali.

Nas proximidades do cume a visão se estendeu para cinco metros, mas a chuva fina e gelada castigava o corpo sem cessar e o vento furioso não tolerava minha presença naquele santuário. Encontrei o Elcio e a Bárbara precariamente mocados entre as pedras do caderninho e convidei-os a cair fora, o que fizeram sem discutir. O vento, a chuva, a neblina e o frio nos castigaram até o cume do Camapuã onde decidimos dar uma parada revigorante antes de enfrentar a rampa sul.

Era cedo ainda, quase dezessete horas, e protegidos atrás das grandes pedras do cume pudemos desfrutar da última maçã e do último sanduíche que tinha na pochete e nos permitimos relaxar um pouco por ali. Jogar conversa fora e rir de toda a desgraça das pessoas que naquela hora estavam confortavelmente sentados em seus sofás, tomando coca-cola enquanto assistiam ao Faustão. Mas o capeta estava solto e circulava furioso ao redor daquelas pedras, não iria descansar enquanto não nos colocasse para correr daquele lugar.

Depois de algum tempo morgando confortavelmente no olho do furacão a tremedeira se iniciou pelas pernas e chegou até o queixo deixando o corpo todo tomado por espasmos involuntários de frio. Encharcados até a medula e tiritando de frio estava passando da hora de cair fora e a Bárbara tomou a iniciativa. Pulou em pé e saiu correndo feito uma louca desvairada, gritando aos quatro ventos. O Elcio a seguiu no mesmo ritmo, mas eu que não sou bobo nem doido desci devagar pra não quebrar o pescoço naquela rampa dos infernos. Um escorregão ali e se chega lá embaixo mais ralado do que queijo parmesão, isto se sobrar algo além de carne moída.

A intempérie só nos deu folga sobre a pedra "da Judeu" e rapidamente adentramos na mata descendo para o selado com o Pedra Branca onde um coral de sapos nos saudava. A velha trilha que desce acompanhando o Ribeirão Samambaia está completamente irreconhecível. A mata densa e escura cedeu lugar para amplas clareiras por onde penetra a luz do sol até o piso da floresta em meio a um cemitério de bambus. De ponta a ponta, todos os bambus floresceram, derrubaram as sementes, as folhas e morreram deixando um mar de esqueletos apodrecidos. Pena que a situação seja transitória e o bambu rebrote antes do inverno. Todos os rizomas já estão prontos e protegidos debaixo da terra a espera de um grande incêndio que dizime a concorrência e quebre a dormência das sementes. Mas se isto não acontecer dentro do prazo esperado, os rizomas que já contém em si todos os nós da vara adulta simplesmente explodem para o alto como antenas telescópicas que em poucos dias fecham o espaço no teto da mata e só lhes restam engordar e enrijecer.

Apesar de alguns percalços inevitáveis, podemos considerar que foi uma caminhada sossegada e sem maiores emoções. Cruzamos pela Fazenda da Bolinha ainda com aproximadamente uma hora e meia de luz diurna e sentíamos falta de alguma adrenalina. Daqui seriam nove quilômetros enfadonhos de estrada até o Posto Tio Doca. Cinco de macadame e quatro de asfalto pelo acostamento da BR116. Então propus cruzar por Terra Boa economizando um mínimo de quatro quilômetros. Ainda lembrava da velha trilha que usávamos para ir ao Ciririca na década de 90, antes de existir a estrada, quando deixávamos o carro no Sítio do Ernesto que vendia minhocaçu e bicho-de-laranja na beira da rodovia e tinha vários tanques com tilápias.

Antes de meter a cara no mato conversamos com um residente para saber da situação em que se encontrava a Fazenda Terra Boa e se o velho Sebastião ainda assombrava o lugar. Não queríamos correr o risco de sermos recebido a bala pelo caboclo ranzinza sempre armado e bêbado, mas para nosso alívio fomos informados de que a fazenda estava abandonada a mais de dez anos e procurando bem ainda encontraríamos o rastro de caçadores que seguidamente perambulavam pela área.

Cruzamos por entre os fios de arame farpado e nos aprofundamos no mato guiados apenas pelas vagas lembranças de vinte anos atrás e aos poucos encontramos algumas precárias referências. O primeiro rio de pedras e depois o banhado com lírios-do-brejo, o segundo riacho que outrora era transposto por uma manilha composta de muitos pneus enfileirados em cujas frestas podia-se quebrar uma perna, mas dos pneus não restou sinal. Em seguida cruzamos o rio principal e adentramos no bosque dominado por pinheiros colossais e seguimos em frente, despreocupados, até que o Elcio estranhou o fato de estarmos subindo muito. Imediatamente concordei com ele, não havia nenhuma subida forte neste caminho e também estávamos muito distantes do rio que há tempos não ouvíamos mais.

A conclusão óbvia é que havíamos perdido a trilha em algum ponto depois do rio, mas era certo pelos cortes no barranco que caminhávamos sobre o leito de alguma estrada antiga e isto sem dúvida nos levaria a algum lugar. Resolvemos arriscar seguindo adiante pra ver onde isto ia dar com a curiosidade da exploração e caminhamos por meia hora subindo a montanha até que a Barbara me chamou a atenção para o final do dia. Foi só então que notei o sol se pondo nas nossas costas e percebi a mancada. O sol deitando por trás e o terreno sempre subindo forte nos indicava que caminhávamos a leste em direção ao Camacuã, nos aprofundando na selva, e o Posto Tio Doca estava ao norte num ângulo de 90 graus cruzando a mata compacta e bravia.

