Pico Paraná Abaixo de Zero

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Pela primeira vez neste ano, a previsão da chegada de uma forte massa de ar polar parecia se confirmar. Seguramente a temperatura em Curitiba ficaria negativa, e o branco da geada cobriria os gramados dos parques. Por que não apreciar esse espetáculo tão raro para nós brasileiros no alto da serra?



Depois de chover torrencialmente e incessantemente desde a sexta-feira à noite, o tempo finalmente abriu por volta do meio-dia de domingo. Não demorou para eu receber um telefonema do Eduardo “Rato” Formighieri. Ele procurava um parceiro para ir para a serra ainda no domingo, e retornar só na terça. Como não tinha nada importante para fazer nesses dias, topei na hora. Arrumei rapidamente a mochila, aliás, rápido demais, e acabei esquecendo muita coisa em casa.

No caminho para a Fazenda Pico Paraná, fomos escutando o triste jogo Brasil x Paraguai…

Começamos a caminhar às 17h30, e como o sol já tinha desaparecido, a sensação de frio começava a aumentar, dando uma leve idéia do que enfrentaríamos lá em cima. A idéia era acampar nessa noite no cume do Pico Paraná (PP – 1.877 m), ou então no Abrigo 2 (A2 – 1.620 m) se o tempo estivesse muito ruim.

Embalados pelo frio, subimos rapidamente o morro do Getúlio (1.480 m), e na bica logo após a bifurcação do Caratuva, paramos para tomar um suco. O frio ali na beira do riozinho logo ficou insuportável, por isso tocamos adiante sem parar até o rio antes do Abrigo 1 (A1), onde tomamos outro sucão. A chuvarada que caiu no fim de semana transformou a trilha num grande lamaçal, e como minha bota há muitas trilhas perdeu a impermeabilidade fui andando com cuidado para não molhar os pés. Ao chegarmos no A1 a visão não foi muito animadora, pesadas nuvens subiam do litoral. Parecia que a previsão do tempo tinha errado de novo. Quando subimos as escadinhas logo após a sela (1.450 m) entre o Caratuva e o conjunto do PP, fomos engolidos pelo nevoeiro. Na subida até o A2, hora o céu se abria, hora se fechava. Paramos dentro da casinha de pedra, e fomos até a bica pegar água. Como o tempo havia fechado de vez, já estávamos prontos para acampar ali mesmo. Foi quando num passe de mágica as nuvens foram embora, e o céu iluminado pela lua quase cheia se abriu por completo, revelando apenas nuvens para o Norte, na região do vale da Conceição. Imediatamente pegamos nossas coisas e rumamos para o topo.

Até ali não estava tão frio quanto esperávamos, mas a subida da crista nos expôs ao vento. Com a mochila 5 quilos mais pesada por conta da água, eu me arrastava montanha acima. Ainda sentia nas pernas o efeito das duas travessias realizadas nas últimas três semanas.(Leia também: Travessia da Serra do Ibitiraquire) Paramos algumas vezes para descansar refugiados entre as grandes rochas que afloram naquela altitude, e logo depois de vencer a última escada e a rampa da corrente (onde agora também existem degraus), chegamos ao topo do Falso Cume. A visão da grande rocha do cume do PP, iluminada pelo brilho do luar, era algo quase místico. Nos aproximamos dela, e pedindo licença contornamos pela direita, e às 23 horas em ponto pisávamos no topo do sul do Brasil. Exatamente 5h30min de caminhada noturna, com cargueira. Nada mal.

Antes que o corpo se esfriasse montamos nosso acampamento e trocamos de roupa. Apesar de todo o cuidado, foi impossível evitar que entrasse água na bota, e agora estava com as meias molhadas. Uma das coisas importantes e imprescindíveis que esqueci foi um par de meias secas. Começamos logo a preparar o jantar: arroz com bacon e lingüiça calabresa fritos! Para acompanhar, nada melhor do que um bom vinho, que também ajudou a dar uma esquentada no corpo. Enquanto o Eduardo cozinhava, percebi que por cima da barraca já se formava uma fina camada de gelo. Sem sombra de dúvidas a temperatura já estava negativa. Depois de comer, não perdemos tempo e desaparecemos dentro da barraca.

A noite foi longa e gelada. Meu saco de dormir, projetado para agüentar 5°C positivos, não dava conta de me manter aquecido, e mesmo com toda roupa disponível (que também não era lá grande coisa) e um par de meias secas, emprestado pelo Eduardo, sentia o corpo gelando. Acordava volta e meia com os pés doendo, procurava movimentá-los e a dor parava um pouco. Pro Eduardo a noite também foi longa e pela manhã se queixou do frio que passara.

Ao clarear o dia, ele teve que “ir ao banheiro”. Aproveitou para fotografar a manhã de tempo esplêndido. Eu apenas olhei para fora, tentei calçar a bota, mas ela estava dura de gelo! Dei alguns passos fora, descalço, e pude sentir que a umidade do chão tinha congelado. Apesar disso, não havia geada propriamente dita, pois a umidade do ar estava muito baixa e não se formou orvalho. O ar estava totalmente parado, nenhuma brisa soprava. Voltei o mais rápido que pude para a barraca, e demorei a me requentar. Um pouco mais tarde, quando o sol já estava alto, pulei com saco de dormir e tudo para fora e fiquei deitado, aproveitando o calorzinho gostoso do sol. O Eduardo preparou um cafezão, que ajudou a esquentar ainda mais.

