Sobre mulheres, inspiração e montanhas

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Esta é minha pequena contribuição para comemorar o Dia das Mulheres deste ano, e nossa presença crescente nas montanhas do Brasil e do mundo.

Depois que comecei a colocar relatos no meu blog e escrever pro Alta Montanha, passei a receber um bom número de mensagens e e-mails de outras mulheres, elogiando, parabenizando, e sempre usando a palavra “inspiração”. Achava um pouco desconfortável e estranho, afinal de contas estou longe de ser uma escaladora de ponta. Tentando entender que inspiração era essa, cheguei à conclusão que talvez sejam os pedaços do conjunto que me trouxeram esses comentários: o simples fato de ir, de escolher um local fora do comum, ou até de buscar, mesmo que às vezes sozinha, meus objetivos. Situações que em algum momento tem algo de comum entre eu elas. Investiguei um pouco sobre essa tal de inspiração e vi que não tem data melhor pra dar meus pitacos sobre o assunto do que este 8 de março próximo. Eis o porquê.
 
Lembro bem quando, no começo de 2013, um conhecido comentou comigo, com tom
sarcástico, que achava um pouco “ridículo” um encontro de escaladoras que ia 
acontecer no Rio de Janeiro. O porquê de ser ridículo ele não soube muito bem 
explicar, mas muito calmamente coloquei que achava bacana e na minha opinião era muito válido, já que para muitas iniciantes em qualquer esporte, é muito mais fácil se espelhar e conseguir apoio em outras mulheres do que em homens. Sendo esse o motivo do evento ou não, foi uma perspectiva na qual ele nunca tinha pensado. Muitas vezes, nem nós.
 
Vejam, sempre fui “one of the boys”: jogava basquete com os meninos, na natação treinava com os homens e por aí vai. Circular com a mulherada em qualquer esporte nunca fez parte dos meus planos, até porque detesto papo de esmalte e afins. Mas aí comecei no montanhismo (e particularmente na escalada em rocha) não rolou ser “one of the boys”, e nos meus primeiros meses em diversos momentos me sentia como chaveirinho e até rechaçada por não mandar grau alto. Pensei comigo, “já que não dá pra contar com nenhum desses aí pra me ajudar a evoluir, vou buscar alguém do meu nível cujo objetivo alinhe com o meu: escalar.” A partir daí foram inúmeras descobertas e finais de semana na rocha com minha nova parceira, e finalmente, começamos a escalar pra valer. Com esse exemplo, entro no ponto seguinte.
 
No começo e mesmo no decorrer de nosso envolvimento nas atividades outdoor é comum nos sentirmos intimidadas por tanta gente já mais avançada à nossa volta, ou então os bloqueios impostos por nós mesmas (medo de altura, pouca força, etc) e pelos outros (piadinhas, comentários maldosos e desmotivação proposital). Temos ainda casos de preconceito puro quando se duvida que alguém vá escalar uma certa montanha só por ser mulher. Em outras palavras, a chance de não ser “levada à sério” é grande. Mas não acho que isso deva desestimular nossa participação, muito pelo contrário. É pela experiência do exemplo do parágrafo anterior que acho fundamental a presença de outra mulher pra dar aquele empurrãozinho que faltava. É aquela coisa, “se ela consegue, talvez eu consiga também.”
 
Ouso dizer, por exemplo, que a camaradagem que existe na cordada feminina é tão forte quanto a da cordada masculina. Ao contrário da cordada mista com grandes diferenças de experiência, na feminina não existe a relação de superioridade técnica ou de gênero, mas uma parceria verdadeira onde se busca o aprendizado e superações mútuos, assim como vemos em parcerias masculinas. E por experiência própria, sei que poucas coisas são mais motivadoras que essa camaradagem.
 
E não estou criticando aqui os homens, pois eles tiveram papel fundamental na minha formação, seja me iniciando em leitura de mapas, uso de bússola e GPS, ou nas primeiras guiadas em rocha e no estímulo a ser mais autônoma em alta montanha. Mas infelizmente esses homens não são muitos (percebo como fui sortuda, obrigada amigos, vocês sabem quem são) e seríamos ingênuas de ignorar que a maior parte dos convites para qualquer atividade outdoor tem segundas intenções. Mas é fato que várias de nós queremos sim um mentor/mentora, aprender, treinar, corrigir erros e vícios. E quando temos uma parceria com alguém com foco apenas na escalada, tudo é mais produtivo. Mais ainda se for alguém que compartilha de nossos medos, receios e por que não, limitações físicas.
 
