O Polo Norte (Parte II)

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Talvez eles não sejam estrelas, mas aberturas no céu por onde o amor daqueles que perdemos brilha sobre nós para dizer que estão felizes.

Mesmo a águia mais forte não pode subir além das estrelas.

Provérbios inuit.

 

O Polo Norte (Parte II)

Se Cook era trapaceiro, mas não necessariamente mau, seu rival Peary era desleal, violento, rude e igualmente mentiroso – mas também incansável, poderoso e competente. Dele já se disse ter sido possivelmente o mais bem sucedido e provavelmente o mais antipático dos homens nos anais da exploração polar.

Robert Peary (1856-1920) era um engenheiro civil americano que ingressou na Marinha aos 25 anos e nela permaneceu durante toda sua vida ativa. Durante anos participou de inúmeras expedições polares – as duas primeiras para provar que a Groenlândia era uma ilha, tentando atravessá-la de oeste a leste e depois, de sul a norte. E a terceira, para atingir o ponto mais ao norte até então alcançado na Ilha de Ellesmere.

O impressionante perfil recortado da Ilha de Ellesmere, entre o Canadá e a Groenlândia.

Na segunda delas, quebrou as duas pernas e foi socorrido pelo médico da expedição, ninguém menos do que Frederick Cook. E, na terceira, Cook foi chamado pela família dele para resgatar Peary no Ártico, onde o encontrou vítima do escorbuto e do coração. Nenhum dos membros das suas expedições tinha permissão de escrever sobre elas antes que Peary o fizesse – e Cook, que também era escritor, seguiu seu próprio caminho.

Foi na volta da primeira viagem que Peary assim escreveu a sua mãe: Minha última viagem mostrou meu nome ao mundo; a minha próxima me dará uma posição no mundo (…) eu estarei em evidência nos mais elevados círculos da capital, e farei amizades poderosas com quem poderei moldar meu futuro ao invés de deixa-lo vir ao acaso (…) lembre-se, mãe, eu tenho que ser famoso.

As aventuras de Peary eram bancadas por milionários e organizações civis, parece ter sido o aventureiro mais bem financiado – acho que devido ao seu comportamento confiante e agressivo. No período inicial de 1886-1902 ele desenvolveu o Sistema Peary de grandes expedições, com pesados trenós puxados por cães, montagem de depósitos de suprimentos à frente, construção de iglus ao invés de tendas, uso de vestimentas como as dos esquimós e emprego destes como guias e caçadores.

Mas os inuit eram meros instrumentos para a glória de Peary. Ele desenterrou nativos mortos e vendeu seus ossos para um museu. Levou seis deles vivos – os caçadores mais fortes e os homens mais sábios – para serem estudados. Na viagem de navio, foram esquecidos no porão e tratados como cães. Em Nova York, viveram simplesmente largados em ambiente insalubre, quatro deles morrendo ao fim de um ano. Só o menino Minik pôde retornar à sua gente.

Robert Peary se apoderou de um meteorito que era a fonte de metal dos inuit e o vendeu por uma fortuna. Além disso, teve pelo menos dois filhos com uma jovem nativa – e, obviamente, abandonou-os. Seu auxiliar Matthew Henson, filho de negros americanos, também não ficou atrás. Mas os filhos foram achados quando já eram octogenários e enfim trazidos à América para visitar os túmulos dos pais.

Depois dessas façanhas, Peary organizou duas novas expedições ao Ártico, ambas com apoio do veleiro SS Roosevelt. Na de 1905-06, chegou à latitude de 86⁰ (segundo ele, 87⁰) e disse ter descoberto uma terra que nunca existiu, aliás bem ao seu estilo.

A progressão dos trenós puxados a cães da expedição de Peary sobre os campos gelados do Polo Norte.

Na de 1908-09, afirmou ter chegado ao Polo Norte, junto com seu fiel assistente Henson e quatro esquimós. Segundo ele, a extensão total percorrida, desde seu último acampamento, quando os seis se separaram do grupo maior, foi de 560 km – e isso em beeline ou linha reta.

