Trekking na Cordilheira de Huayhuash – Final

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A madrugada está linda e fria (-2ºC) quando acordo para fazer xixi. Embora já minguante, a lua ilumina o campo ao redor do acampamento.


Por
Beatriz Azevedo

Leia a parte 6 do relato

Acordo tarde – 7:30 – já que hoje é dia de descanso no acampamento Inca Wain. Bandos de yanavicos – pássaros pretos de bico amarelo, muito elegantes&nbsp, – voam formando vês no límpido céu azul.

No desjejum, é servida uma panqueca trigostosa que recheio com mel. Às 9:00, partimos em direção à laguna Solteracocha, situada um mais além do lago Jahuacocha. A trilha bordeja sua margem esquerda onde vicejam tufos de capim dourado. Ao longo do caminho, nas encostas dos cerros, destacam-se bosques de queñuales com seus troncos retorcidos.

A temperatura muito agradável é um alívio pros dias frios que vínhamos até então enfrentando. Os estupendo nevados Rondoy, Jirishanca, Toro, Yerupaja e Rasac estão totalmente visíveis, sem quaisquer nuvens que toldem sua branca imponência. Após pouco mais de uma hora, chegamos à laguna Solteracocha. Pequena, redonda, suas águas verde-esmeralda refletem a brancura dos nevados situados acima dela. Uma grande avalanche, precedida dum silvado (provavelmente devido ao trincamento do gelo), resvala estrondosa pelo flanco do Jirishanca.

&nbsp,Enquanto ficamos, eu, Milton e Richardi (Arantza e Juan resolvem se mandar antes pro acampamento), aguardando novo desmoronamento de neve que, entretanto, não ocorre, aproveito pra observar&nbsp, melhor a face oeste do Yerupaja: amarelada, apresenta listras horizontais escuras, ao passo que os outros nevados as têm num tom uniformemente escuro.

Por volta do meio-dia, quando retornamos ao acampamento, nuvens fofas e brancas começam a preencher o azul do céu, sem, contudo, empanarem o sol reluzente de inverno. Os três voltamos, sem pressa, parando várias vezes pra fotografar a paisagem magnífica que nos rodeia.

Um killiksha (espécie de falcão) prende nossa atenção e Milton se põe a fotografá-lo enlouquecido. Explica que adora clicar aves. Ao chegar ao acampamento, dirijo-me ao refeitório e peço um copo pra colocar as flores que havia colhido durante o passeio. Fico sabendo, então, que fui escolhida a madrinha da pachamanca. Pachamanca é um assado de ovelha temperado com ervas e acompanhado por vários tipos de batatas, como camotes e ocas, cujo cozimento é processado sob a terra.

Minha tarefa como madrinha é retirar a areia que cobre a comida com uma pá. Emocionada, derramo algumas lágrimas que limpo, rapidamente. Sei lá por quê, envergonho-me de chorar na frente dos outros. São tantas as emoções: este bom povo peruano, gentil e prestativo, faz meu coração palpitar de alegria. Compro algumas cervejas que ofereço ao pessoal do staff. Agradecem felizes da vida. Brinco com eles pra que não se emborrachem em demasia. Riem com gosto. Agora, depois de ter comido à farta, vou sestear um pouco já que o forte vento impede a permanência ao ar livre. Durmo aquele sono pesado de quem comeu muito e acordo louca de sede. Bebo um pouco de chá de camomila e saio da barraca.

O vento amainou, coisa boa! Encontro Vivi e, curiosa, pergunto a ela o motivo de eu, entre tantos, ter sido eleita a madrinha da pachamanca. Ela, sorridente, responde: “porque usted eres chistosa e alegre”. Mais uma vez agradeço, toda envaidecida. Tão bom ser querida!

Aproveito pra explorar um pouco as cercanias do acampamento, e subo num morrete de onde posso observar melhor a paisagem. Algumas gaivotas dão rasantes nas águas do lago Jahuacocha. Saco a digital do bolso da pantalona, mas logo desisto de fotografá-las porque o zoom é uma merda, deixa as fotos demasiadamente granuladas. Assim, fico só observando o vôo das aves.