Saí andar pelo cume e apreciar a vista. A atmosfera limpa deixava ver todo o litoral. A ilha do Mel estava desenhada como num mapa, bem como a ilha das Peças e do Superagüi. Os contrafortes da Serra da Prata erguiam-se majestosos, o Marumbi parecia mais perto do que nunca! Lá pelas tantas, encontrei várias pequenas “cascatas de gelo” sobre as rochas voltadas para o Sul, formadas pela água da chuva que acabou congelada. E incrivelmente elas continuavam congeladas, mesmo com calorzinho do meio-dia.

Apesar de estar muito bom ficar ali em cima, estávamos ficando irrequietos e não víamos a hora de andar novamente. Decidimos então desmontar acampamento e ir para o Itapiroca (1.805 m), mas antes aproveitamos para tirar mais um cochilo no sol. Acabamos acordando mais tarde do que o previsto, e saímos do cume por volta das 15 horas. Ao descer o Falso Cume, ficamos espantados com a visão da parede sul do PP: nas canaletas e rochas por onde escorria a água da chuva, era fácil perceber que ainda estava tudo congelado!

No A2, encontramos outra dupla de montanhistas que tinham acabado de montar acampamento lá para aproveitar o frio. Ao chegarmos à sela, o sol já tinha se escondido atrás do Itapiroca, e na subida até o A1 começamos a sentir frio novamente. Ao pararmos no rio para descansar e pegar água, ficamos gelados. Sem perder tempo, lutamos contra o cansaço para chegar ao Itapiroca antes de escurecer. No caminho, fomos surpreendidos por grandes pingentes de gelo pendurados em algumas rochas voltadas para o sul, que também teimavam em não derreter, mesmo depois de um dia inteiro.

Cheguei à bifurcação um pouco depois do Eduardo, e subimos o trecho final numa só pegada, quase sem enxergar mais nada. Despontamos nos campos de altitude com a lua já iluminando tudo, e encontramos os charcos, que dominam a paisagem desta montanha, já congelados. Montamos logo nossa barraca, recolocamos as roupas secas e ficamos apreciando a bela noite fria. O ar totalmente limpo e translúcido permitia ver as luzes de todo o litoral, assim como dos navios ao largo de Paranaguá.

Com o estômago já roncando, preparamos a janta. No cardápio da noite, arroz com bacon e calabresa fritos, e feijoada em lata! Outro litro de vinho que o Eduardo tinha escondido ali foi apreciado sem moderação. Mas mesmo assim, o frio estava pegando! O jeito era manter o corpo em movimento, andando de um lado para outro ou em círculos. A tática deu certo, e os pés pararam de doer. Mas era só ficar parado pro corpo começar a gelar. A umidade vinda dos banhados em volta aumentavam ainda mais a sensação de frio. Logo depois de comer, saímos dar uma volta pela grande área de acampamento. No Caratuva vimos lanternas, e fizemos sinal para eles, sendo correspondidos. Depois fiquei sabendo que era um amigo meu, o Wilson. Encontramos outra dupla, que estava fazendo um ataque. Conversamos um pouco, e esperamos eles regressarem do cume para ir dormir.

Apesar de ser bem mais fria do que a anterior, nesta noite não sentimos tanto frio. Mas mesmo assim, acordei de madrugada sentindo o corpo gelando, e muita dor nos dedos dos pés. Tratava de me mexer um pouco, e a dor passava. Dormia mais um pouco e logo depois acordava na mesma situação. Pouco antes do sol nascer, o Eduardo teve que sair para regar a moita, voltando quase congelado. Dormimos de novo, e acordei com o sol já batendo na barraca. Desta vez coloquei as botas dentro da mochila e esta dentro da barraca, por isso elas não congelaram e pude usá-las sem problema. Saí apressado para fotografar a paisagem congelada. E pude presenciar algumas cenas raras: numa clareira onde tinha areia molhada, formou-se uma grossa camada de gelo, e os cristais acabaram suspendendo os grãos de areia. A lama que normalmente cobre a trilha ali, estava dura, e as poças de água exibiam uma grossa camada de gelo. Mas como a umidade do ar estava muito baixa, novamente não houve formação de geada. Outra vez podia ver gente no Caratuva, definitivamente havia muito mais gente na serra do que esperávamos encontrar. Descobri depois que na turma do Caratuva tinha outro amigo, o Johny. Voltei para a barraca com os pés doendo de tanto andar sobre o gelo, e estendi meu isolante e saco de dormir no quente sol da manhã. Finalmente pude dormir satisfatoriamente.

Refeitos e descongelados depois da noite mal dormida, desmontamos o acampamento e deixamos as mochilas prontas, enquanto fizemos um rápido ataque ao cume. A descida foi rápida, desta vez torrando no sol do meio-dia no cume do Getúlio. Antes de voltar para a cidade fizemos a tradicional parada no posto Tio Doca, para comer um salgado com Coca-Cola.

Esses dias que passamos lá em cima, com certeza não foram perdidos. Fomos testemunhas de algo muito raro neste país tropical. Apesar de não ser nada comparado ao frio que se pega nos Andes, por exemplo. Mas pra gente, que não consegue viajar pra lá, tá de bom tamanho. Não levamos termômetro, mas pelas nossas estimativas pegamos em torno de -4°C na primeira noite, e aproximadamente -6°C na noite seguinte.

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