20 de Abril no 1º de Maio

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Levei nas costas a lente de 500mm do Paulo Marinho, pesa meia tonelada e não serviu para nada. Montou o tripé no alto do Capivari Maior e metralhou a paisagem com sua Cânon, mas o peso morto continuou imóvel na minha mochila a espera de uma chance para trabalhar. Florzinha e gafanhoto foram exaustivamente acariciados pela macro, morros e montanhas receberam atenção da zoom até se cansarem. E nada da potente teleobjetiva ser chamada.

O céu já se cobria de nuvens quando apareceram pequenos pontos em movimento numa crista distante e o Moisés saca sua câmera puxando a imagem num zoom irado. Identifica-se um cabeludo com meio corpo fora da macega que dada à impossibilidade de ali se situar um portal do tempo e dele aflorar roqueiros da década de 70, só poderia se tratar do Vinicius. Oportunidade perfeita para tirar a teleobjetiva do ostracismo e recomeçar todo o ritual. Monta tripé, desembala a câmera, troca a lente e fixa toda esta bugiganga, mas quando vai ajustar o foco; cadê o pessoal?

Já estavam debaixo do nariz do fotógrafo e agora só com grande angular para documentar o inesperado encontro. Da esquerda para a direita se vê o Moisés Lima, Emerson Stange (Simepar), Diego Campos, Alex Pacheco, Julio Fiori, Alexsander Machado seguido pelo Vinicius Ribeiro e encerrando com o Paulo Marinho atrás da câmera. Vindos do Capivari Mirim, cruzaram pelo médio e pernoitaram no fundo da grota depois de arregaçar a encosta para aqui chegar e compartilhar de nossa companhia no retorno para a civilização. E mais uma vez a 500mm, agora pesando uma tonelada, desceu a montanha sem ser molestada.

A travessia dos Capivaris nos pareceu uma boa idéia agora que os amigos a limparam dos bambus e unhas-de-gato, então marcamos de percorrê-la no próximo final de semana antes que outros o façam e não sobre nenhum carrapato para levarmos para casa grudado no saco. Mas quis o destino que fosse tudo diferente do planejado e na sexta feira ao meio dia recebo uma ligação do Natan:
 – Tem programa para sábado, piá?
 – Planejamos a travessia dos Capivaris – fui desconversando – mas qual a idéia?
 – Estamos indo para o “X” – revelou – de bate-volta.
 – Opa, tô dentro! – esta agarrei no pulo – não conheço nada na região.

Comecei cedo a reunir o pessoal pra pernada; primeiro a Rossana, depois o Moisés e finalmente o Paulo Marinho. Já atrasados encontramos o Natan, o Vinicius e o Lucas esperando na praça de pedágio da BR277 e seguimos para baixo com o Pilão de Pedra na alça de mira. Deixamos os automóveis na ponte do Rio dos Padres e depois de uma breve conversa com o vigia nos embrenhamos pelo mato. Algo confuso no princípio, procura a direita e a esquerda, e encontrado um piquetinho branco com uma bolinha vermelha pintada na cabeça, então “vamo que vamo” morro acima.

Adiante adentramos num velho leito de estrada e lembro que por aqui, num longínquo 1980, passaram as imensas carretas transportando equipamentos para a usina de Itaipu. Na época construíram este desvio porque os viadutos da serra não suportariam o peso de 300 toneladas de cada carga. Superamos um barranco a esquerda, saindo da estrada, e começamos a subir pesado por uma antiga e bem marcada trilha. O tempo passa e o pessoal coloca o papo em dia até encontrar uma primeira descidinha onde aparece um fio d’água e poucos metros à frente reunimos toda a turma para um bem vindo descanso sobre as pedras do riacho.

Muita piada, gozação e minha primeira bola fora. Esta história de externar tudo que vem a mente ainda me trará muita dor de cabeça. Certo é o Paulo Marinho que pensa bastante para não falar o que pensa. Os vários riachos se sucedem num imenso bosque plano com árvores altas e muitas poças de lama. Pelas aberturas na copada das árvores já é possível ver a silhueta do Touca-do-Duende bem acima de nós quando iniciamos o percurso pelo leito de um último riacho até uma pequena cachoeira que desviamos pela esquerda. Nova subida longa e pesada nos aguardava antes de sair da mata sombria para a luminosidade ofuscante dos campos de altitude.