De volta à barraca, sou abordada por um dos bascos do grupo dos 8 e ficamos conversando. Ele conta que esteve no Brasil na década de 80 com a mulher e adorou o país, o que me deixa super orgulhosa. Simpático e educado, a prosa rola com facilidade, eu mais escutando que falando. Apesar de ser uma gasguita incorrigível, sei, quando quero, ser boa ouvinte. Além do mais, como não escutar com atenção o que falam sobre o meu país, não é mesmo?

&nbsp,O acampamento está cheio de turistas que chegaram durante a tarde e barracas estão sendo montadas, algumas, inclusive do outro lado do rio. Chama minha atenção um círculo de pessoas à volta duma ovelha, morta, recentemente, pra outra pachamanca. Aproximo-me e fico ali curtindo o destripamento do bicho. Fascinada – nunca presenciara o carneamento dum animal antes –, vejo o estômago – uma grande bolsa que se encontra locupletada de comida – esvaziado, habilmente, para, posteriormente, ser aproveitado na feitura de lingüiças. Das tripas são retiradas, com destreza cirúrgica, três enormes tênias. Uma médica francesa explica que a primeira providência, pra matar estes vermes, é entornar uma cerveja (não explicou se a garrafa seria de 600 ou de 375 ml), e ato contínuo, ingerir o vermífugo. Garante que é tiro e queda! Essa é boa, às tênias é dado o consolo dum tragoléu antes de exalar o último suspiro, hahaha!!

Ao meu lado um baiano curte o espetáculo tão encantado quanto eu. Entabolamos um papo sobre o trekking, trocando impressões sobre os lugares que já havíamos percorrido. Ele e seu grupo atravessaram o paso San Antonio um dia depois que desistimos de cruzá-lo. Infelizmente, pouco viram dos nevados devido ao mau tempo que persistiu em reinar sobre aquela região.

Quando o frio começa a pegar, cada um de nós procura refúgio em suas barracas. Ao ver a luz do lampião acesa na barraca-refeitório, pra lá me dirijo, encontrando Milton debruçado sobre um mapa.

Conversamos sobre a proposta de Arantza e Juan em rachar as gorjetas com o grupo dos 8. Participo-lhe que darei a minha individualmente, recebendo sua pronta adesão, atitude que desagrada o casal quando informado de nossa decisão. Argumentam que a média de gorjetas, via de regra, é 25 euros por pessoa (não tenho bem certeza, mas parece ser essa quantia) e nós, ao darmos mais (Milton pretende dar 50 dólares e eu 100), estaríamos rompendo um padrão estabelecido pela maioria dos turistas. Essa é boa!! Que padrão, hein, cara pálida? O nosso é outro, ora bolas! Mais uma vez, os brazucas deram um show de união, e, batendo o pé, metaforicamente – é claro – dissemos um não uníssono à proposta reducionista dos bascos. Seria risível a atitude do casal se não houvesse um não sei quê de prepotência. E devem estar nos tachando de pequenos burgueses, corruptores da classe trabalhadora, hehehe, porque descobri ontem à noite, em meio a uma discussão acirradíssima travada após o jantar, que são comunistas. Ééééé….são muitas as emoções neste trekking!! E viva a diversidade de opiniões!!

Paso Pampa Llámac

Como todas manhãs, acordo com uma temperatura abaixo de zero, hoje, todavia, um pouco mais alta que as anteriores: – 1ºC. Atmosfera clara, serena, num céu desembaraçado de nuvens. Final de trekking, infelizmente! E nos aguarda, ainda, um último paso a atravessar: Pampa Llámac (4.300 m).

Deixamos o acampamento Inca Wain às 8 horas, percorrendo uma boa extensão de pampa, banhada pelo curso estreito do rio Jahuacocha. Quanto ingressa na quebrada Pacclón, o rio cava um fosso e suas até então pacíficas águas transformam-se em turbulentas corredeiras, passando a ser chamado de Atchin.

&nbsp,Os matutinos raios de sol oferecem um mágico efeito luminoso quando incidem na neve que caiu durante a noite: os minúsculos flocos, ainda não de todo dissolvidos, adornam com seu brilho de diamante os talos de capim que recobrem o solo por onde trilho. Um show impossível de ser compartilhado já que os recursos de minha máquina digital são insuficientes pra capturar tal beleza, precisaria duma mais potente…..uma pena!