Mas o estudo das distâncias e velocidades indica que, na ida, o grupo teria de ter se movido a duas vezes o ritmo normal e, na volta, a quatro vezes, para caber no tempo entre a saída e a volta. A velocidade no Ártico era de 20-25 km/dia em condições normais. Imagine que, de acordo com as próprias informações de Peary, ele deveria ter alcançado 98 km/h na volta – e em linha reta!

Nesta época, ainda não havia as Olimpíadas do Gelo – de qualquer forma, com 52 anos de idade e sob uma pesada pele de foca, o desempenho dele não seria nada bom. Um embuste grosseiro. Com sua habitual arrogância, anunciou logo que chegou na primeira estação de telégrafo: Estrelas e listras cravadas no Polo Norte, numa alusão á bandeira americana.

Mas devo explicar uma questão. Se na Antártida o Polo Sul corresponde a um local físico, no Ártico ele é puramente conceitual. Ele fica apenas sobre o gelo e este está em movimento contínuo. Não basta a medição da latitude, é necessária a verificação longitudinal. Peary dizia que sempre caminhou sobre o meridiano de Colúmbia (120 W), mas ele não tinha realmente como saber, sem a medição da deriva.

Matthew Henson, que disse ter sido o primeiro homem a pisar no topo do mundo, um ano antes do feito.

Em resumo, não há dados suficientes sobre a navegação praticada por Peary e tampouco uma confirmação independente – afinal, de sua equipe só Henson entendia do assunto, mas provavelmente não muito (por exemplo, não sabia usar o sextante). Amundsen tomou o cuidado de trazer consigo teodolito e sextante (além de bússola), para tomadas da distância, da posição e do rumo.

A National Geographic Society, que edita a conhecida revista, sempre apoiou Peary e foi a guardiã ciosa de seus apontamentos. Em 1984, o explorador polar Wally Herbert foi chamado para consultá-los e concluiu que ele os falsificou. Provavelmente Peary esteve a algo como 40 a 100 km do Polo – ou a meros 6 km, segundo uma versão suspeita da NGS. Como disse a Peary um membro do Congresso: Eu aceito a sua palavra. Mas sobre as suas provas, eu não sei de coisa alguma. Ou Peary mentiu ou se enganou.

Em 1909 Robert Peary foi promovido a contra-almirante e imediatamente se aposentou. Claro que desde então recebeu muitas honrarias e ocupou vários postos civis. Faleceu em 1920 e foi sepultado no cemitério americano de Arlington, onde estão os heróis militares. Mais de 60 anos depois, o preconceito racial foi corrigido e Matthew Henson conseguiu afinal sua sepultura lá. Se de fato o Polo Norte foi conquistado por eles, Henson terá sido o primeiro a pisá-lo.

A equipe da última expedição de Robert Peary posando no Ártico, antes da partida de Peary e Henson. A câmera de Peary se perdeu.

Você já conheceu Minik, a prenda humana de Peary. Ele teve o prazer de rever um dia as ossadas dos seus companheiros numa mostra do museu para o qual foi levado. Minik sobreviveu em desespero por doze anos nos Estados Unidos, até que Peary o liberou. Mas nunca conseguiu que seu pai fosse dignamente sepultado, ao invés de permanecer como um mostruário de ossos.

Quando voltou a seu povo, estava destruído mental e fisicamente, não sabia mais falar, pensar ou caçar. Foi Rasmussen quem o acolheu e procurou salvá-lo. Minik teria se recuperado e trabalhado como guia e tradutor na Groenlândia, até estranhamente retornar aos Estados Unidos.

Minik Wallace (1890 – 1928), nascido livre no Ártico e morto ignorado nos Estados Unidos, mais uma tragédia do colonialismo.

Lá ele morreu dois anos depois, quando trabalhava numa madeireira, um ofício humilde para quem não tinha habilidades especiais. Se você olhar as imagens de Minik adulto, vai sentir pena ao enxergar uma pessoa estranha, feia e ausente, talvez aturdida pela usurpação de sua vida.

Knud Rasmussen (1879-1933) tinha uma forte ligação com o povo do Ártico. Nasceu num povoado da Groenlândia, filho de um pastor dinamarquês e uma mãe meio sangue inuit. Aprendeu a língua nativa antes do  dinamarquês. Dedicou sua vida ao conhecimento do território onde cresceu e ao resgate da cultura onde viveu.