Não é da noite pro dia que mudaremos a cultura e a percepção da participação de mulheres em esportes tão fisicamente intensos e/ou com tantos riscos reais de acidentes fatais. No entanto, é dominando a técnica e assumindo esses riscos que mostraremos, principalmente pra nós mesmas, que temos a mesma capacidade de performance que nossos amigos homens. Quem sabe em alguns anos não tenhamos nossas próprias Sue Notts e Karen McNeills, nossas Tanja Grmovsek e Monika Kambic-Malis, nossas Gerlindes, Destivelles, Vidals, Hills, Davis, Paperts, Pasabans… e Roberta Nunes, um dos maiores (senão o maior, mas isso é assunto pra outro artigo) nome da história da escalada brasileira.
 
Lembro com orgulho da primeira travessia sozinha, da primeira guiada em parede com uma amiga com o mesmo nível de experiência, e da primeira vez que tomei a ponta da cordada numa geleira. Nada disso num nível difícil, mas todas ocasiões onde o domínio da situação recaía quase que totalmente sobre mim. Cada vez que vejo uma amiga ou conhecida começando a guiar ou partindo pra algo mais desafiador sinto um “orgulho” alheio. E sempre procuro lembrar que a montanha não distingue sexo: ela é difícil para todos. Além disso, a força mental e resiliência inerentes à escalada e principalmente montanhismo são traços comuns à ambos os sexos, ainda que manifestados de maneiras diferentes.
 
Portanto mulheres, meninas, garotas: primeiro de tudo, parem com a desculpa da falta de tempo. Segundo, se falta companhia é impressão! Tá cheio de mulher por aí genuinamente querendo escalar e procurando parceira (olha eu aqui!). Se estiverem escalando em falésia, saiam do top rope. Equipem suas próprias vias, comecem a guiar, mesmo que graus baixos. Saiam da falésia e experimentem outras modalidades! Na parede, assumam a guiada de uma enfiada em parede, mesmo que de grau baixo. Montem sozinhas a parada, aprendam a organizar a corda. Aprendam a usar equipamento móvel. Em alta montanha, assumam a ponteira e a responsabilidade de orientar a travessia de uma geleira. Guiem as enfiadas que estejam dentro de sua capacidade. Colaborem de igual pra igual no transporte de carga, na montagem e desmontagem dos acampamentos, nas constantes tomadas de decisão. Assumam a responsabilidade de navegação, seja na parede ou na trilha. Aproveitem a literatura extensa que existe sobre todas as modalidades: teoria é valiosa e não ocupa espaço mas ela não é nada sem a prática constante. Vão para as montanhas! Não se deixem limitar pelo que os outros acham que vocês devem fazer ou deixar de fazer. Não parem de aprender nunca. Confiem no equipamento. Confiem sobretudo, em vocês mesmas.
 
É chamando pra si essas responsabilidades que damos um passo à frente, evoluímos e nos aproximamos cada vez mais do cenário ideal de sermos autônomas e escaladoras totalmente independentes. E no final, o principal de tudo, COMPARTILHEM o que aprenderam. Os erros e acertos, os medos, as alegrias, os pontos a melhorar.
 
Tenho certeza que todas nós temos algo de inspiração, de superação, de aprendizado, e que pode ser passado pra frente e dividido com outras mulheres. Não importa se escalamos 10º grau em esportiva, se fazemos big wall, se chegamos ao cume do K2 ou se fizemos nossa primeira travessia ontem ou escalamos 5º grau em top rope. Cada pedacinho de experiência é um passo pra alcançarmos essa plenitude, e é compartilhando que vamos acelerar a construção de uma comunidade de atividades outdoor melhor para nós mesmas.
 
Neste Dia das Mulheres, vamos celebrar e compartilhar as conquistas de todas. Crescer juntas (e também com nossos parceiros e amigos homens) e criar ainda mais parcerias. Nosso desenvolvimento depende de ninguém menos do que nós, basta começar.
 
Àquelas que me escreveram nesse último ano, um enorme obrigado pela inspiração para este texto.
 
Feliz Dia das Mulheres!
 
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Sobre o autor

Nômade por acaso, Cissa Carvalho nasceu em São Paulo, já morou no Alabama e na Amazônia, e atualmente reside na capital Paulista até que os ventos novamente a levem pra algum destino inusitado do planeta. Trilha desde pequena e conheceu as montanhas com vinte e poucos anos, mochilou a América do Sul, andou pelas montanhas brasileiras e nos últimos anos tem se dedicado ao montanhismo de altitude, e mais recentemente à escalada em rocha. É bacharel em design gráfico e pós-graduada em design editorial.

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