A quebrada de Pacclón, um largo vale plano, é cercada em ambos os lados por altas montanhas que lançam extensas zonas de sombra na paisagem por onde passamos. Olho pra trás e vejo cada vez mais distantes os nevados Rondoy, Jirishanca, Toro e Yerupaja. Uma fina nuvem paira sobre este último cerro, tal qual um longo véu de noiva, coroando seu cume. À medida que ganhamos altura, abandonamos a região de sombras da quebrada e ingressamos no território ensolarado da encosta superior do cerro que estamos ascendendo.

Nada de muito exigente são as primeiras duas horas de caminhada, margeadas pelos indefectíveis currais de taipas, destacando-se aqui e ali arbustos floridos de amarelo. Cruzamos bosques de queñuales com seus belos troncos retorcidos e pego, caída no chão, a casca de um deles. Dessa feita, o meu recuerdo do trekking será um objeto do reino vegetal. Mas tanta moleza tinha de acabar!

Embora a subida até o paso apresente só 300 m de desnível, é dura e bem íngreme! Além do mais, estou sentindo os efeitos da fadiga dos 9 dias de intensa caminhada. Assim, não me faço de rogada e aceito o amável convite de Julio pra montar seu cavalo. Dá um medinho porque o cavalo vai rente às bordas dos precipícios.

Quando chego ao alto do cerro que suponho ser o paso (na verdade, o paso localiza-se mais adiante) desmonto, contente de pôr o pé em terra firme. Prefiro caminhar a ficar encarapitada no alto do cavalo. Sei lá se o bicho, de repente, não resvala nas pedras e lá vou eu despencando morro abaixo!

Finalmente, chegamos no paso, de onde já é visível um pedaço da cordilheira Blanca, situada ao norte. Alguns dos membros do grupo dos 8 sacam seus celulares (aqui já há sinal) e conversam, entusiasmados, com seus familiares, provavelmente, dando detalhes do trekking que finda.

Depois do paso, numa descida interminável de 2 horas, (pra mim pareceram 4 horas), caminhando sob um sol, brilhando inclemente num céu de brigadeiro, o calor se faz sentir. Paro e retiro os agasalhos, ficando só de manga curta. A descida é bem chatinha, cheia de pedras e areia fofa. Como sempre, fico pra trás, caminhando, cautelosamente, porque tenho medo de levar algum tombo. Além do mais, aproveito e curto, assim, sem pressa, meus últimos minutos de caminhada.

&nbsp,Um, digamos assim, bosque de cáctus, alguns floridos de vermelho, crescem altaneiros ao lado da estradinha. Impressionante! Nunca vira tanta quantidade e tão altos assim! Já avisto os telhados metálicos de Llámac, brilhando lá embaixo. Pequena e pitoresca, a pequena vila, situada a 3.300 m de altitude, tem na sua entrada pequenos sítios protegidos por muros de pedra. E novamente rola outra discórdia. Tudo porque Richardi, a uma certa altura da descida (talvez porque eu estivesse num passo lento demais), se mandara com o grupo, me deixando pra trás. Isso me põe nervosa e irritada, pois nem sei direito onde é o lugar onde o ônibus nos espera. Peço então à Vivi, que caminha mais à frente, que me espere.

&nbsp,A irritação, porém, leva a melhor, e, quando chego ao ponto de encontro, vou direto e reto pra cima de Richardi, reclamando, energicamente, por ele ter me “abandonado”. Minha relação com o casal, que já andava estremecida por conta de desavenças anteriores, deteriora-se em definitivo, quando Juan, o protetor dos fracos e oprimidos, mais uma vez, toma as dores pelo guri, intrometendo-se de pato a ganso na conversa. Rispidamente, fuzilo-o com os olhos e ordeno-lhe que não se intrometa. Richardi, sentindo que a briga é de cachorro grande, escapole rapidamente. Fico, depois, sabendo o motivo da pressa do guia: ele queria chegar antes das 13 horas, horário combinado de nossa partida pra Huaraz, a fim de tomar banho na vila. Gurizinho caprichoso este!

Claro está que um pouco depois, mais calma, sem Juan interferindo, procurei Richardi pra aclarar o mal entendido. Finalizamos a conversa, apertando as mãos, sem rancor algum. A estrada de Llámac a Huaraz, de chão batido, me parece mais perigosa que aquelas percorridas no Paquistão, impressão confirmada por Bea, minha xará basca, que também esteve lá.