Um dia ele escreveu: O maior perigo da vida reside no fato de que o alimento humano consiste inteiramente de almas. Todas as criaturas que devemos matar e comer, todas aquelas que temos que abater para fazer nossas roupas, têm almas, almas que não perecem com o corpo e que devem ser pacificadas para que não se vinguem de nós por termos tirado seus corpos.

Knud Rasmussen (1879-1933) o dinamarquês nascido na Groenlândia que explorou a terra e pesquisou a gente do Ártico.

Sua primeira expedição de 1902-04 foi curiosamente literária, focada na cultura nativa. Palestrante e escritor, estabeleceu em 1910 no Cabo York do noroeste um entreposto comercial para o comércio de peles da região. Chamou-o de Thule, em referência aos ascendentes dos esquimós.

De 1912 a 1933, participou das sete Expedições de Thule, das quais duas foram para reconhecimento do território, uma para abastecimento do navio de Amundsen e três para pesquisa cultural. Mas a maior delas foi a quinta, quando Rasmussen em 1921-24 atravessou por trenó a talvez suspeita extensão de 30 mil km desde o norte da Groenlândia até o Alasca, a Sibéria e o Mar de Bering.

Na realidade, ele percorreu a pé toda a Passagem Noroeste. Seu objetivo era o levantamento da cultura inuit, junto com seis outros especialistas, desde a arqueologia e a linguística até a biologia e o folclore. Na última expedição, Rasmussen foi contaminado por salmonela e faleceu poucas semanas depois em Copenhagen.

A casa isolada no Cabo de York, que serviu de apoio às expedições de Thule.

Diferentemente de todos os personagens que narrei, foi o único que nada quis conquistar, apenas aprender. Wade Davis diz que suas ambições nada tinham a ver com si mesmo. Sua busca não foi um objeto ou um lugar, mas um estado de espírito, uma compreensão profunda que lhe permitisse revelar ao mundo a maravilha da vida dos inuit.

Rasmussen quis recuperar a visão de mundo dos esquimós, descobrir o conteúdo de sua magia e a força de sua cultura. Ele explorou a mente, não o território.

Os primeiros humanos a comprovadamente alcançarem o Polo Norte chegaram lá em snowmobiles. Era um grupo de norte-americanos liderado por Ralph Plaisted, que atravessou 650 km desde a borda norte da Ilha de Ellesmere. O combustível foi reabastecido por um avião da Força Aérea, que os levou de volta logo após a conquista. Ela aconteceu em abril de 1968, na sua segunda tentativa.

Exatamente um ano depois, o britânico Wally Herbert e três companheiros chegaram a pé no Polo Norte – porém com ajuda da tração de cães e de suprimentos lançados por avião. Este feito fez parte da travessia terrestre de 6 mil km no Ártico e premiou meio século de explorações polares de Herbert.

A pedido da NGS, Herbert teve acesso ao cobiçado diário de Peary e publicou em 1989 que ele tinha falsificado as informações e nunca havia chegado ao Polo Norte.

Finalmente, em maio de 1990 os noruegueses Borge Ousland e Erling Kagge foram os primeiros a finalmente atingir o Polo sem qualquer apoio mecânico ou animal. Saíram como sempre da Ilha de Ellesmere e levaram dois meses para percorrer 800 km.

Mais tarde, Ousland repetiu o feito na Antártida. Em seguida, convenceu sua noiva Hege a casar-se com ele no Polo, aonde chegaram de helicóptero, e com direito a ajoelhar diante de um padre. Para mim, tudo que queria era casar-me com a mulher que amo no lugar que amo, disse ele. E, sim, hoje ele e Hege têm três filhos.

O norte-americano Ralph Plaisted chefiou a primeira expedição a comprovadamente pisar no Polo em 1968.

O explorador britânico Wally Herbert chegou em 1969 pela primeira vez ao Polo a pé.

 

 

 

 

 

O aventureiro japonês Naomi Uemura foi o primeiro a chegar ao Polo numa travessia solo em 1969.

O norueguês Boerge Ousland atingiu em 1990 o Polo sem qualquer apoio. Em 2012 ele casou-se lá com a bela Hege.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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