Por que será que as vias mais inacessíveis são as mais interessantes? E por que o estilo alpino é mais honesto? Só quem já escalou uma via difícil em um lugar remoto, com o mínimo de equipamentos possível pode responder estas questões. Para quem vê de fora parece meio absurda a idéia. Para nós, em meio à vastidão daquela montanha, depois de 2 dias de esforços extenuantes sem encontrar um bom lugar para dormir, parecia um jogo justo entre homem e montanha. A montanha dava as cartas e nos afundávamos cada vez mais naquela partida, apostando tudo, principalmente nosso orgulho.
Abrir uma via não é uma tarefa simples. Começa muitos dias antes da escalada propriamente dita. Neste caso, começou com a idéia, há alguns anos, quando vimos algumas fotos da parede do Ibitirati, montanha do conjunto do Pico do Paraná. Notamos que no centro havia uma faixa de rocha limpa e vertical. O primeiro impulso foi dizer: “mas…pra chegar aí…deve ser um empenho…” E assim nasce uma escalada insana, claro, de uma idéia insana.
Agora faltam os escaladores insanos. Eu (Ed) e o Val tínhamos feito uma tentativa de acessar esta parte da parede, mas, para variar o tempo nos pregou uma peça, parecia que iria desandar a chover e não choveu. Também notamos que para carregar todo o peso em duas pessoas era muito sofrido. Então chamamos o Wagner (Guinho) de Sampa, para repartir o fardo. Claro que omitimos alguns detalhes para ele aceitar a proposta mais facilmente.
Agora temos o objetivo e a equipe, falta “apenas” arrumar os equipos. Geralmente colocamos tudo no chão o que pretendemos levar e depois vamos tirando coisas até obtermos o peso que podemos carregar sem estragar hérnias e joelhos. Desta vez eu teimava em não levar os friends grandes, ainda bem que o Val não aceitou minha proposta. Separamos para levar: duas cordas, 2 jogos de friends, stoppers, material para artificial, martelo, talhadeiras, proteções, muitas costuras, fogareiro para comer algo poderoso à noite e para o café pela manhã, e mais 18,5 litros de água, comida para 4 dias… Claro que no estilo alpino está proibido levar saco de dormir, no máximo um saco de bivaque. Agora só faltava ir…
“4 da madrugada é um bom horário, assim caminhamos com o tempo fresquinho” diz o Val. Nestas horas quero escalar só escalada esportiva ou boulder: dá pra levantar às 11, tomar café, começar escalar lá pelas 2 ou 3 da tarde, até umas 6 ou 7 no máximo e à noite sempre tem festa, isso que é vida!!! Mas, voltando à história, começamos a caminhar lá pelas 7 da manhã, partindo de Bairro Alto, próximo a Antonina. Fizemos toda a aproximação, escalamos um terço da Via Mar de Caratuvas (via normal do Ibitirati) chegando no Platô do Jean Claude, deste ponto caminhamos no meio de um bambuzal infernal para a direita, até alcançar uma canaleta de mato que nos levou à base de nossa escalada. Levamos “só” 10 horas até aí. Claro que bivacamos num lugar horrível, um platô todo torto, com a ilusão de que a próxima noite seria melhor. Jantamos feijão com macarrão, que chic!
Acordamos meio desanimados, pois notamos que a placa de rocha logo acima de onde estávamos não apresentava fissuras, nem agarras. Propus que subíssemos um pouco mais pelo mato para ver mais pra cima. Este mais pra cima foi 150 metros de trepa-mato delicado que terminou na base de uma fissura que rasgava um teto alucinante e complicado de escalar! Escondíamos-nos do sol enquanto decidíamos quem se encarregaria do pepino. Até que o Val se animou, pegou os friends e utilizando técnicas de escalada livre, artificial e muita “ogrice”, passou pelo teto, escalou mais um tanto, armou uma parada móvel e gritou: “corda fixa”. Quando cheguei morto na parada, ele me olhou com uma cara de malandro e me avisou: “ a minha cordada foi dura, mas a próxima…é pior”. O Guinho fez uma cara de “é tua mano” e lá fui eu falar com minha psicóloga.
