Monte Roraima – Parte 1

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Após viajar desde a tardinha de sexta-feira até as 2 da madruga de sábado, chego a Boa Vista, capital de Roraima, cheia de dor nas pernas de tanto ficar sentada naquelas poltronas apertadas de avião. E olha que tenho pernas curtas!


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Aguardo no aeroporto, porque nem vale a pena ir prum hotel já que a expedição ao Monte Roraima, lugar escolhido por mim pra desfrutar o feriado de carnaval, parte da capital roraimense às 5 da manhã. Pego o último tomo (gostaram do sinônimo pra volume?) de Millenium e cochilo sentada naquelas cadeiras de plástico duro que todo aeroporto que se preza não deixa de ter. Às 4 e 30, um cara altíssimo, com pinta de jogador de basquete, se aproxima e pergunta se não sou quem eu sou, hehehe. Identifica-se como o guia Francisco e me convida pra tomar assento no minibus que já se encontra estacionado em frente ao aeroporto. Valéria, amiga que restou dentre as muitas juras de amizade trocadas, em 2007, num trekking na Chapada dos Veadeiros, acaba de chegar no voo das 4 e 30.

Embarcamos e vamos buscar o restante do pessoal nos hotéis onde se encontrados hospedados. Lili, outra amizade, resultante do trekking ao Pico da Neblina, adentra o veículo e espalha seu sorriso luminoso e olhar caloroso em minha direção. Faço aquela algazarra, saudando minha amiga. Eita…bom demais rever amigos e tê-los ao lado nas trilhas. O minibus está lotado. Afinal, nosso grupo nem tão pequeno é: são 16 pessoas. No início de qualquer viagem, quando o grupo é grande, não me preocupo muito em conhecer de imediato os colegas de pernada. À medida que vou caminhando, emparelho com um e com outro e, assim, vou trocando idéias e perguntando os nomes. Estão todos meios sonados ainda. Eu e Valeria, entretanto, aceleradas pela noite sem dormir, não paramos de falar, super animadas que estamos pelo reencontro e pela perspectiva da aventura que nos aguarda. Lili, mais comedida, entabula papo com uma moça, sentada ao seu lado. Que já vai se identificando de cara: é médica, paulista, atendendo pelo nome de Bárbara.

Após uma hora de viagem, parada no Bob, restaurante de beira de estrada. As atrações gastronômicas são o pão de queijo e a paçoca (carne de sol socada com farinha). Ambos os petiscos, recém feitos, estão quentinhos, deliciosos. Após uma hora rodando na péssima rodovia brasileira, mal conservada a beça, cheia de buracos, inclusive, com alguns trechos já desencapados, ingressamos na rodovia venezuelana, muito bem conservada, graças ao asfalto de boa qualidade embora tenha sido construída em 1984, ao contrário da nossa que data de 1996.

Controlada pela Guarda Nacional, composta de jovens soldados de metralhadora em punho, ingresso num país que me remete àquela época dos anos de chumbo brasileiros. Meu país no tuve mucho sol, durante duas décadas, percebes? Apesar do forte aparato militar, os trâmites burocráticos nessa fronteira transcorrem tranqüilos e rápidos. Em 20 minutos, estamos em Santa Elena de Uairén onde trocamos de veículo.

Decorrida uma hora e meia de viagem, a maioria em estrada de chão batido, eis-me, finalmente, chegando na comunidade indígena Paraitepuy, cujo significado na língua taurepang é, literalmente, chinelo da montanha, já que se localiza aos pés de diversos tepuys espalhados na área de 30.000 km² do Parque Canaima, considerado o 6º maior do planeta. Tão extenso esse parque que não se limita apenas à fronteira brasileira, sendo lindeiro, igualmente, da Guiana Britânica. Dessa comunidade partem os trekkings ao Monte Roraima, localizado no setor oriental do parque. Mais soldados armados até os dentes. São eles e não os funcionários do Inparques quem farão a revista nas mochilas. Buscam, pra apreender, bebidas alcoólicas já que foi decretada lei seca durante o período de carnaval.

Deixamos Paraytepuy às 13 e 30, percorrendo uma estradinha onde vez por outra passam zunindo índios conduzindo bicis. Coisa estranha, não estou sentindo nessa pernada aquela vibração que costumo sentir a cada trekking que faço. Falta um certo entusiasmo que, sei lá por quê, aqui não bateu ainda. E, espantando tais reflexões, trato de apurar o passo já que a distância de hoje será uma das mais longas dos 7 dias de pernada: 15 km. Como a altitude em Paraytepuy é de 1.400 m e a do acampamento Tek é de 1.100 m, a caminhada faz-se praticamente descendo os campos de savana. Enfeitados por colinas suavemente arredondadas, lembram um pouco o pampa gaúcho com aqueles coxilhões a perder de vista. E quando avisto o tepuy Matawi, mais conhecido como Kukenan, o gigantesco platô remete-me ao Castelo, outra formidável formação rochosa, encravada nos confins dos Gerais do Vieira, Chapada Diamantina.

