O Mirante do Japi

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Em 1986 o mundo fervia com a passagem do Cometa Halley, seja ansioso pelo espetáculo proporcionado como pelo apocalipse q viria junto. O tempo passou, o show celeste deixou a desejar e a humanidade continuou em pé, mas o Halley deixou um legado q coroa os 1185m dum dos maiores picos da Serra do Japi, o observatório Astronômico Kiko de Matheo. Homenageando o maior defensor do Japi, infelizmente da estrutura hj só resta sua carcaça. Ruínas estas que seriam bem acessíveis por trilha sussa de 4kms não fosse ali uma área repleta de restrições. E palmilhar essa vereda resultou no rolê “proibido” de menos de meio-dia, na condição de pontapé inicial de pernadas pelo guardião de Jundiaí. Programa q contou com retorno pelas nascentes do Ribeirão Japi, no vara-mato.

Já há algum tempo q pretendia meter as caras na Serra do Japi, pequena cadeia montanhosa detentora duma das últimas grandes áreas de floresta contínua de São Paulo, mas sempre foi programa q fui adiando por alguma razão qq. Única floresta tropical do mundo sobre solo de quartzito, está situada entre os municípios de Jundiaí, Cabreúva, Pirapora do Bom Jesus e Cajamar, a apenas 60km da metrópole paulistana. Pra proteger td essa rara e valiosa biodiversidade foi feito de td e mais um pouco, desde tombamento, criação de parque, APA, etc. E com isso tb vieram regras, normas e proibições de livre acesso. Digo isto pq pra adentrar nos caminhos oficiais do Japi é preciso autorização (e agendamento) antecipada com a prefeitura. Logo, é necessário o uso obrigatório de guia, algo do qual não sou muito fã pois nivela comodamente o ser humano por baixo.

Mas felizmente (e extra-oficialmente) existem os caminhos “alternativos” e de livre acesso q evitam a guarita do parque, quase tds nascendo do bairro de Santa Clara. E pra começar a conhecer o Japi nada melhor q um passeio curto e tranqüilo, onde a escolha não podia ser melhor: a cênica “Trilha do Mirante”. Felizmente tb existem mais pessoas q, assim como eu, partilham do gosto de mato e detestam restrições e imposições enfiadas goela abaixo. Pessoas como o Alberto Martins, jundiaiense da gema q semana atrás me contatou prum rolê na serra q já se tornou paisagem corriqueira no quintal de sua casa.

Devia ser algo em torno das 6:30hr qdo o Alberto me pegou na Estação Jundiaí naquela manhã bastante promissora. Acompanhado de sua consorte, a simpática Liziane, imediatamente tomamos a direção rumo o bairro de Santa Clara, situado no contradorte sudeste da Serra do Japi. Cruzada a Anhangüera (SP-330) e, logo depois, a Bandeirantes (SP-348), o veiculo se pirulitou Jd Maringá adentro, passando pelo lado da “Pedra da Baleia”, serrote visitado semanas antes. Foi ai q a janela emoldurou as verdejantes escarpas do Japi elevando-se majestosamente a noroeste, recortando um céu azul despido de qq nuvem.

Após rodar um tempo pela Av. Luis Gobbo, fomos acompanhando a sinalização “Estrada Laranja Azeda – TV Cultura”, sem gdes dificuldades. O asfalto então deu lugar a chão batido e o mato não tardou a dominar a paisagem de ambos lados, enqto sítios e chácaras pincelavam algum resquício de “civilidade”, mesmo estado bem do lado do Japi. Não é a toa a penca de restrições, tendo em vista q 90% das terras da Serra do Japi estão em mãos de particulares, geralmente sem interesse algum em promover algum tipo de uso auto-sustentado.
Após passar por uma simpática capelinha é q a declividade finalmente aumentou e começamos a subir, mesmo q de forma vagarosa e quase imperceptível. Até q finalmente estacionamos na cota dos 1100m, as 7:15hrs, a beira duma porteira de ferro com as inscrições “Porteira 1 – Proibida Entrada – Área sob vigilância da Guarda Municipal”. Do lado, outra placa do parque escancara algo mais ameaçador:“Reserva Biológica Municipal da Serra do Japi – Área de Preservação Ambiental – Não entre sem autorização – Infratores estão sujeitos à legislação ambiental sob pena de prisão”.