Pouco faltava para o meio dia quando atingimos o primeiro cocuruto e uma bifurcação a esquerda onde há uma pequena estação meteorológica com um pluviômetro no meio do campo. Seguindo em frente pela macega na altura dos joelhos já se alcança uma greta e do outro lado os campos de cume do 1º de Maio. A vista é privilegiada com cadeias de montanhas azuis em todas as direções. Ao sul o majestoso Pico da Igreja, a leste o desejado Pico X e um “probremão” nos divide. O Pico X está longe pra cacete, os rastros desaparecem completamente e um profundo vale nos separa, mas ninguém falou que ia ser fácil.

Conversa vai, opiniões são discutidas e finalmente concordamos num plano. É por ali que vamos; descemos aquela encosta, contornamos a pedra pela direita e seguimos baixando levemente até aquele ponto no vale para tomar uma diagonal ascendente até a base das pedreiras e então “que Deus nos ajude”. Com o plano definido podemos nos dar ao luxo de relaxar ao sol, encher a barriga e ouvir muita bobagem. Melhor do que ser surdo já dizia o filósofo e afloraram até alguns segredos de alcova entre o desalojar de um carrapato e aquela coçadinha na picada de borrachudo.
 
O tempo passa depressa quando se está vagabundeando ao sol, mas a labuta nos espera e deixando as tralhas empilhadas no cume partimos empunhando espadas para a batalha. Retornamos a valeta para reaparecer no lado oposto já se arrebentando na quiçaça onde surge um ninho de caranguejeira com “trocentos” filhotes na porta. Pelo tamanho do buraco concluímos ser melhor não irritar o inquilino e seguimos pela estreita aresta amassando o capim para localizar as imensas gretas escondidas antes que uma delas engula uma perna desavisada ou até o peão inteiro.

Findo o capinzal começa a mata, os bambus e as unhas-de-gato sem jamais esquecer os caraguatás gigantes que por ali vicejam alegremente na esperança de furar um olho ou pelo menos a mão de um incauto. Vez ou outra subia um macaco numa árvore mirrada para orientar a marcha e consertar o rumo. Horas suadas se passaram antes de atingirmos um trecho sem vegetação rasteira e relativamente plano, povoado de árvores retorcidas e meio podres. Encontramos um bosque fantasmagórico e o Natan adiantou-se ao grupo para ver o fundo do vale e as encostas do X já bem próximas. Com a hora estabelecida para o retorno já ultrapassada e nenhum chato para encher o saco, voltamos em 20 minutos pelo percurso que nos custou 2 longas horas para alcançar.

Aquela bodeada no cume do 1º de maio depois de acabar com o que restou da comida, ocasião que levei um sermão politicamente correto da integrante feminina.
– Vai deixar a bituca no chão? – perguntou numa critica explícita.
– Não tem filtro nem papel – tentei me defender – é fumo puro.
– Levo até semente de maçã de volta para casa.
Então lembrei do profeta Mikael Arnemann e seu argumento preferido: “solvente x soluto”.
– O que é lixo lá embaixo aqui é adubo orgânico – contra argumentei.
– Não concordo em deixar qualquer coisa na montanha. Veja os ratos no PP como se proliferam com os restos de comida abandonada por lá.

Este Brasil é de uma pobreza que dá dó. Em terras do Tio Sam o aviso é “Não Alimente os Ursos” enquanto aqui será “Não Alimente os Ratos”, longe de mim pensar nos de Brasília, mas tem duas coisas a considerar nesta história toda: primeiro que rato não fuma bituca e a segunda…bom a segunda é que este discurso cabeça oca do politicamente correto já encheu o saco. Sei não, mas desconfio que esta menina se envolveu com gente muito chata no passado!

A história do Pico X nasceu de um engodo imaginado pela eterna criança chamado Vitamina (Henrique Paulo Schmidlin) e seu companheiro de estripulias, o Cipó (Fernando Andrzejewski ) com a finalidade de ludibriar o Gavião (Waldemar Buecken). Como alguns montanhistas que conhecemos hoje, o Gavião era dos mais competentes, mas muito competitivo e um notório estraga prazer. Bastava alguém confessar um desejo ou adiantar um plano de conquista que o sujeito mais do que depressa se agilizava para chegar na frente e reivindicar as glórias.

