(R)evolução na trilha – a controversa cena política da corrida de montanha

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Atletas top do trail running mundial rebatem decisões da nova cena política do esporte e acendem a questão: por qual caminho a corrida de montanha vai seguir pelos próximos anos?

Por Bruno Romano
 
“ESTÃO ALIENANDO nosso esporte.” O desabafo vem de uma carta aberta do ultracorredor francês François D’Haene, atual bicampeão da mítica Ultra-Trail du Mont-Blanc, evento símbolo da corrida de montanha. Descontentes com os rumos da modalidade, François e outros atletas de elite decidiram boicotar o Campeonato Mundial de Ultra Trail de 2015, disputado no último mês de maio em Lac d’Annecy, na França – na sequência, o atleta aproveitou para descer a lenha nos dirigentes das principais competições atuais. A revolta de François escancarou a ponta do iceberg de uma nova cena política que pode mexer com o destino do trail running amador e profissional.
 
Neste mês de agosto, um congresso da Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF), o órgão que gerencia esse esporte em todo o mundo, vai reconhecer a corrida de montanha como uma modalidade oficial. O último mundial em Lac Annecy, aliás, já teve supervisão da entidade máxima do atletismo, trazendo algumas mudanças sensíveis, como largada separada para o pelotão de elite. A inclusão na IAAF deve trazer também uma enxurrada de novas regras e procedimentos, que vão desde a escolha e marcação dos percursos até o sistema de controle antidoping. O novo cenário criou uma divisão entre dois grupos: aqueles que defendem uma modalidade livre de sobre-regulações, como François, e os que acreditam em novos rumos para o trail running, sob a chancela da IAAF.  
 
A voz do corredor francês, no entanto, não ressoa sozinha. Ele é um dos líderes de um grupo informal de atletas de elite de diversos países que há pouco mais de dois anos tem discutido (de forma presencial e virtual) melhoras na modalidade. Em uníssono, os representantes desse pelotão – que inclui corredores de maratonas, ultras e percursos verticais – estão insatisfeitos com a falta de representatividade que possuem nos órgãos que administram o trail running. Eles também reclamam do preço abusivo das inscrições, de taxas extras para participar de eventos e da necessidade de se inscrever em recém-criadas associações para correrem determinadas provas (entre elas, o último mundial). Caso tudo se mantiver como está, eles prometem novos boicotes. 
 
“Queremos tomar mais cuidado com os valores do nosso esporte e estamos buscando uma união entre atletas, organizadores, patrocinadores, federações e mídia”, conta François à Go Outside. “Minha carta aberta foi escrita para informar mais pessoas do que está acontecendo e para tentar manter o espírito e a paixão pela corrida dentro de todos”, completa ele, que teve seu recado aberto compartilhado por 2.000 pessoas e comentado por mais de 500 usuários das redes sociais. Segundo François, de maio para cá, nenhuma mudança efetiva ocorreu, mas as discussões sobre o tema entre os amantes da modalidade já são um passo à frente rumo a melhoras.
 
Os dirigentes da Associação Internacional de Trail Running (I-TRA), no entanto, negam ter fechado as portas para François e os demais atletas. Criada em 2014 na França, a I-TRA é o novo órgão que dialoga com a IAAF. Diversos corredores questionam sua representatividade e a forma como a entidade surgiu – segundo alguns atletas, a organização se autoproclamou, de uma hora para outra, a representante de todos. A I-TRA foi a responsável por escrever o artigo 252 da constituição da IAAF, que determina as regras que definem a nova disciplina de trail running. Para Michel Poletti, diretor da associação, o objetivo não é unificar o esporte, mas sim proteger suas diversas modalidades. “A definição é bem abrangente, o que abrirá espaço para diferentes formatos de competições”, explica Michel, que garante ter dado voz aos atletas em reuniões da I-TRA (o dirigente é casado com Catherine Poletti, diretora da Ultra-Trail du Mont-Blanc). 
 
Além da chancela da IAAF, a I-TRA tem recebido apoio de outra nova organização: a Associação Internacional de Ultracorredores (IAU). A união das entidades tem dado as cartas em provas importantes do circuito, como os eventos do circuito Ultra-Trail World Tour (UTWT) e o próprio Campeonato Mundial de Ultra Trail, que em sua edição 2015 foi realizado no mesmo dia da tradicional Comrades, prova anual de ultra que rola na África do Sul. Nomes de destaque na cena da corrida de montanha como Anton Krupicka, Sage Canaday, Kilian Jornet, Rob Krar, Iker Karrera, Anna Frost e Nuria Picas sequer apareceram na linha de largada do mundial, ou por discordarem da situação ou por estarem comprometidos com a Comrades. Se determinar um legítimo campeão do mundo na trilha já é difícil, devido à enorme variedade de percursos e climas pelo planeta, imagine quando os melhores atletas nem estão na disputa.
 
