Siririca, o último Santuário

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Descendo a Graciosa, à nossa esquerda destaca-se pelos artifícios plantados no cume, um enorme arredondado. É ali o Siririca, o último santuário do Himalaia paranaense e guardião da única flora tropical atlântica – felizmente, de difícil acesso. Plantado entre o Siririca está a rodovia e o Pico Paraná, a 8 quilômetros da BR-116 e a 10 do rio Nundiaquara. Plantado numa região alpestre, com as maiores altitudes do Estado, sua face norte exibe o maior paredão existente na Serra do Mar.

 

Esse horizonte geográfico caracteriza-se por notáveis significados orográficos, num crescente que vai a oeste para leste, perpendicularmente ao eixo principal da serra, que vive no norte e morre no sul. Pois bem. Esta montanha altaneira impressionante foi o remanescente do desafio marumbinista e que, junto com o Agudo da Cotia, foi alcançado em 1949, numa empreitada contínua de seis dias, pela trinca de notáveis, constituída pelos irmãos Curital (Osíres e Orisel) e o brasileiro-nissei, o lendário Nobor Imaguire. Este último iniciou a conquista depois de prolongados estudos e explorações na região, com uma tentativa, sem êxito, pelo litoral.

Depararam-se com as mesmas dificuldades de acesso que existiam outrora, para o Pico Paraná. Uma marcha de 20 quilômetros, partindo do Elídio (restaurante às margens da Graciosa). Imaginem o equipamento para uma operação calculada para 10 dias. O acampamento base foi instalado no sítio do João Vicente. Dali, o primeiro obstáculo, representado pela Serra da Samambaia, de fácil identificação, de quem observa do Pico Paraná. Parece uma tartaruga cuja cabeça é o Tucum e o corpo Camapuã e Camacuã. Cinco quilômetros separava-os do objetivo, exibindo uma sucessão de despenhadeiros entre os sovacos, dédalos e gargantas tortuosas. Grotões escancelados que exigiam um continuado subir e descer, dentro de uma selva impressionante.

Siririca com as placas em seu cume o Agudo da Cotia na esquerda.

Alcança-lo foi um revezar de contrastes belíssimos. A picada de penetração era constantemente acompanhada de pequenos riachos ou transpondo catadupas das maiores e cursos de água cristalina. Estranho território esquecido da civilização. Até então, uma barreira intransponível, ignota e inabordável. A cada elevação a repetência do cenário: nas partes altas, formadas de bromélias ensiformes espeniscentes, misturadas aos arbustos baixos e flexuosos. Já à meia encosta, a mesma flora acrescida dos taquaripocas tolhiços, com alto teor de sílica, inutilizando rapidamente o fio dos facões.

Nos vales e canhadas a mata densa, lúgubre, com seus cipós elásticos e distensos, dificultando a marcha. Era uma abordagem sincera, sobre um desconhecido que ninguém se atrevia a enfrentar. Mesmo os escoteiros mais mateiros não lograram êxito.

Foram quatro dias de luta tenaz e inflexível e a dureza dos elementos não impediu a marcha destemida dos três montanhistas, naquele ermo de um cenário delirante, virgem, de exuberante, flora tropical apoteótica.

Nos vales, árvores de altura notável, assomando, não raro, acima da vegetação caótica. Avançavam resolutos, afogados naquela solidão estarrecedora de densa mata, maravilhosamente rica.

Vespa, Arame e Lanterna, integravam-se perfeitamente à bruteza da paragem, numa simbiose nostálgica. Tudo principiou em 9 de julho de 1949 e terminou no dia 12 de julho do mesmo ano, às 16 horas e 15 minutos. Abraçaram-se entusiasmados ao assomarem a culminância desse gigante indômito de 1.782 metros. O reconforto da vitória lhes trouxe novas energias para infletirem agora para o sul, com uma selada de 3 quilômetros, até a cota de 1.440 a alcançar os 1.525 metros do Agudo da Cotia.

Osires, Orisel e Imaguire garantiram seus nomes na história do nosso montanhismo. Das anotações do escriba Imaguire, extraímos: “Não fôra uma vitória olímpica, mas uma vitória para nossa satisfação”.

Publicado originalmente na GAZETINHA – sábado, 27 de setembro de 1986

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Sobre o autor

VITAMINA – Henrique Paulo Schmidlin Como outros jovens da geração alemã de Curitiba dos anos de 1940, Henrique Paulo foi conhecer o Marumbi, escalou, e voltou uma, duas, muitas vezes. Tornou-se um dos mais completos escaladores das montanhas paranaenses. Alinhou-se entre os melhores escaladores de rocha de sua época e participou da abertura de vias que se tornaram clássicas, como a Passagem Oeste do Abrolhos e a Fenda Y, a primeira grande parede da face norte da Esfinge, cuja dificuldade técnica é respeitada ainda hoje, mesmo com emprego de modernos equipamentos. É dono de imenso currículo de primeiras chegadas em montanhas de nossas serras. De espírito inventivo, desenvolveu ferramentas, mochilas, sacos de dormir. Confeccionou suas próprias roupas para varar mata fechada, em lona grossa e forte, cheia de bolsos estratégicos para bússola, cadernetas, etc. Criou e incentivou várias modalidades esportivas serranas, destacando-se as provas Corrida Marumbi Morretes, Marumbi Orienteering, Corridas de Caiaques e Botes no Nhundiaquara, entre outras. Pratica vôo livre, paraglider. É uma fonte de referências. Aventureiro inveterado, viaja sempre com um caderninho na mão, onde anota e faz croquis detalhados. Documenta suas viagens e depois as encaderna meticulosamente. Dentro da tradição marumbinista foi batizado por Vitamina, por estar sempre roendo cenoura e outros energéticos naturais. É dono de grande resistência física e grande companheiro de aventuras serranas. Henrique Paulo Schmidlin nasceu em 7 de outubro de 1930, é advogado e por mais de uma década foi Curador do Patrimônio Natural do Paraná. Pela soma de sua biografia e personalidade, fundiu-se ao cargo, tornando-se ele próprio patrimônio do Estado, que lhe concedeu o título de Cidadão Benemérito do Paraná.

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