Familiar a paisagem. Talvez por isso a ausência daquela vibração sentida em outras expedições, essas sim, repletas de paisagens inéditas aos meus olhos ávidos de novidades. E, de repente, um arco-íris debruça-se sobre o céu, estendendo sua fita multicolorida do Kukenan ao Roraima. E permanece na atmosfera, saudando os viajantes, por um bom tempo. Situados um em frente ao outro, os colossais paredões das duas montanhas exibem aquela coloração rosada peculiar às rochas sedimentares. Visível, apesar de ainda distante, no Kukenan, a espetacular cachu de 610 m que despenca do alto de seu topo. Esse tepuy, menor e menos alto que o Roraima, tem 20,63 km² de área e 2.650 m de altitude. Chego às 17 e 15 ao acampamento Tek, encravado às margens do rio de mesmo nome.

O lugar pertence à tribo Pemon que ali vive, alojada em meia dúzia de casas de adobe cujo teto é coberto de palha. O dia ensolarado e quente é um convite a um banho de rio. E já está decidido: será meu primeiro e único banho durante o trekking. Sigo à risca a salutar máxima “quem gosta de frio é pinguim”. Daqui pra frente, devido ao ganho de altitude, a temperatura da água dos rios passará de fria a geladésima. Assim, hábitos fanáticos de higiene pessoal devem ser evitados e cumpridos com muita, mas muita moderação. A água, límpida, está muito gostosa. Tanto é verdade que nem emito aqueles gritinhos estridentes de quando entro em temperaturas menos tépidas. Não demoro muito no banho, todavia, devido àqueles mosquitinhos que parecem uma pulguinha e cuja picada comicha pra caramba, causando feridinhas purulentas nas pernas. No sul do Brasil, os danados são conhecidos como “polvinha”. Após a janta, macarrão à bolonhesa, não resisto ao cansaço duma noite sem dormir, muito embora o conversê esteja bem animado, e dirijo-me à barraca sob um céu estrelado. Ebaaa, o tempo vai dar bom amanhã!!

Travessia de rios

Acordo durante a noite, com o toc toc da chuva a tamborilar no teto da barraca. Lembro então do sonho com meu filho, declarando à queima-roupa que tá casando. Rapidinho, contudo, mergulho de volta num sono, dessa feita, sem sonhos. Também pudera, virada de sexta pra sábado, o período de 24 horas sem dormir conseguiu derrubar esta senhorinha de 58 anos que vos escreve!

Merda….merda, acordo inchada. Mesmo a 1.100 m, a altitude já dá barato, sim!! As pálpebras intumescidas me tornam mais velha. Duplicada, a película sobre as órbitas lembra a de velhas tartarugas centenárias….arghhhh!!! Embora a caminhada até o acampamento-base não seja superior a 8 km, terminado o desjejum, deixamos o acampamento Tek às 8 e 10, já que o desnível até o base perfaz 770 m. Manhã nublada, contrariando os bons prognósticos daquele céu estrelado de ontem à noite. Ao longe, o Roraima apresenta nuvens em seu topo, ao passo que, no Kukenan, as nuvens começam a apoderar-se de sua base.

Nem bem caminhamos 50 m, enfrentamos a primeira das duas travessias do dia: a do rio Tek. O rio não está cheio e o único cuidado que se deve ter é evitar uma topada nas muitas pedras que forram seu leito. De repente, destaca-se isolada no meio da campina uma pequena igreja feita de pedras com telhado vermelho. Chama-se Santa Maria de Todos Nós. A essa altura, o Kukenan e o Roraima já se encontram quase envoltos pelas brumas que cercam somente o local onde ambos estão plantados. Sei lá….tá me batendo um mau pressentimento a respeito do tempo. O que me distrai dos maus presságios é um arbusto, o murici, em cujo caule brota uma vistosa flor amarela. Paro, portanto, para fotografá-lo. Após subir uma colina, avista-se de seu topo, lá embaixo, o rio Kukenan perdendo-se de vista entre as dobras suaves da savana.

