Serra Fina para poucos – parte 1

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Semanas antes desta aventura, Tácio e eu trocamos e-mails repetidamente sobre a intenção mútua de ir ao Itatiaia. Infelizmente, em virtude dos vários focos de incêndio causados pela seca que atingiu vários estados brasileiros, o parque ficou fechado. Assim partimos para a segunda e não menos bela opção, Serra Fina, local onde estive pela última vez em 2008.


Saímos de São Paulo sexta-feira dia 03SET2010 em quatro, eu, Edson, Tácio e Paula, de minha casa direto para a estrada. Bem, paramos no habibs antes para comprar um tira-gosto de estrada e daí sim seguimos para a Dutra. Sem demora nenhuma, o que não esperava, chegamos por volta de meia noite na Fazenda Serra Fina, a 1.540 metros de altitude, onde estive em 2008 pela primeira e última vez. Paulinha e Tácio dormiram dentro do carro e nós bivacamos no chão da fazenda mesmo, não fez frio então foi super tranquila e estrelada a noite, mais lúdica impossível.

O relógio despertou às seis da manhã então todos acordamos quase que ao mesmo tempo, café da manhã na barriga, mochilas sendo aprontadas sob os olhares curiosos de um grande grupo de Virgínia/ Minas Gerais que deixou a fazenda antes de nós por volta de 06:20h. Só ficamos prontos e iniciamos a caminhada às 07:00h em ponto. Fazia calor mesmo tão cedo e assim que chegamos ao rio tiramos todos os agasalhos e continuamos a caminhada. Pouco depois do rio ultrapassamos o grande grupo que havia se dividido em dois e descansavam separadamente ao longo de 500 metros de trilha.

Para mim, diferentemente dos outros três da pernada, o feriadão tinha sabor de “recomeçar”, já que eu quebrava uma seca particular de 65 dias sem absolutamente nenhuma atividade física, nenhuma montanha. Assim sendo, recomeçar pela Serra Fina, trilha do paiolinho para a Pedra da Mina, não seria nada fácil pra mim e eu tinha ciência disso. Foi muito cansativo e o calor só piorou a situação…Várias vezes fiquei para trás e só esperava as câimbras começarem, sabia que elas me fariam uma visita em algumas horas.

Não demorou muito e os três estavam à frente e eu por último, mas não me rendo, continuo pingando pela trilha meus preciosos miligramas de sais minerais e água, sentindo uma sensação inconfundível de clima desértico invadir cada célula de meu corpo, que desgraça. Me lembrava das fotos cômicas de Jorge Soto com suor na face e suas legendas “olha só a minha cara, estou adorando”. Ria por dentro, contava passos por fora.

Chegamos ao último ponto de água por volta dos 2.000 metros de altitude exatamente duas horas após começar. Um casal levantava acampamento, disseram levar três horas da fazenda até ali e cansaram, resolvendo acampar pela noite antes de prosseguir para a Mina. Recomeçaram a caminhada antes de nós mas 200 metros à frente no capim elefante os passamos. Este é um dos piores desníveis da trilha, saindo do último ponto de água, ultrapassando o capim elefante, se dá início um trepa pedra de cerca de 400 – 450 metros de desnível para uma montanha sem nome que possui 4 pequenos cumes, da última vez que estive ali só faltou eu apertar botão de elevador que não existia. As câimbras começaram, mesmo assim, tomei a dianteira do grupo por mais da metade da subida, sendo ultrapassado já no final quando parei pra fotografar um gafanhoto dentro de uma flor. Dia após dia me reconforto com as imagens que a natureza nos proporciona sem pedir nada em troca! Não podia perder esta visão de beleza pura, ainda aproveitei pra me refrescar com um pouco de água e dar uma pausa pras pernas que se retorciam com os espasmos.

Pouco depois, já quase no topo desta mesma montanha sem nome, Tácio percebendo o visível desgaste meu e da Paulinha resolveu tocar na dianteira com o Edson para garantir bom lugar de camping no cume da Mina. É claro, concordei e segui com a Paula pelos 3 pequenos cumes restantes desta montanha enquanto perdia a dupla de vista e me retorcia de dores pelos espasmos musculares. Já era esperado, não adiantava reclamar, continuava como dava tentando minimizar o desgaste. Como a Paula também cansara um pouco, estávamos no mesmo compasso e assim seguimos a maior parte do caminho.