Não restou alternativa a não ser voltar sobre os próprios passos se é que os acharíamos no escuro. Se era adrenalina que faltava agora tínhamos de sobra. A noite fria se aproximando rapidamente sobre um terreno completamente desconhecido, sem uma trilha para nos orientar, molhados até os ossos e nem ao menos uma migalha de pão para comer. Pernoitar por ali naquelas condições não ia ser nada agradável.

Trinta minutos subindo, dez minutos confabulando e vinte minutos descendo foi o suficiente para o sol desaparecer no oeste e seguimos com as lanternas até o bosque de pinheiros e encontramos um rastro seguindo a direita, mas já não tínhamos certeza se não eram nossas próprias pegadas. A Barbara seguiu em frente por uns cem metros e parou avisando que o rastro desaparecia no capinzal, mas no silencio da noite ouvi o marulhar do rio e tomei a frente amassando capim que ultrapassava a altura dos ombros. Se estivéssemos na savana africana não me surpreenderia encontrar um leão escondido ali. Avançávamos guiados apenas pelo distante sussurro do rio e do nada quase bati a cara no casebre do velho Sebastião tomada pelo matagal.

O casebre mal assombrado ainda se mantinha de pé apesar dos anos de abandono e sua simples existência tornou-se um grande conforto para nós. Significava que estávamos na direção correta e numa desesperada hipótese era um abrigo viável para passar a noite, mas ninguém ali estava a fim de largar o osso. Atravessamos o capinzal e penetramos novamente na mata seguindo o barulho do rio, agora bem mais próximo e tateando com os pés o chão mais duro, sinal inequívoco de que outrora foi um caminho. O sentido da visão muito pouco ajudava com o capoeiral na altura do peito e sem rastro visível, mas os vagalumes até que colaboraram mostrando o túnel na mata fechada.

Depois de uma longa descida entramos no capinzal onde outrora era uma grande clareira recheada de caixas de abelhas. Aqui a trilha se bifurcava e nos velhos tempos seguiríamos a esquerda cruzando o rio na ponte quebrada e tomaríamos o atalho barrento para o Sítio do Ernesto do outro lado do morro, mas agora deveríamos dobrar a direita nos distanciando do rio e perdendo nossa melhor referência até então.

Precisávamos rumar para o norte sem bússola ou qualquer referência segura com muito cuidado para não nos desviarmos para leste onde depois de novamente penetrar na mata seguia outra velha estrada de serviço igualmente abandonada. Só nos restou como orientação o sentido do tato ao pisar o chão duro e o piscar dos vagalumes pipocando no negrume da floresta. Como último alento havia o fato da não existência de árvores grossas na faixa de dois a três metros onde outrora fora a estrada tomada agora por capoeira alta e moitas de espinho bravo que dilaceravam das canelas ao pescoço.

Muitos quilômetros e mais uma hora angustiante caminhando no escuro até que cruzamos por uma antiga ponte desmoronada. Ouvíamos o rio rugindo por baixo do barreiro, mas não víamos a água que se infiltrava por dentre as antigas manilhas. Durante alguma cabeça d´água o rio passou por cima da tubulação cavando um buraco de um metro de profundidade por três de largura, deixando imensa e perigosa ferida na superfície. Cruzá-la foi realmente adrenante, mas se com meus 95 quilos não afundei nas entranhas da terra então o Elcio e a Barbara, bem mais leves, não teriam maiores problemas. A frente encontramos outra ponte igualmente destruída, mas que ainda guardava alguns troncos apodrecidos servindo de pinguela.

Estávamos nos aproximando do desfecho desta aventura e tivemos esta certeza ao ouvir os caminhões rugindo ao longe. Outra longa meia hora se passou caminhando no mato orientados pelos ruídos da BR116 cada vez mais e mais intensos até surgir um clarão na boca do mato e os cachorros farejaram nossa proximidade. Nunca um ataque de cachorro foi tão bem-vindo e saímos no quintal da última casa na rua da comunidade de Paiol de Baixo, a menos de quinhentos metros do Posto Tio Doca.

Cruzamos a BR com todo cuidado para não sermos atropelados por um caminhão depois de navegarmos com precisão quase absoluta os 28 quilômetros de serra em 14 horas praticamente sem visão nenhuma, atormentados por sol de fritar miolos, neblina espessa, chuva gelada, vento de furacão, frio de trincar dente e escuridão profunda num terreno esquecido e abandonado há décadas. Não faltou cachu nem thibum neste circuitão. No posto preferimos ocupar uma mesa externa debaixo do céu noturno completamente estrelado para calmamente brindar com choco-milk o termino feliz da aventura, comendo o que sobrou da torta de bananas da mãe do Elcio que ficou no land-celta esperando pacientemente pelo nosso retorno.

Saúde!!! E feliz 2011 com muita adrenalina nas veias!!! ,

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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