Travessia frontal do conjunto Pico Paraná, “Filo Noroeste” paranaense

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Subida pela face noroeste, via crista localizada entre União e o Pico Paraná, saindo de Bairro Alto, Antonina, em grande companhia.

Já faz um tempo que eu e o amigo Danilo Vidal Blasi alimentamos o desejo de escalar a parede do Ibitirati e observando fotos da região, nos chamou muita atenção a parede do pico União, a direita do Ibitirati, de menor proporção, mas de incrível verticalidade e com grandes trechos de rocha livre de vegetação, assim adicionamos ao desejo de escalar a parede do Ibitirati, o sonho de abrir uma via naquela parede também. Foi então que, flertando com uma foto das paredes do conjunto, reparei na face noroeste e ali encravadas entre o União e o Pico Paraná, existiam duas enormes cristas que avançavam desde o vale lá em baixo até colo de ligação entre as duas montanhas.

Como já foi dito por uma pessoa muito especial no passado, “o sangue de montanhista ferve, os olhos dilataram” e a vontade foi de entrar na foto e sair escalando uma das cristas. Busquei relatos das ascensões já realizadas no conjunto, grandes feitos de diversas gerações de montanhistas e constatei que provavelmente ninguém havia subido por esta face.

Alguns meses depois no Marumbi, eu o Danilo e o amigo e xará Oliver Peppes, fizemos uma tentativa da “Los Encardidos” na Torre dos Sinos, escalamos dois terços da via e não a concluímos, mas provamo-nos uma ótima equipe. Conversa vai conversa vem, o Oliver passou a compartilhar conosco o desejo e o sonho de se aventurar pelas bandas do Pico Paraná. Tudo parecia fazer sentido e comecei a acumular fotos de diferentes pontos de visão, vídeos, relatos, croquis, fotos aéreas e cartas topográficas da região, cada vez mais me parecia viável uma rota passando por uma das duas cristas.

Oliver e Danilo que trabalham juntos, levantaram a questão como de costume, de qual via iríamos escalar no Marumbi no fim de semana, pois a previsão era boa, prontamente sugeri para tentarmos fazer cume do Pico Paraná pela rota “frontal” passando por uma das cristas e na lata os caras sorriram e aceitaram! Tínhamos um objetivo, o tempo livre e o clima a nosso favor, mas ainda restava a dúvida, qual das duas cristas subir?

A parte final da crista da direita possui uma grande rampa recoberta por vegetação herbácea, a crista da esquerda apresenta vários degraus e totens rochosos em sua parte final, ambas de acentuada inclinação e recortadas por três profundos e encaixados vales. Reunimos-nos durante a semana para planejar e como eu tinha a quinta-feira livre decidi ir até o Ibitirati de ataque pela trilha normal para estudar ao vivo e a cores a rota pretendida. Eu iria sozinho, mas felizmente o amigo Fernado Esteban Monteiro também estava livre e aproveitou para conhecer o Pico Paraná, o União e o Ibitirati de uma só vez.

Após eu e o Fernando observarmos o trajeto de todos os ângulos que podíamos, tive certeza que a crista da esquerda era mais viável que a da direita, pois as partes mais verticais pareciam poder ser contornadas, porém essa crista acaba na parede lateral da crista direita, um trecho vertical de rocha e vegetação que não poderia ser contornado. Começamos então a descer o colo em direção à crista da direita, que é conectada a ele por vegetação, andando sempre junto às paredes do Pico Paraná, passamos por baixo de uma pedra que parece um dedo indicador, descemos um valezinho para novamente seguir junto a parede, até que chegamos em um enorme bloco retangular que está apoiado na rocha, em baixo dele tem um amplo espaço com sombra e ar fresco, a “Pedra da Geladeira”, a partir daí descemos até beira da parede vertical e pudemos observar uns 30 metros abaixo a copa das arvoretas no ponto final da crista esquerda, era certo que teríamos de escalar mato e/ou rocha naquele trecho, foi engraçado me imaginar chegando por ali dali a três dias. Ficamos impressionados com a visão da parede do União e a paisagem circundante.

Sábado de manhã (27/08) o pai do Oliver gentilmente nos levou de carro até a fazenda no Bairro Alto de Antonina, nosso ponto de partida aos 195 metros de altitude aproximadamente. Caminhamos pela trilha da Conceição até a ponte de troncos no rio Cotia de onde se tem uma bela visão do Ibitirati, para o Danilo e o Oliver era tudo novidade, eu já havia passado por ali em uma investida no Ferraria, então fomos juntos conhecer o Disco Porto.

