O cânion do Voturuna

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Sempre que palmilho a cumieira do espigão principal da Serra do Voturuna, em Pirapora do Bom Jesus (SP), uma paisagem em especial sempre rouba minha atenção. Situado no centro do maciço, porém voltado pro norte, um estreito e verdejante vale se espreme em meio a íngremes dobras serranas que se elevam vertiginosamente 200m acima. Longe de figurar como um cânion clássico resolvi conhecer o miolo deste semi-desfiladeiro, que esconde um simpático riachinho que singra o fundo de duas respeitáveis cristas. Um circuito de pouco mais de meio período que começou na cidade romeira e findou no Jardim Paiol, embalado em trilha, escalaminhada e principalmente tchibum, num bate-volta ideal prum dia quente de domingo.

Sem maior necessidade de madrugar, embarquei por volta das 8:30hr no intermunicipal que parte do Butantã sentido Pirapora do Bom Jesus. Viagem esta bem tranquila que rasga Osasco, Pirituba e Barueri, pra somente depois tomar a “Estrada dos Romeiros”(SP-312), via Santana do Parnaiba, até Pirapora do Bom Jesus. A presença maciça (e atípica) de velhinhos no busão era sinal de que devia estar rolando alguma celebração na cidade, importante centro de peregrinação religiosa. No entanto, essa dúvida pairou pois não cheguei a pisar no destino final do coletivo.
Sim, ao invés de desembarcar no centro saltei na entrada da cidade, ou melhor, no pequeno trevo onde uma placa escancara “Araçariguama – Via Pedagiada”. Dali retrocedi pelo acostamento da SP-312 até pouco depois da entrada do Morro do Capuava, que por sua vez está na margem esquerda. Na curva sgte abandono o asfalto em prol duma estrada de chão que sai pela direita. A poeirenta via de chão acompanha a encosta dum morro, cujo corte vertical guarda um registro geológico bem interessante, pelo que um amigo geólogo comentou ao ver as fotos. Rochas sedimentares são aquelas que foram formadas por deposição de sedimentos e tem camadas horizontais. Mas o barranco a beira da estrada era um antigo argilito; não tem camadas horizontais, elas são verticais. Devido a pressão a rocha sedimentar se tornou uma rocha metamórfica chamada folhelho e as camadas que eram horizontares ficaram verticais. Tendeu?
Mas foi apenas na curva seguinte, logo adiante, que tive meu primeiro contato visual com a montanha a minha frente. A Serra do Voturuna exibia suas corcovas abauladas e maciços apontando prum céu tão azulado quanto despido de toda e qualquer nebulosidade. Mas foi aqui onde resolvi tentar outro acesso que não o das outras ocasiões, que seria estrada abaixo. Ao invés disso, abandono a via de chão e vou de encontro á corcova do morrote de pasto por onde correm as torres de alta tensão. Dali percebo um trilho de boi que basicamente corre paralelo é encosta, sem perder altitude, indo de encontro ao selado que costumo pegar. Tudo fácil, pois o terreno descampado permite navegação visual simples.
E assim foi, subi suavemente pela encosta de pasto e tomo a picada avistada pra então me manter nela tranquilamente até onde geralmente costumo iniciar a trilha. E sem precisar descer e subir pela enfadonha estrada de chão. Uma vez no comecinho da picada oficial (que apelidei de “Trilha Norte” noutro relato) não tem mais erro. A trilha sobe pelo pasto da primeira colina pra em seguida palmilhar seu cume na direção sudoeste, em meio a enormes cupinzeiros, caraguatás e vegetação predominantemente arbustiva. A suave descida dum colo serrano vem na sequência, onde mata mais exuberante nos proporciona o frescor de alguma sombra. O trecho de brejo do fundo desta vez se encontra terrivelmente seco, denunciando a ausência de chuvas naquele inverno seco.
Depois ganho novamente altitude em meio a um bosque de eucaliptos ressequidos, pra depois o caminho nivelar por um bom tempo, onde frestas na mata na direção oeste revelam Pirapora e o Morro do Capuava, ao nordeste. Neste trecho que geralmente corto pra esquerda e tomo a picada que sobe a serra, mas desta vez me mantenho na via palmilhada, que alterna cascalho e quartzito claro. Sempre na direção noroeste, a via tende a nos levar á beirada duma pedreira que já é avistada desde longe. Mas antes disso existe uma ramificação que adentra o vale seguinte, que é o do desfiladeiro almejado praquele dia. Uma vez nesta picada não tem mais erro.