Foi um jogo de buscar fissuras para proteger, limpando fissuras e evitando ter de bater proteções. No final da cordada, tinha de bater uma parada, mas eles não escutavam o que eu gritava, pensavam que a corda estava fixa e eu me equilibrando num platozinho e berrando. No final pudemos nos comunicar dando puxões na corda. Não precisa nem dizer que a próxima cordada seria pior que a anterior, pois no final todas as cordadas pareciam querer arrancar a nossa pele, parecia que a montanha estava disposta a não ceder, a ver até que ponto estávamos dentro do jogo.
E o segundo dia foi minguando enquanto o Val tentava negociar com as fendas que também se acabavam, numa cordada extremamente complexa e exposta. Eu e o Guinho buscávamos um lugar para dormir, mas quando a noite veio já procurávamos algum lugar para sentar e terminamos encontrando um platozinho que mal dava pra colocar o fogareiro para cozinhar. Ficamos tentando fazer o tempo passar mais devagar, pois a noite tardaria muitíssimo. Geralmente quando dormimos mal é melhor nem olhar o relógio, porque quando parece que já vai amanhecer e consultamos para ver que horas são sempre é muito menos que gostaríamos…além do mais, o próximo a jogar seria eu, logo pela manhã, isto fez com que o tempo se alongasse ainda mais.
Terceiro dia. Água no limite, pois o sol do segundo dia nos cozinhou na parede. Amanhecemos destruídos e açoitados por uma tormenta de vento. Pelo menos iríamos consumir menos água. A parede continua querendo ver até onde vamos no seu jogo: verticalidade, proteções delicadas…Termino a quarta cordada da parte de rocha. Olho para cima e imagino que falta pouco, talvez duas cordadas. Meus companheiros chegam e passamos a analisar uma foto que temos da parede. O Val está em dúvida, mas o convenço que falta pouco, afinal é melhor pensar positivo. Ele guia a quinta cordada que começa num trepa-mato delicadíssimo e depois entra em uma fissura linda em transversal. Faz uma parada móvel e nos chama.
Lá vou eu para a sexta cordada com todas as minhas fichas apostadas de que seria a última da via. De cara já tenho de bater uma chapeleta, a ansiedade é grande, mas não posso perder o foco. Depois da chapa, proteções horripilantes, saio à direita numa placa, não encontro fissuras e tenho de desescalar um pedaço. Volto a negociar com a fissura podre, vejo o final das dificuldades a alguns metros de mim e não consigo sair do lugar.
Falo comigo mesmo: “vamos Ed, pense, use a cabeça!” Subo um pouco mais os pés, alcanço uma fissura, aí vem a lei de Murphy: nenhum friend entra. Retrocedo e me sinto completamente tomado pelo jogo, não tem mais volta, é a última jogada, não perco mais, tiro o friend de baixo, volto, faço um movimento difícil, coloco-o na fissura de cima, entra como uma luva. Respiro, mais uns movimentos, saio caminhando rumo ao cume e gritando para meus companheiros que respondem com alívio e emoção!!
Que montanha, que escalada, não podíamos acreditar, a via não nos deu uma trégua, nem nos últimos metros! Todas as cordadas foram duríssimas, muito trabalhosas e extremamente cansativas. Chegamos ao cume do Ibitirati com 4 litros de água, suficiente para chegar até o próximo ponto de água. Descemos caminhando pelo outro lado, pois rapelar tudo aquilo estava fora de cogitação. Ahhh, o nome Toca-toca o pau na mula é em homenagem à velha guarda de montanhistas paranaenses, pois gostamos da música que eles cantaram no Jantar da Montanha.
Texto: Edemilson Padilha (Ed)
Fotos: Ed, Val e Guinho
Escaladores:
Edemilson Miqueleto Padilha (Ed)
Valdesir Machado (Val)
Wagner Pahl (Guinho)
Patrocínio: Conquista, Snake e Território
1 comentário
Admiramos o Edemilson!É o “come quieto”.escalador que dispensa explicações.Competente, silente, controlado, com curriculum internacional invejavel, nós brinda agora com está conquista no El Capitan brasileiro (parede do Ibitirati)com mais 2 companheiros.Parabens e torcer que a ética Marumbinista prevaleça e se respeite SEMPRE o nome batizado.Parabens!