Nos despedimos da Liziane, q deu meia volta e zarpou com o veiculo, mas ficou de nos “resgatar” embora não fizéssemos idéia alguma de onde isso fosse. Isso pq do Mirante decidiríamos q rota tomar, ou seja, fazíamos nosso caminho conforme caminhávamos. Pois bem, saltamos de forma marota a porteira e começamos a andar tranquilamente pela precária estrada q tínhamos a nossa frente. Cercada de mata, o caminho era de chão batido e se alternava entre vala erodida e terra coberta de folhas. E assim foi nossa primeira hora de pernada, subindo e descendo suavemente sem maior desnível, ora percorrendo encostas ora tocando pela abaulada cumieira da serra. Mas sempre agraciados pela sombra e pela penumbra remanescente dos raios solares penetrando na copa do farto arvoredo a nossa volta.

O tempo foi passando e a gente sempre tocando pra noroeste, ignorando ramificações laterais, pudemos constatar uma das principais características do Japi, como região de rara transição de ecossistemas. A floresta mesófila semidecidua logo deu lugar a mata semidecidua de altitude, mais baixa e compacta, assim como bordejamos trechos repletos de brejos de altitude, conforme subíamos mais e mais. Mas a altura ganha so foi sentida mesmo qdo a mata foi rareando mesmo e o sol estapeou nossa cara, abrindo horizontes a nossa volta permitindo visualizar td extensão das montanhas a nossa volta. O caminho, batidinho, agora era uma massa ardilosa de cascalho solto – como se fosse fundo de rio – mas q não demorou pra apresentar vestígios antigos de calçamento, na verdade, restos duma antiga estrada asfaltada td detonada.

E assim as 8:30hrs alcançamos o topo da montanha, mais precisamente os 1175m dum dos ptos mais altos da Serra do Japi. Antenas de telefonia dividem o amplo espaço com uma estrutura metálica curiosa, enferrujada e deteriorada não so pelo tempo, mas tb pelo abandono. Aquele ai era um resquício de meados dos anos 80, o observatório Astronômico Kiko de Matheo, construído especialmente pra observar o Cometa Halley! Seu nome homenageia Francisco de Mateo (mais conhecido como Kiko), q não so foi o maior defensor do Japi como tb foi o responsável direto pelo tombamento da serra como patrimônio. Falecido, acredito q hj Kiko não gostaria de ver o fim q levou o observatório q leva seu nome. Desativado e abandonado a mto tempo, a estrutura hj esta largada as moscas, carcomida pelo tempo e pelo vandalismo. Pixações e péssima conservação denotam a falta de memória com o passado. Até houve restauração em 97 (como bem mostra uma placa encravada numa das paredes laterais), mas depois disso foi largado novamente ao ostracismo. Uma pequena abertura permite adentrar na estrutura, aventura da qual declinamos por conta do péssimo estado das escadas internas e pela presença de ninhos de marimbondos.  Mas uma coisa é certa, o observatório não podia ter sido construído em melhor lugar, pois dali se tem uma visão de td serra (embora algum mato tenha crescido em volta), permitindo uma privilegiada panorâmica da região.

Pois bem, missão cumprida. “E agora José?”, perguntei pro Alberto. Decidimos então não retornar pelo mesmo lugar e mto menos pela continuidade da via palmilhada, q descia a montanha na direção noroeste. Optamos por descer na raça pelo contraforte norte da serra, onde antigamente existia uma via q a mto tempo sumiu, seja pelo desuso como pelos deslizamentos q a descaracterizaram. E lá fomos nós, mergulhamos na mata e começamos a desescalaminhar a vegetação a nossa frente. O terreno era bem íngreme, mas felizmente havia fartura de apoios  q tornaram a descida possível. A trilha sonora desse trecho era composta pelos galhos rompendo e terra revirada, eventualmente pela interrompida pela algazarra promovida por macacos nalgum vale transversal.