Desfrutamos da espetacular vista das paredes do Ibitirati para depois almoçarmos ao abrigo fresco da copa das árvores. A partir dali fomos seguindo pelo leito do rio Cotia, munidos de carta topográfica e foto aérea com os afluentes devidamente demarcados. Avançamos rapidamente com o caminho facilitado pelas pedras secas e a ausência de vegetação que o rio oferecia, foi então que surgiu o primeiro obstáculo de nossa jornada, o rio estava “emparedado” dos dois lados e uma queda de água nos impedia a passagem por dentro do leito, recuamos um pouco e contornamos pela sua margem esquerda, pela floresta. Retornamos ao rio e mais acima para nossa surpresa, descobrimos que o afluente que encontra o Rio Cotia em um ângulo de 90°, aos 890 metros de altitude, nossa rota, formava grande e bela cachoeira de aproximadamente cinqüenta metros de altura, que apelidamos de “Cachoeira do Pico Paranista”.

Teríamos de ir pela floresta novamente, decidimos abrir caminho pela sua margem direita, porém para acessá-la tivemos que contornar o Rio Cotia novamente agora pela sua margem direita, pois este também apresentava uma pequena queda de água que nos impedia passagem. Eu estava na frente quando quase piso em uma cobra, era uma Jararacuçu de tamanho considerável, tentei espantá-la, mais o bicho era tinhoso e se manteve firme me enfrentando, por causa de sua teimosia, tivemos que desviá-la e isso nos custou passar mais perto do precipício.

Subimos então acompanhando a cachoeira do afluente pela floresta a sua margem direita, trecho bem vertical, contornando blocos de rocha e escalando raízes, como o Oliver suspeitava a cachoeira era maior do que parecia, mas não demorou muito e a inclinação reduziu novamente para podermos caminhar pelo leito rochoso do rio.

Mais algumas dezenas de metros e chegamos na bifurcação em que teríamos de abandonar definitivamente a orientação dos rios para adentrar na floresta e galgar a crista propriamente dita. Eram 16 h e 30 min e decidimos pernoitar ali, pois era nosso último ponto de água e o Danilo achou um local bem confortável para montar as redes. Deleitamos-nos com o banquete saído das cargueiras para depois desfrutar de uma agradável noite com bilhões de estrelas, que brilhavam no breu da noite entre o balançar das copas das árvores.

Aos primeiros raios de sol despertamos para o desjejum, batata doce, ovo e bolachas (guardamos os deliciosos pães com linguiça blumenau que o Danilo trouxe para o almoço!). Carregamos tudo o que podíamos de água, pois dali pra frente não haveria mais e também não sabíamos se sairíamos da montanha ao fim do dia. Deixamos o rio para ir agora encosta acima, seguindo a crista com todo o cuidado de não perdê-la, nem a direita, nem a esquerda. Conforme avançávamos, o som da água ficou para trás para dar lugar ao do vento, no começo a floresta era alta e a vegetação do sub-bosque não oferecia muita resistência, fomos contornando blocos de pedra e escalando raízes.

Como em todo grande desnível, a vegetação se apresenta em um gradiente ao longo da encosta, as grandes árvores foram sumindo e dando lugar a arbustos e arvoretas, que crescem em meio a um emaranhado de ervas, trepadeiras e bambus, que dificultam imensamente a passagem, atenção especial para não abraçar o doloroso “sucará”, árvore que contém diversas coroas de espinhos do tamanho de um punho, o Oliver que o diga, espetou um centímetro e meio de espinho na mão. As horas foram passando e devido a densa vegetação, nos revezávamos na dianteira, o primeiro sempre sofrendo para abrir caminho, o segundo carregando a cargueira de quem ia na frente e o terceiro descansando, trabalho contínuo e em equipe!

Por duas vezes subimos em árvores para achar pontos de referência e ter certeza que estávamos no caminho correto, sempre enxergando as encostas inferiores do Ibitirati a esquerda e do Pico Paraná a direita, além dos profundos vales que delimitavam a nossa crista, porém nunca o restante dela mais acima, nem os totens rochosos ou mesmo o Pico União, logo não possuíamos uma noção correta de nosso rendimento.

O mais importante, para podermos dormir em nossas camas ainda naquela noite, era chegar no último trecho vertical antes do sol se pôr, pois logo após já ficava a pedra da geladeira, terreno conhecido três dias antes por mim e pelo Fernando, e dali para frente não haveria mais problemas com exposição ou orientação. Era por volta de 13 h quando subi na terceira árvore e consegui ter uma ampla visão do restante da crista que subíamos, ainda faltava um bom trecho, mas lá em cima estava ele, o primeiro totem rochoso, que simbolizava o início do fim de nossa jornada.

Com alegria renovada, seguimos acima e logo o Oliver encontrou uma pedra de onde se podia ver tudo melhor, espetacular era a visão das três grandes paredes que se erguiam a nossa frente, ficamos embasbacados, que privilégio! O que era perto ficou longe, culpa da vegetação que cada vez mais nos dificultava passagem, apenas por volta das 16 h chegamos na base do primeiro totem, depois de varar muito mato e por último subir uma rampa de inclinação extremamente acentuada se apoiando em arbustos e caratuvas.