A picada adentra o vale ainda pela encosta esquerda, em nível, cruza um decrépito cocho com vestígios de agua empoçada e dali despenca vertiginosamente na direção do vale, barranco abaixo. Desviando de arbustos e enormes gravatás a picada logo desemboca as margens dum simpático correguinho, cujo som já era audível durante a breve descida. Envolto no frescor da floresta, me vejo numa vereda bem batida que basicamente acompanha o curso dágua e dali tenho a dupla opção de descer como subir o correguinho. Optei primeiramente por seguir rio abaixo pra ver onde dava.
E assim acompanhei a vereda rio abaixo, alternando ambas margens do correguinho sem grandes dificuldades, no meio da floresta. Nas cores predominantemente verdejantes daquele vale destoam pinceladas coloridas aqui e acolá, proporcionadas pelas flores a margem da vereda. Isso sem contar nos tons avermelhados das amoras que pipocam nos arbustos. Conforme avanço a vereda se alarga cada vez mais, deixando claro que fora outrora uma antiga estrada de extração. E o recorte na encosta revelando mais folhelos é prova disso além, claro, de que toda aquela região já esteve no fundo de mar. Mas durante esta pernada o destaque mesmo foram os diversos pocinhos onde a água é represada, bastante convidativos prum tchibum. Inclusive num trecho mais erodido, onde o córrego forma um minúsculo desfiladeiro.
Conforme previsto, em menos de 10 min a vereda me leva aos fundos duma fazenda. O rio, por sua vez, prossegue seu rumo sinuoso pelos descampados da propriedade, pra mais adiante desembocar na Represa do Rasgão. Pois bem, retrocedi tudo e comecei a subir o rio propriamente dito, ainda tocando pela mesma vereda, que agora se mantém sempre na margem direita do curso dágua. Inicialmente estabilizada, não demora pra declividade apertar e a subida embicar de vez. Simultaneamente, a vereda se torna cada vez mais e mais tomada pelo mato, mas a presença de algum lixo garante que minha rota deve se manter por ali.
Mas em questão de poucos minutos de caminhada, a vereda finalmente termina numa íngreme encosta onde percebo mangueiras de captação conectadas a um minúsculo afluente do rio principal. Como o mato agreste forra ambas margens do rio, não me resta opção senão escalaminhar a encosta até emergir nas pedras e pastos que forram os trechos mais elevados. Dali em diante o avanço se torna mais vagaroso e precisamente cauteloso, isto por que as rochas estavam bastante soltas e havia enormes buracos escondidos no capim. O consolo daquele trecho era ter uma linda vista interna do miolo do vale, onde praticamente me sentia emparedado pelas altas encostas que ocasiões anteriores apreciara do alto.
Prossegui naquele ritmo por mais 10min até onde empaquei num trecho muito mais íngreme, acidentado e perigoso. Sim, minha breve exploradinha havia chegado até onde ditava o bom senso de quem está sozinho 9e sem facão) naquele cafundó. Cogitei até mesmo, ao invés de subir o rio, de escalar até o alto a encosta em que me encontrava, mas a incerteza de encontrar novo patamar intransponível e ter de retornar tudo diluiu essa idéia. Mas bastou ver uma jararaquinha marota se esgueirando no lado cupinzeiro que cunhou de vez encerrar a exploração daquele dia. Dali resolvi descer ao ribeirão, encontrar algum bom remanso e simplesmente curtir um tchibum refrescante naquele improvável vale, que guarda a contradição de possuir água e ser incrivelmente tão seco quanto agreste. Como lanche improvisado, mastiguei um pão francês com mortadela previamente comprado, que no alto das quase 13hr daquele inicio de tarde serviu deliciosamente seu propósito.