Por fim ultrapassamos outro grupo que não o de Virgínia, grupo bem grande de cerca de uma dúzia. Pararam no segundo cume da montanha pois uma amiga torceu o pé e lá ficaram por horas. Continuamos o caminho, descemos o último dos 4 pequenos cumes e lá no fundo do vale chegamos a um bosque sensacional, lugar mágico e fresco como água de rio de montanha. Um momento de paz por nossos pensamentos que antecedem mais uma subida forte antes da crista final para o quarto ponto culminante do Brasil. Passo após passo, sem querer, puxando papo a Paula me ajudou a desligar a mente das câimbras que não cessavam, e sem perceber subimos o desnível de cerca de 200 metros em pouco tempo, facilmente e quase sem paradas. No topo desta montanha sem nome cujo cume é de cerca de 2.650 metros, observamos a dupla já na subida até o falso cume da Pedra da Mina, dezenas de metros acima de sua enorme base.

Dali para frente tínhamos uma leve descida e uma crista, caminhada mais leve. Muito bom, foi o que eu precisava para aliviar as pernas para ser premiado com uma pausa boa dos protestos de meu corpo. Ali meu rendimento aumentou e tomei a dianteira, ganhei um pouco de distância, me animei bastante. Diminuí a passada pra que eu e a Paula subíssemos juntos e assim o fizemos, tendenciando um pouco para a esquerda da Mina, saindo da trilha marcada, só pra ver no que dava. Em determinado momento a rampa se transformou em parede e tivemos que virar à direita pegando a trilha já no final, chegando no falso cume e já vendo os totens do cume, estávamos aliviados. Cheguei ao cume pouco antes da Paula, fui até a dupla que ali estava já fazia 25 ou 30 minutos, já tínhamos os melhores lugares de camping, ótimo. Foram seis horas cansativas mas compensadoras, tempo perfeito com céu azul e sol brilhando. Vento de cerca de 50km/h durante o resto do dia e toda a noite.

Horas depois, já com camping pronto e várias fotos tiradas, o grupo de Virgínia chegou e com eles o sossego foi embora. Todos muito jovens, baderneiros de primeira. Maconha nos lábios, “uma dose de conhaque por favor”, música com tema de dor de cotovelo com direito a cantoria pendente apenas de microfone e caixa amplificada noite afora, obrigado e por favor, não volte! Retire seu tiquet no caixa e o lixo, não se importe, deixe no chão mesmo. Tsc tsc tsc…Pensávamos que o desafio começaria na manhã seguinte mas, na verdade, começou naquela noite mesmo.

Recentemente descobri uma nova maravilha de comida boa e barata para montanha: Um “meio liofilizado” importado pelo supermercado DIA (que para quem não sabe, é uma rede européia, fiz compras no DIA em Paris!). Trata-se de um macarrão, massa verdadeira normal, só que o único ítem liofilizado por um processo mais barato é o molho. A embalagem contém 145 gramas e o processo de preparo é um pouco mais demorado que o liofilizado, mas o sabor compensa, é igual ao macarrão de casa! O preparo é ferver 450 ml de água e adicionar o conteúdo após a fervura, baixar o fogo e mexer por 10 minutos. Sim, gasta mais gás, leva mais tempo, mas para montanhas brasileiras que não envolvem rarefeito nem grandes expedições, é um achado. Preço: R$ 3,69 cada refeição em pacote de 145 gramas que quando pronta, rende um prato de 500 gramas! Nham nham…


Vídeo noturno desde o cume da Pedra da Mina, cidades e incêndio!

Depois da minha fatura e tenho certeza de que dos outros também, fomos vencidos pelo cansaço e pelo calor que desgastou a todos durante a caminhada do dia. Vencemos o desnível de 1.258 metros até o cume da Pedra da Mina, vencemos o desnível de nossos vizinhos (se me permitem o trocadilho), todos nos recolhemos aos sacos de dormir, cada qual no seu canto, e fomos dormir depois de uma sessão de fotos e vídeos noturnos. Graças ao exigente decorrer do dia e ao sol, o sono foi garantido mesmo com os barulhos indesejáveis.

Acordamos cedo com energia renovada e intenções ousadas, fazer uma investida que poucos fizeram (com registro relatado é claro): Sair da Pedra da Mina a 2.798 metros, descer até o fundo do Vale do Ruah a 2.530 metros, seguir a trilha da travessia com mais desnível de descida e subida, passar pelo topo do Morro Cupim do Boi a 2.532 metros, encontrar uma rota de descida na sua face oposta (leste) até a altitude de 2.450 metros e então, chegar ao cume do quase inexplorado Pico Cabeça de Touro, de 2.649 metros de altitude (medição minha e do Tácio, 2 aparelhos de GPS diferentes que chegaram à mesma medição, apesar de o IBGE determinar cume de 2.600 metros) e depois voltar tudo até o cume da Pedra da Mina. Não seria fácil e sabíamos disso.