Em ziguezagues contínuos, a estreita e sinuosa via, recortada nas encostas das montanhas, descortina profundos precipícios em cujos fossos escorrem as águas agitadas dos rios. Ao longo duma boa parte do trajeto, avistam-se, ainda, os nevados Ninashanca, Rondoy, Jirishanca, Yerupaja e Siula, substituídos, à medida que nos aproximamos de Huaraz, pelos nevados da cordilheira Blanca.

Analiso, enquanto viajo, os motivos por que nós três, Juan, Arantza e eu, estamos tão emburrados a ponto de trocarmos palavra alguma durante as 4 horas em que permanecemos enclausurados no ônibus. Pra mim, a semente do azedume foi plantada a partir do episódio ocorrido no paso Yaucha, cujo pivô foi o inocente Richardi. Por supuesto, o episódio das gorjetas foi outro golpezito. E o antepenúltimo golpe, a discussão – vamos colocar assim – causada por motivos econômicos, dois dias atrás, no acampamento Inca Wain, abalou mais ainda a já frágil reserva de boa vontade dos bascos comigo.

Sentados na barraca-refeitório, bebericando nossos chazinhos pós-ceia, sei lá por que cargas d’água, Arantza e Juan começaram a se queixar da perda de poder aquisitivo nos Países Bascos, a partir da substituição da peseta pelo euro e a consequente desvalorização da antiga moeda espanhola. Seus argumentos mais lembram as lamúrias de pequenos burgueses, e, partindo de comunistas, isso me causa perplexidade…que dura pouco, entretanto. Como adoro uma discussão (meu filho diz que sou uma encrenqueira nata), provoco-os, afirmando que, apesar da unificação européia, seu padrão de vida é bem melhor que o existente no Brasil.

Astuciosos, porque já haviam especulado dias antes o preço dum imóvel na cidade onde moro, jogaram em minha cara que, com 120 mil euros, só poderiam adquirir um apartamento de 60 m², ao passo que, no Brasil, a mesma quantia compraria um de 150 m². Consideram esse argumento o cheque-mate da discussão, hehehehe. Um pouco enjoada do bate-boca (enfezadíssimos os dois, o seu tom de voz até subiu duas oitavas), ainda mais depois que Arantza resolveu me chamar de hombre, obrigando-me a pedir-lhe, energicamente “no me llames así, Arantza, soy mujer” (e não é que a basca, sei lá se por implicância, ou se por cacoete de linguagem, continuou a me tratar desse jeito?), lancei na cara deles, numa manobra diversionista, que os brasileiros conheciam muito mais sobre a Europa do que eles sobre o Brasil.

Consegui desconsertá-los momentaneamente. A Juan, mais que à indomável Arantza. Embora tenha fornecido um bom mote pra que exercessem a famosa autocrítica, tão típica de todo comunista que se preze, eles mantiveram aquele papinho ressentindo sobre os efeitos deletérios da unificação européia. Engraçada essa gente, passei o trekking todo escutando eles tecerem loas sobre seu país. Como sou curiosa, incentivava-os, indagando, inclusive, sobre particularidades de sua terra.

Já eles, em raríssimos momentos, manifestaram interesse em obter informações sobre o Brasil. E eu e Milton, na maior polidez, nos esforçando em falar espanhol – vá lá, portunhol! -, bem como procurando entendê-los, mesmo quando falavam naquele jeito rápido deles de metralhar as palavras. E pensam que se comoviam, quando pedíamos “por favor, hablen más despacio?” Só não!! Continuavam a cuspir as palavras num frenesi verborrágico. E, nós, quando nos arriscávamos a falar português, erámos fulminados com “no entiendo….no entiendo”. Mas tudo acabou em pizza! Se figurativamente? Não! Explico: Arantza quando já estávamos em Huaraz, bate à porta de meu quarto, convidando-me a cear com eles mais Milton no El Horno, uma das tantas pizzarias da cidade, localizada no Parque del Periodista.

Comunistas porém politicamente corretos….estranha combinação! Satisfeita com tal happy end, saio do restaurante, voando as tranças, rumo ao hotel buscar minha bagagem. O ônibus pra Lima parte às 23 horas e já são 22. Durmo que nem uma pedra durante a viagem toda, e desperto solamente na capital peruana. Despeço-me de Arantza e Juan, que também viajaram juntos comigo, e me mando pro aeroporto. É…..já estou com saudades!

Hasta la vista arrebatador Peru!!!

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trekking do Huayhuash no Rumos!

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