Revigorado, voltei algumas dezenas de metros até encontrar um rabicho de trilha pela encosta esquerda e comecei a subir na vereda pedregosa, cercada de mata agreste e ressequida. Mas não deu nem 1/3 da altura do paredão que o caminho sumiu, não me restando opção senão continuar ganhando altura da melhor forma possível. Diferente da outra encosta, aquele em que me encontrava era menos inclinada e eu sabia que no alto tropeçaria com a picada que vai pro espigão principal. E lá fui eu, subindo cuidadosamente no meio de capim, pedras e terra fina. Cada passo era calculado pois o tempo seco deixara tudo mais solto, principalmente as rochas. Mas firme e forte, reencontrei vestígios de vereda até finalmente dar nos finalmente daquela íngreme piramba. Pro meu desgosto reparei que o terreno tava repleto de carrapatos, que exploravam curiosamente meus braços e pernas. Paciência, fazer o quê…
No alto dou um último vislumbre ao desfiladeiro palmilhado e me volto pra frente encarando as duas cristas que despencam na direção leste, estudando qual me serve melhor. Ignoro aquela que desce pro “Refugio dos Bandeirantes” pela que me é mais próxima, uma que cai numa pedreira e, na sequência, me leva ao Parque Payol. E lá me vejo descendo cautelosamente pela estreita (e íngreme) crista repleta de pedregulhos, terra e algum capim. Sem trilha, a navegação é estritamente visual devido ao terreno se mostrar descampado e aberto. E conforme perco altitude, analiso a paisagem que se descortina a minha frente pra saber qual melhor forma de sair depois daquele enorme terreno de mineração.
A crista termina num estradão de cal, que levanta poeira clara á menor brisa. E assim, descendo longos e intermináveis ziguezagues que bordejam uma enorme cratera no meio da serra, caio num aparente estradão principal. Um segurança me olha incrédulo (segurando dois cachorros), mas indica que direção tomar pra sair dali. E tome mais chinelada, agora mais suave, em meio a um vasto terreno forrado de mata ciliar. Após um correguinho cruzo alguns casebres e equipamento pesado de mineração até finalmente dar na entrada principal, que tava fechada.
Não houve necessidade de me fazer anunciar pois uns cachorros estridentes se encarregaram disso. Um senhor com cara de mau humorado resmungou, mas finalmente abriu o portão pra mim. Uma placa anunciava ali ser propriedade da Mineração Angelini, que é uma empresa que atua no segmento de extração de minérios que, em atividade desde 1957, fornece material para os mais diversos segmentos do mercado: areia pra construção civil; quartzito pro mercado de massa fina; e filito, que possui varias aplicações, que vão desde agregado para cal, carga mineral em rações e outros usos.
Agradeci e simplesmente vazei dali, já perambulando pelas ruelas do Parque Payol, um bairro rural periférico de Pirapora do Bom Jesus. Horário? Pouco antes das 16hrs. Cansado e com os joelhos latejando pela descida da serra, encostei num botequinho afim de descansar e molhar a goela com uma breja gelada. Lá fiquei cerca de meia hora, observando a pacata rotina daquele lugar que não deve nada a qualquer cidade interiorana. Depois me dirigi a um ponto na margem da “Estrada dos Romeiros”, onde esperei o mesmo busão da ida, que passou pontualmente pouco depois das 17hr. Se tivesse perdido esta condução teria que esperar a próxima, que so passaria as 22hr. Nesse caso me restaria retornar á moda antiga: embarcar em qualquer latão pra Barueri, de horários mais regulares, e dali voltar de trem, etc e tal.
A Serra do Voturuna é sempre uma grata surpresa, sempre me brindando com rolês diferenciados. E isso a apenas 40kms da maior metrópole da America do Sul. Um serrote doméstico pouco conhecido que reúne trilha, escalaminhada, cascatas e picos pra ninguém botar defeito. E some-se agora a tudo isso desfiladeiros com vales escondidos em suas entranhas. Um lugar repleto de possibilidades que reúne pré-requisitos essenciais pra se tornar Parque. Contudo, a presença de queimadas, de vestígios de caça predatória e até de mineradoras, que acabam lentamente com a montanha, são sinais de descaso do Poder Público perante uma área tão promissora em termos de turismo como essa. Espero conhecer cada vez mais desta preciosidade do Alto Tietê. Um lugar que já foi referência bandeirante e ativo núcleo minerador, mas que ainda busca seu merecido reconhecimento oficial  (e legitimo) como paraíso ecológico.









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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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