Contornamos o primeiro totem rochoso pela sua esquerda em encosta quase vertical, literalmente escalando, se apoiando agora apenas em caratuvas, o segredo é pegar um bom chumaço delas em cada mão e ir distribuindo o peso do corpo e também nos pés, daí sobe o pé na mão e toca pra cima! O segundo totem foi facilmente contornado pela sua direita, também pela vegetação, no entanto com inclinação mais suave. Pelas fotos estudadas e pela observação feita anteriormente a partir do cume, todos os totens seriam transponíveis lateralmente pela vegetação, no entanto o terceiro se apresentou com grande verticalidade nos dois lados e abaixo de cada um deles o abismo sugador de almas!

O Oliver enxergou bem na parte frontal da rocha, uma linha com agarrões e caratuvas que parecia viável e sem perder tempo foi escalando, seguido pelo Danilo, pararam em um platô, pois o terço superior ficou mais difícil, foi quando lembrei da corda de 25 metros que trouxemos e sugeri rebocar as mochilas, era muito mais fácil escalar sem a cargueira nas costas, então sem grandes dificuldades o Oliver subiu o trecho restante seguido pelo Danilo e por mim, assim vencemos o terceiro totem e com a corda rebocamos as mochilas, foram aproximadamente 15 metros.

Cabe aqui ressaltar extrema beleza que é observar o horizonte e o anfiteatro de montanhas a partir do topo de cada totem. Andamos mais um pouco quando o Danilo, que estava mais a frente, anunciou o último trecho vertical do trajeto, de uns 30 metros aproximadamente, que previamente já sabíamos incontornável. O sol se punha no horizonte quando eu comecei escalar, escolhi um lugar e fui, mais acima a coisa se complicou e até as caratuvas sumiram, fiquei pendurado apenas em alguns capins e nesta delicada situação, nem pude dar ouvidos aos conselhos de meus companheiros que me diziam ser melhor mais à esquerda, toquei pra cima até achar um lugar que coube meus pés! Como sabia que a corda era menor que a parede parei ali mesmo e comecei a rebocar as mochilas, o Danilo passou rapidamente por mim com uma cara de pavor e sem perder tempo foi até o final onde já haviam arvoretas.

Terminei a subida enquanto o Danilo rebocava as cargueiras e o Oliver passava pela situação indecorosa de escalar mato vertical exposto com a mão inchada e dolorida pelo ferimento do espinho. Uns cinco metros acima da linha de arvoretas, achei o rastro deixado por mim e pelo Fernando dias antes. Finalmente chegamos na pedra da geladeira para, com o sol quase completamente escondido, iniciarmos a caminhada final que nos separava do cume do Pico Paraná e ás 18 h e 53 min do dia 28/08, já escuro, pisamos no ponto mais alto do sul do Brasil.

Como de costume, felizes da vida, gritamos, nos abraçamos e o Danilo registrou nossa ascensão no livro de cume. Para comemorar, comida farta com tudo de bom que restou nas mochilas! O Danilo ligou para sua esposa Suzana, que junto com Vanessa minha esposa viriam nos resgatar de carro mais tarde. Ainda tivemos que arrastar nossos corpos pelo longo caminho que separa o Pico Paraná da fazenda de acesso ao planalto, o corpo cansado e dolorido, porém o coração sereno e o sorriso no rosto, valeu piazada!

Foram aproximadamente 1680 metros de desnível da fazenda em Antonina até o cume do Pico Paraná em uma única investida e em dois dias de expedição, utilizamos corda em dois trechos diferentes apenas para rebocar as mochilas, não utilizamos altímetro, bússola ou GPS. É uma subida incrivelmente bela, de forte inclinação depois de deixar o rio Cotia, a primeira metade é dentro do rio e da floresta e a segunda encima de uma crista íngreme com visual aberto da paisagem circundante.

Depois de realizar esta travessia, descobri através do amigo Julio Fiori, que o Arlindo Renato Toso em companhia do Waldemar (Gavião) Buecken, René Pugsley, Gerdt (Titio) Hatschbach e outros sete montanhistas passaram por ali em 27 de agôsto de 1967, porém de cima para baixo.

“Foi um susto para os trabalhadores da construtora quando se depararam com um bando de guerrilheiros suspeitos aparecendo do nada no fundo daquele vale, logo na entrada do túnel (Janela da Cotia) de descarga dos detritos da escavação”.

Cabe aqui registrar o quão inspirador e admirável eram as façanhas desses bravos desbravadores. Graduando o terço superior, a parte mais complicada da rota, poderíamos lhe conferir como IIIsup E4 M3. Mesmo escalado em solo não chega a E5 (máxima exposição) porque provavelmente cairíamos sobre o platô, mas o M3 (graduação máxima de trepa mato no Marumbi) se aplica plenamente. 

 

 

 

 

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