Descemos aquela piramba quase vertical perdendo altitude num piscar de olhos, ate alcançar um nível onde a pernada suavizou. Azimutando sempre pro norte, buscamos não perder a rota mas fomos descendo o resto de encosta nos valendo de valas ou da encosta, de modo a desviar das voçorocas de mato mais espinhento ou agreste. Alem da carta e bússola, nossa referencia era auditiva pois bastava tocar na direção do som de veículos transitando pela Rod. Bandeirantes. Foi ai q alcançamos um vale q começou a desviar pra direita, onde uma encosta serrana se interpôs a nossa frente abafando o som dos veículos. Mas em comum acordo decidimos acompanhar aquele vale.

Logo na frente nos deparamos com água correndo, as 9:40hr, e foi aquele curso q passamos a acompanhar, costurando ambas margens ora chapinhado por brejo ora saltando pedras no caminho. Eventualmente tínhamos q vencer enormes deslizamentos q traziam metade da floresta bem no meio do caminho, dos quais apenas desviávamos ou encarávamos frontalmente, na raça. E sempre consultando a bússola a cada 5min. Foi ai q o Alberto disse q seu GPS acusava uma estrada bem ao nosso lado, coisa de 300m, provavelmente a “Antiga Estrada da Malota”, entrada oficial da Base Biológica Serra do Japi. Mas decidimos prosseguir acompanhando o córrego, q pela carta deduzimos ser uma das nascentes q integram o Córrego da Estiva, tb oportunamente chamado de “Japi”, q por sinal significa nascente de rios em tupi.

Mas nossa decisão nunca mostrou-se mais acertada  pois logo adiante encontramos uma mangueira de captação, sinal q ela levaria fatalmente á “civilização”. Uma precária picada eventualmente surgia ao lado do córrego, q facilitava (e muito) o avanço embora ainda tivesse trechos onde mata tombada dava algum trabalho. Foi ai q caímos numa antiga estrada desativada (e tomada pelo mato), marcada por uma decrépita porteira, q desceu o resto do trajeto acompanhando a encosta direita da montanha. E tome mais chão em meio a mto mato, relativamente de facil transposição, apesar d’algumas touceiras chatas de capim-velcro e taquarinhas espinhentas no caminho.

As 11hrs finalmente desembocamos as margens dum laguinho onde dois cavalinhos pararam de ruminar, curiosos. Dali caímos num descampado de pasto q exibia enormes cactos, típicos do sertão, justificando o Japi como área de transição de ecossistemas. Dali ate encontrar uma casa foi sussa, embora a gente ficasse meio com receio de dar no quintal de alguém por conta de cachorros. Mas por sorte logo caímos num estradão de terra, onde conseguimos facilmente carona até os limites de Jundiaí, onde a Liziane nos buscou prontamente. Antes de partir pra Sampa, claro, passamos numa padoca onde entornamos uma gelada e filávamos o delicioso almoço sendo servido.

E esse foi nossa primeira e breve incursão (das muitas q ainda virão) pelas quebradas da Serra do Japi, uma região repleta de paradoxos em suas restritivas (e ridículas) proibições de acesso. Sim, é preciso preservar. Mas um parque cuja livre visitação é vedada perde automaticamente sua razão de ser. Qdo se cria uma série de empecilhos ou se enfia um guia goela abaixo se perde a oportunidade da pessoa em descobrir por si própria as maravilhas do lugar. Logo, não se valoriza aquilo q não se conhece, assim como não se protege aquilo q não se ama. E parafraseando o gde Sergio Beck: " uma trilha não é apenas um caminho no chão. É um legado, uma herança de ancestrais esclarecidos, um patrimônio a ser dividido com outros aventureiros e amantes da natureza.."

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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