Uma descida íngreme leva à margem direita do Kukenan (rio de água suja), que se junta ao Kamaiwa, rio que desce do topo do Roraima, formando a imponente queda d’água de idêntico nome, já visível bem antes do acampamento Tek. O resultado da fusão desses rios desemboca por sua vez no Orinoco, com o nome de Kukenan. Do Roraima (monte verde azulado) jorram ainda vários outros afluentes responsáveis pela alimentação de mais duas bacias hidrográficas: a do rio Branco, no Brasil, e a do rio Ezequibo, na Guiana. Enquanto a travessia do Kukenan não oferece grandes dificuldades, a do rio Kamaiwa complica um pouquinho porque há um ponto em que a correnteza forma um pequeno vórtice dificultando a passagem. Tirso, percebendo minha atrapalhação, aproxima-se e estende sua mão forte me socorrendo. Já os índios pemones cruzam o rio, sem esforço algum, levando às costas os pesados guayares (cesto de cipó ou palha onde é carregado o tralharedo das expedições, é o equivalente dos jamachis dos yanomamis).

Terminada a travessia, a maioria do pessoal relaxa, tomando banho no rio. Alguns, não de forma recreativa, mas já fazendo uso do sabonete. Há um evidente exagero nessa ânsia do grupo pela higiene pessoal, cá entre nós. Um banho por dia me parece suficiente. Eu, por exemplo, já me molhei na travessia. Pra que mais banho? Refrescados, retomamos a caminhada, enfrentando uma lomba na estradinha sulcada de buracos formados pelo chuvaral típico dos climas tropicais. Após uma 1 hora de caminhada, alcançamos o acampamento-militar, onde paramos prum refrigério. Trata-se refrigério dum termo venezuelano que significa descanso pra se comer fruta. A de hoje são fatias de melão que Chico, nosso guia brasileiro, corta com destreza e distribui entre os membros do grupo.

Retomamos o passeio, agora, sim, enfrentando uma trilha que não dá mole. A subida com duração de 75 minutos só termina no acampamento-base, onde chegamos às 12 e 50, debaixo duma chuva miúda que já vinha caindo fazia uns 40 minutos. Do Roraima mal se entrevê sua parede ocidental escondida pelo nuvaredo que dela já quase se apossou por completo. Pois não é que o pessoal que se havia banhando no Kamaiwa, resolve tomar outro banho num rio próximo ao acampamento? Será a terceira lavagem do dia!! Estou estupefata, por deus, com essa obsessão pelo asseio excessivo. Será que eles não sabem que banho demais retira a oleosidade natural da pele? Daqui a alguns anos essas damas tão caprichosas estarão prematuramente enrugadas e não atinarão com o motivo. Valeria chega a reluzir tão limpinha está.

Bueno, faminta, acho o almoço tudo de bom: feijão, arroz e galinha desfiada com batatas. Sobremesa: goiabada. Abrigados sob um paiol improvisado, aguardamos que a chuva dê uma trégua pra podermos ir pras nossas barracas. A cerração agora envolve por completo não só o Roraima como o Kukenan, impedindo que se veja qualquer vestígio de seus fabulosos paredões. Como continua a chover, ponho minha capa e vou pra barraca onde me refestelo, improvisando um travesseiro, de modo a tornar mais confortável a leitura do 3º volume de Millenium, trama de suspense, escrita por Stieg Larsson. Envolventes os livros, não nego. Entretanto, a trama é mirabolante demais, resvalando em lances inverossímeis. Até os defeitos dos personagens principais viram qualidades. Por pouco, a tal hacker não adquire contorno de super-heroína tamanho os poderes com que é dotada. No meu entendimento, são inferiores aos policiais escritos por outro sueco, Henning Mankel, que considero um dos mestres do moderno romance policial. Seu personagem principal, cheio de conflitos e ambigüidades, é um homem comum e por isso excepcional.

À tardinha, a chuva miúda, enfim, cessa e assim ao longo da parede oeste do Roraima, livre da neblina, surgem gigantescas fendas e grotões. Quedas com mais de 300 m vertem água desde o topo. A cachu Kamaiwa, lindíssima, despeja suas águas, verticalmente, sem interrupção, até a base dum platô, pra retomar sua queda, dessa feita, escavando outros platôs até atingir o solo. Consigo distinguir a trilha que amanhã nos conduzirá ao cume. Vejo nitidamente a rampa, logo após as Lágrimas, duas cachus enormes embaixo das quais deveremos passar. Parece impossível que esse paredão vertical ofereça trechos de caminhada, prescindindo da escalada. Amanhã, até que enfim, conhecerei o mundo perdido de Sir Conan Doyle!

Continua na parte 2

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