Trekking e escalada na Mongólia

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A caminhada hoje é curta, apenas quatro horas do campo base do Khuiten, a mais alta montanha da Mongólia, até o início da estrada de terra que nos levará de volta a Ulgi, a pequena e horrível cidade que é a capital deste que é um dos lugares mais remotos do país.

Até ontem o tempo estava fantástico, céu azul sem ventos, mas hoje, vindo das montanhas um vento gelado trás nuvens negras que ameaçam desabar sobre nossas cabeças. Já conhecemos essas chuvas, nossos três primeiros dias de trekking foram debaixo de um dilúvio que deixou todo nosso equipamento, inclusive alguns dos slepping bags molhados. Mas, hoje não me importo, estou em um daqueles raros momentos da vida onde nada, absolutamente nada pode mudar o que estou sentindo. Uma profunda felicidade e gratidão pelo que a vida me ofereceu. Após uma hora de caminhada me separo do grupo.

O caminho é obvio, todos estão bem e a Lisete está com eles. Ao invés de descer em direção ao White River onde nossos carros estarão nos esperando subo em direção à montanha mais alta que encontro. Estou pesado com uma mochila de pelo menos 25 quilos, mas caminho com facilidade, e alegria dá energia às minhas pernas que deveriam estar cansadas do esforço de ter subido o Khuiten no dia anterior, parte do caminho abrindo a trilha em uma neve profunda e pegajosa. Mas, subo com facilidade. Poucas coisas funcionaram como deveriam neste trek. Em parte isso é esperado, afinal o turismo começou aqui há menos de 10 anos e o turismo de aventura é ainda mais novo.

Equipamentos são difíceis de encontrar, os operadores de turismo ainda não tem experiência suficiente para que uma viagem como esta aconteça sem percalços. Por outro lado, somos os únicos trekkkers nesta paisagem deslumbrante de montanhas, vales com rios caudalosos, geleiras, águias, falcões e marmotas. Estamos no canto entre a Mongólia, Sibéria e China e além de nós apenas nômades kazaks dividem este amplo espaço de uma escassa vegetação rasteira acima de metros de gelo do permafrost.

Os camelos báctrios que deveriam nos encontrar no primeiro dia chegaram atrasados 24 horas, os colchonetes estavam encharcados, o carro que traria nosso equipamento de escalada trouxe apenas a comida. Outro carro teve de vir de Ulgi, uma viagem que normalmente leva 9 horas, mas que com o carro quebrando no caminho levou mais de 24 horas quase inviabilizando nossa escalada. Mas, no final, creio, a experiência foi magnífica para todos os nossos 16 clientes, tanto os 11 que fizeram apenas o trek e a subida do Malchin, um cume acessório de 4000 metros, como para os cinco que chegaram ao cume do Khuiten fazendo a segunda ascensão brasileira desta montanha, a Sylvia Stickel, a Tera Albuquerque, a Adriana Balestra, o Irineu da silva e o Luis Carlos Modesto, além da L.isete e de mim.

Do alto me minha montanha vejo os pequenos pontos que são meus clientes lá embaixo do vale. No meu Ipod está tocando um cd do Viola Urbana, um álbum pelo qual tenho muito carinho. Afastado de todos, canto a plenos pulmões e quase choro de emoção e felicidade. No final deu tudo certo. Todos estão felizes. Aproveito essas horas sozinho para agradecer aos deuses das montanhas o tanto que recebo e, sei, ainda vou receber. Olho ao meu redor e por antecedência já sinto saudades desta região dura com temperaturas de até 50 graus negativos no inverno e que mesmo no verão pode descer bem abaixo de zero habitado por um dos povos mais gentis que conheço. Cadeias de montanhas se sucedem até o horizonte. Cruzo um pequeno riacho e uma lebre distraída me vê quando já estou a apenas um metro dela e sai em disparada.

Ainda existem lugares assim no nosso planeta tão densamente povoado e explorado. São lugares assim que me atraem mais do que qualquer outro. Subo ainda mais e perco o grupo de vista, se pudesse continuaria subindo subindo…..mas isso virá em breve. Depois desta viagem tenho um grupo para escalar o Elbrus, a mais alta da Europa, em seguida o Kilimanjaro, a mais alta da África e então o grande desafio do ano, a oitava montanha mais alta da Terra, Manaslu com 8167 metros. Já há algum tempo que meus pensamentos voam para esta experiência que acontecerá a partir do dia 25 de agosto, agora menos de um mês. Vou tentar sem oxigênio e sem ajuda de sherpas e, creio, isso a tornará tão difícil quanto o Everest.

Na minha cabeça tento me imaginar no dia de cume galgando os últimos passos rumo ao cume no fim de minhas forças tentando em respirações curtas e ofegantes tirar um pouco de oxigênio de uma atmosfera absolutamente rarefeita. Será que conseguirei? Não importa o resultado, quero tentar, quero ver onde mora meu limite, onde consigo chegar, onde é minha própria superação. Caminho rápido agora por entre um terreno pedregoso. Não posso cair, ninguém sabe exatamente onde estou. Não se deve estar nas montanhas sozinho, é perigoso, um descuido e pode-se torcer um tornozelo. Mas, a tentação de continuar sozinho é enorme. Um pouquinho mais apenas. Sei que as próximas semanas não serão minhas, serão de meus clientes que assim como eu estarão em busca de sua superação pessoal e contam com minha ajuda e experiência para realizar seus sonhos.

Meu tempo neste próximo mês, nessas duas expedições, será deles. O meu tempo virá depois. Aí serei apenas eu e o Milton Marques, meu amigo e companheiro de expedição em busca do mesmo desafio que eu. Vou descendo e vejo o grupo chegando no começo da estrada acompanhado de nossos 4 camelos lotados com todo o equipamento de duas semanas de expedição. Nossos auxiliares acompanham os camelos em seus pequenos e velozes cavalos mongóis que outrora atravessaram o mundo criando o maior império que já existiu. Eles montam com uma maestria e elegância invejável. Praticamente nascem na sela e nela, pode-se ver com facilidade, estão em seu elemento natural.

Continuo descendo e finalmente me reúno com meus clientes. Minhas horas só foram mágicas e me encheram de energia para o que virá. Estou feliz de uma forma que é impossível explicar. Me perguntam o que fui fazer lá em cima e digo que simplesmente fui andar…

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Sobre o autor

Manoel Morgado é médico de formação, mas trabalha como guia de montanha há 20 anos, atuando em vários países ao redor do mundo. Há 15 anos é montanhista, tendo como ápice de sua carreira a conquista do Everest e também a realização do projeto 7 cumes. Ele nasceu no Rio Grande do Sul, se criou em São Paulo e dede 1989 não tem casa.

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