PARA DIRK STRUMANE, ATUAL PRESIDENTE DA IAU, o trail running é sinônimo de liberdade e de correr na natureza sem muitas regras e amarras: “Alguns dos melhores corredores de hoje encaram a introdução de diversas normas como uma restrição ao ‘espírito livre’ que caracteriza o esporte”, diz Dirk. Apesar das reações negativas de grande parte dos atletas, ele garante que a maioria está satisfeita com o trabalho da IAU. Para Dirk, fornecedores de artigos esportivos (especialmente as marcas de tênis que patrocinam os esportistas) estão por trás das declarações dos corredores. No caso do Mundial, por exemplo, os atletas representam as bandeiras de seus países e não conseguiriam dar tanto destaque às empresas que os patrocinam – o mesmo que acontece em eventos como a Olimpíada ou os Jogos Pan-Americanos. “A longo prazo, a oficialização do trail running vai agregar valor ao esporte, mas levará tempo para que a maioria dos corredores perceba isso como uma vantagem”, defende Dirk.
 
Na prática, as decisões políticas têm trazido prós e contras para os corredores. O nível das provas internacionais evolui a cada ano, uma constatação unânime. E as competições que agora fazem parte do circuito Ultra-Trail World Tour (UTWT), como as famosas Transgrancanaria e a Marathon des Sables, somaram força, profissionalismo e representatividade a seus eventos. Atletas de elite como a brasileira Fernanda Maciel, vice-campeã do UTWT 2014, comprovam o salto de qualidade, porém também percebem alguns atrasos. “Fico feliz em ver que o número de adeptos está maior e que o esporte como um todo está crescendo, mas é preciso ouvir os atletas de elite, pois nós dedicamos nossas vidas às corridas e somos referência para os amadores”, conta Fernanda, que corre provas de montanha desde 2006 e participa ativamente das discussões do grupo encabeçado por François D’Haene. 
 
Segundo diversos atletas top, a falta de incentivo financeiro – tanto em valores mais justos de inscrições como em premiações mais atraentes – pode gerar um êxodo de nomes fortes do esporte das competições para projetos paralelos. É esse o caminho, por exemplo, que algumas estrelas mundiais na corrida em trilha, como o catalão Kilian Jornet, já têm escolhido. Ele atualmente está se dedicando a bater recordes de velocidade em subidas de grandes montanhas, o que atrai por si só grandes patrocinadores sem a necessidade de ganhar campeonatos. 
 
Por outro lado, para Michel Poletti, da Associação Internacional de Trail Running, a “padronização” do trail running na IAAF permitirá que cada federação nacional cuide melhor do desenvolvimento da modalidade. “No entanto, será preciso acompanhar de perto esse trabalho, já que as federações muitas vezes estão longe da realidade das trilhas”, diz Michel. Em países com o Brasil, por exemplo, sequer há uma federação exclusiva para corredores de trilha. Até hoje, a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) segue a regra número 250 da IAAF, que trata apenas de “corridas cross-country”, com percursos oficiais que chegam somente aos 12 km. As competições que são referências na modalidade no país são geridas por iniciativas particulares e privadas. 
 
Para Lauri van Houten, diretora-executiva e vice-presidente da Federação Internacional de Skyrunning (ISF), qualquer institucionalização do trail running ou do skyrunning (modalidade de corridas de montanha acima dos 2.000 metros de altitude e com inclinações superiores a 30%) inevitavelmente dividirá opiniões. “No fim, provavelmente o dinheiro falará mais alto”, diz Lauri. A dirigente questiona a falta de experiência da IAAF para definir os próximos passos nas trilhas. “Não é simplesmente colocar bandeiras e fitas por aí: precisamos respeitar a natureza, sem deixar rastros. Será que a montanha precisa se tornar um estádio?”, questiona.
 
Grande parte dos envolvidos no mundo do trail tem mantido uma posição neutra, esperando para ver o que vai acontecer. Puxando outra fila, a de quem não quer encontrar surpresas lá na frente, François D’Haene segue defendendo o que chama de essência do esporte. “Milhares de pessoas, como eu, descobriram a montanha e agora estão apaixonadas. Se quisermos que nossos filhos tenham a mesma oportunidade de praticar esse esporte com prazer, precisaremos discutir melhor nosso futuro”, diz. Nesse caso, é melhor correr, seja para que lado for.   
 
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Texto publicado pela própria redação do Portal.

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