Começamos a andar às sete da manhã depois de pegar somente o necessário e trancar as barracas com cadeados. Descemos a Mina até o Ruah onde marquei um ponto com a altitude no fundo do vale próximo ao camping, atravessamos calmamente o mar de capim elefante até o rio quase seco pela falta de chuvas, seguimos seu curso até a cachoeirinha onde coletamos água necessária para a caminhada do dia. Eu, como sempre bebo muito líquido em caminhada, enchi meu reservatório de três litros e ainda uma garrafa de meio litro. Seguimos para o primeiro pequeno cume logo após o final do vale. No seu limitado topo onde há um espaço para duas barracas, sentamos e fizemos a primeira pausa depois de cerca de uma hora e meia de caminhada. Estávamos todos bem, nada nos incomodava a não ser o sol, que parecia fritar ovos na rocha. A rocha sendo o local, os ovos certamente sendo nós…

Continuamos a sabatina, descendo e subindo os outros 2 pequenos cumes da crista, até que a descida final se apresentou e nela o desnível foi bem maior que os pequenos quinze ou vinte metros dos pequenos cucurutos anteriores, esta provavelmente oitenta metros pra mais. No fundo, seguimos pela crista final até o topo do Morro Cupim do Boi. Ali não fizemos foto, não é cume considerado, logo começamos a analisar uma possível descida oposta com a intenção de chegar ao vale que separa as três montanhas: Pico 3 Estados (2.665m), Morro Cupim do Boi (2.532m) e Morro Cabeça de Touro (2.649m). Acreditávamos piamente encontrar um caminho mais sossegado com totens ou uma rampa de descida direta, não. O que encontramos foi uma escalaminhada bem inclinada, que fomos obrigados a fazer para não pegar a trilha de descida até a base do 3 estados o que aumentaria a quilometragem andada e o vara-mato à ser vencido. Com cuidado fomos encontrando pedras para pisar e se segurar, descemos lentamente (a pressa é inimiga do montanhista), até que finalmente chegamos ao “fundo do buraco”.

Dali em diante, por algumas poucas centenas de metros, o martírio foi superlativado. Escoriações nos braços resmungam ao contato do precioso suor que vaza do corpo levando consigo os sais minerais das pobres unidades de carbono, o sol continua agindo e a soma do suor com os ovos resulta em quatro ovos poché sendo cozidos ao bem querer do astro rei, o capim elefante de mais de dois metros impossibilita ver um ao outro e indubitavelmente completa a receita como uma salsinha tamanho família. Onde está o pé de feijão? Na nossa frente, e ele tem um tamanho bem avantajado sobre o vale do conto de fadas.

Fizemos a travessia deste mato infernal em três tempos. Primeiro sair da florestinha na base do Cupim do Boi, segundo chegando a uma pedra enorme estacionada ali com um formato inusitado, terceiro finalmente chegando a base do Morro da Cabeça de Touro. Finalmente, após tanta luta com a natureza, poderíamos começar a subir…Isto sim fizemos rápido, sem nenhuma dificuldade a não ser o sol que continuava castigando. Chegamos ao cume pouco após completar cinco horas de caminhada.


Vídeo no cume do Cabeça de Touro.

Lá, dentro de uma lata de marmitex de alumínio encontramos um caderninho de cume estabelecido em 1992! Nele, somente seis assinaturas de grupos diferentes preenchiam seis folhinhas. A última do nosso conhecido colega Marcelo Brotto em 2008. Aproveito para deixar aqui um abraço pro Brotto!

Não havia alteração de pressão, o tempo estava firme, vento leve de 25km/h refrescando o corpo. Checamos a altitude: “Tácio, meu GPS está dando 2.649 metros, alto não?”/ “O meu também, 2.649 metros!”. (Parofes – Garmin Etrex Vista; Tácio Garmin 60cx). Registrei o cume e comecei as fotos e fiz um vídeo. Admiramos a paisagem, cada um fez suas fotos e não foram poucas, muitas e muitas fotos. Começamos a descida…

Continua na:  Parte 2

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Sobre o autor

Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.

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