A rota padrão para escalar a Torre da Prata havia sido estabelecida em 1944 pelo próprio Gavião acompanhado do Canguru (Antonio Pedro Stenghel Cavalcante – pai do fotógrafo Zig Koch) que desembarcando do trem na Estação de Alexandra consumia 2 dias de árdua caminhada para percorrer a extensa crista subindo a face leste da montanha.

Na metade dos anos 60 do século passado, a dupla Vita e Cipó planejavam desbravar uma rota pela face oeste saindo de Alexandra por precária estrada até Sambaqui e continuando por uma caminho de mulas que seguia em direção ao Rio Cubatão nas proximidades de Garuva (hoje Estrada da Limeira) encurtando em um dia o percurso, mas conscientes da concorrência descabida deixaram vazar, para as pessoas certas, que estavam estudando a conquista de uma montanha inédita na Serra da Igreja.

Em missão exploratória avançaram de jeep pelas obras da futura rodovia 277 até cinco quilômetros antes do atual Viaduto dos Padres onde tomaram um caminho de serviço que passava a direita e muito mais alto que a estrada definitiva. Atraídos pelo visual de um bonito morro que se destacava na paisagem, resolvem subir e com surpresa descobrem um velho mourão (palanque de cerca) plantado no topo. Deste cume também vislumbram uma belíssima montanha a frente que usariam mais tarde nos planos diversionistas para despistar a turma do Gavião. Para aumentar o mistério e despertar ainda mais a curiosidade denominaram a montanha de Pico X por inspiração de uma história em quadrinhos muito popular na época, a do agente secreto X9.

E o engodo deu certo quando tempos depois o Gavião apareceu se gabando de finalmente ter conquistado o misterioso Pico X ao mesmo tempo em que a dupla de gozadores, em companhia do Bigode (Ronaldo Cruz) e do Arlindo Renato Toso anunciavam a abertura da rota oeste na Torre da Prata, a mesma trilha que até hoje usamos. Assim, desta brincadeira, nasceram duas importantes conquistas do montanhismo paranaense.

O sol já amarelava quando ainda morrendo de preguiça ensacamos as traias e depois de desalojar os muitos carrapatos que passeavam pelas pernas peludas iniciamos a descida para o asfalto. O Natan tinha compromissos inadiáveis a cumprir com Dona Patroa que ficaria uma arara diante de qualquer atraso e também porque não queríamos ligar as lanternas naquele matagal. Na subida o papo não foi dos mais cultos, ouvi até alguém discorrendo das razões pelas quais a merda acaba aderindo tão fortemente nas beiradas do vaso sanitário. Fiquei feliz em saber que isto acontece com outras pessoas também, porque minha esposa afirma com toda a convicção que sou o único no planeta a realizar esta façanha.

Descia pouco atrás do Vinicius e da Rossana que estavam entretidos numa discussão filosófica sobre os fundamentos das religiões, se Deus existe ou foi inventado pelo homem e as verdades da Bíblia Sagrada detalhadamente explicadas no livro “E a Bíblia Tinha Razão” de Werner Keller. Em conversa deste tipo é difícil meter o bedelho e mantive uma boa distância para não precisar confessar minha ignorância.

Houve tempos que tinha certeza de que Deus não existia, ateu completo, depois me convenci da Sua onipotência no universo e hoje confesso que não sei mais nada, mas que seria muito bom se existisse isto seria. Dos dezessete aos trinta e cinco era tudo certeza e agora, aos cinqüenta e seis, só dúvidas e esperanças. Sempre caminhei na contra mão da história, enquanto todo mundo aprende e tudo sabe com o avanço da idade, eu fico mais burro e coberto de dúvidas.

No acampamento da ponte encontramos outro vigia a nos dar as boas vindas e antes de embarcar nos carros dedicamos uma boa meia hora de conversa com o matuto. Contou-nos que na semana passada ouviu um barulho à noite, no viaduto, mas ficou mocado até o dia amanhecer quando foi ver o que aconteceu. Desceu no fundo da grota e encontrou o cadáver de uma mulher, arremessada da ponte, com a calcinha nos joelhos.

Realmente não sei mais de nada, mas que o diabo existe posso afirmar com segurança, e são muitos!

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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