LENÇÓIS MARANHENSES A PÉ!!! – P2

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DIA INTERMINAVEL ATE O ´OASIS´ BAIXA GRANDE
Pra não tomar o forte sol da tarde, compensei pernando antes da alvorada. Despertei antes das 4 da madru, tomei café e levantei acampamento, c/ tempo ameno e alguma brisa vinda do norte. O destaque, porém, não foi o céu limpo e estrelado, e sim a maravilhosa lua cheia q iluminava a paisagem diante de mim, as outrora ondulações de areia douradas agora eram espetacularmente prateadas!!! C/ claridade perfeita e visu + q inspirador, comecei a andar, deixando lentamente as lagoas e a faixa de restinga lá pra atrás. O brilho da lua refletido em laminas de água dissiparam meu receio de não achar o precioso liquido naquele dia, pois carregava quase 4L de água caso no trajeto td estivesse seco. Joguei fora, permanecendo apenas c/ a garrafa básica de 1,5L q levo permanentemente.
Texto e Fotos: Jorge Soto


C/ os temores se dissipando tal qual pegadas na areia e cada vez + confiante, continuo minha jornada noturna duna adentro, sob belo luar maranhense. Basta tb 1 hora de caminhada&nbsp, no deserto p/ vc pegar o ´jeito´ menos desgastante e + produtivo de avançar naquele local, q tem sempre a mesma paisagem, não dispõe de trilha e nem sequer referencia visual. Como meu destino naquele dia eram os ´oásis´ de Baixa Grande ou Queimada dos Britos – distantes quase 30km – teoricamente bastava seguir sentido norte/noroeste, descontada a declinação magnética básica, claro! Qq perdido eu certamente chegaria no mar, q é de onde sempre sopra o vento, e isto pode ser constatado através do formato das dunas: a ´barriga´ levemente inclinada sempre será o norte/nordeste! Assim sendo, bastava subir o alto de uma duna, checar a bússola, e traçar uma linha imaginaria ate meu azimute e pra lá seguir. E assim sucessivamente. Mas em função dos obstáculos (lagoas e dunas altas) logicamente q nunca se anda em linha reta: qdo cheias e fundas, as lagoas devem ser contornadas pelo lado menos íngreme da duna, qdo secas as atravessava direto.

As dunas, por sua vez, são firmes, compactas e boas pra caminhar na barriga e no alto, ou seja, do lado q sopra o vento, já do lado íngreme, oposto ao vento, é fofa d+ e quase impossível de encarar subir de frente, mas pra descer é uma delicia pois se afunda o pé inteiro, quase ate a canela! Ah, embora o ideal fosse andar descalço ou de papete, eu particularmente caminhei de bota mesmo, afinal terreno firme não faltava e assim se avança bem + rápido, s/ receio de pisar algum objeto estranho, principalmente nas lagoas secas, cheias de farpas e toquinhos de madeira. O dose era ter de remover toda vez a areia qdo se desce pela parte íngreme da duna, a fim de atravessar direto as lagoas secas s/ ter de contorna-la. Assimiladas estas ´manhas´, foi só colocar pé-na-areia e ir checando a bússola a cada 5/10min, s/ desviar muito de minha reta imaginaria.

Andar na madru é fantástico não só pq rende, mas tb pelo visual do manto negro do firmamento repleto de estrelas, algumas delas ofuscadas pela beleza da lua cheia reinante. Mesmo assim, 1 hr bastou p/ me deixar completamente encharcado de suor. E assim prossigo naquele mesmo ritmo inabalável, ditado apenas pelo terreno q se apresenta aparentemente o mesmo, mas q está em constante mutação. Afinal, as dunas nunca são as mesmas de um dia pra outro, avançam, somem umas, aparecem outras, retrocedem e, conseqüentemente, ditam o formato das lagoas, algumas desaparecem dando origem a outras, ou simplesmente acabam sendo interligadas, umas c/ outras. Carta topográfica aqui não faz sentido.
Quase 2hrs depois e no alto de uma duna, faço uma pausa p/ descansar, beliscar alguma coisa e apreciar o sol nascer atrás dos morros alvos à leste. Show de bola! A escuridão lentamente se dissipa, dando lugar a um céu tingindo-se gradativamente de tons escarlates e, conseqüentemente, iluminando àquela paisagem em tons cada vez + vivos q são reforçados no reflexo das lagoas presentes! Mas o tempo de contemplação não deve se estender, afinal, já já o sol vai castigar s/ dó!

Continuo nesse sobe-desce-duna-contorna-atravessa-lagoa, agora c/ iluminação suficiente p/ observar particularidades na paisagem despercebidas na madru. A medida q minha enorme sombra encolhe, vislumbro a textura ondulada das dunas – totalmente simétrica e homogênea – sendo modificada pelo vento rasteiro, q carrega finos grãos de quartzito constante e lentamente. Às vezes o vento sopra + forte em rajadas, fazendo com q a areia ´pinique´ as canelas e seja um incomodo, mas a grosso modo o vento se limita a brisas suaves e bem-vindas. Outro detalhe é o silencio generalizado, perturbador até, q só é quebrado pela minha respiração ofegante.

A luminosidade incipiente tb torna as dunas claras, tendendo ao branco cada vez + intenso. E contrastando c/ a superfície é possível ver sinais de vida – não necessariamente selvagem – naquele local aparentemente inóspito. Pegadas de aves ou cavalos, e diminutos dejetos de bode são uma constante! E de repente, eis q um rebanho errante deles surge na vastidão de areia, nos remetendo ate a uma cena bíblica qq. Soltos, eles passam o dia comendo o capim das lagoas secas. As lagoas secas, por sinal, são o maior reduto de vida por incrível q pareça. Era lá q sempre ouvia alguma ave reclamar diante minha aproximação, principalmente a caburé, uma corujinha q faz sua toca no chão. Haviam tb carcarás, maçaricos e quero-queros. E piningas, uma espécie de tartaruguinha, da qual vi apenas o casco rente a algumas outrora lagoas.

Às 9:30, + um dos vários pit-stops q me reservei por conta do cansaço e do calor, desta vez ao lado de uma belíssima lagoa verde-azulada ao pé de uma duna alva enorme. A coloração das lagoas – cristalina, azul ou verde – depende exclusivamente do tipo de vegetação e&nbsp, lodo depositada no fundo. Havia ate pequenos peixinhos q fugiram qdo mergulhei nela pra me refrescar. Um tchibum + q merecido.

Prosseguindo a pernada naquele ritmo imutável, lentamente o cansaço se faz sentir. Vontade de parar a cada 10 min não faltou. O calor é realmente causticante e a areia torna-se + abrasiva, mas tenho um objetivo naquele dia. Nessas horas procuro esquecer o cansaço ocupando a mente c/ outras coisas ou simplesmente cantando em voz alta, afinal, ninguém ta ali p/ reclamar. A constante ´mesmice´ da paisagem é perturbadoramente bela, porem a presença constante de bodes aqui e acolá torna a pernada menos monótona: dou nome aos bodes q cruzo, particularmente àqueles q seguem na mesma direção minha, apenas p/ fins de distração.

Lá pelas 11hrs, no alto de uma duna e conferindo pela centésima vez a bússola, ao tracejar meu rumo imaginário naquele horizonte ondulado eis q avisto outro andarilho solitário numa lagoa seca, não muito longe, à leste!!! Não titubiei de ir em seu encontro, pois era minha oportunidade de saber se estava indo na direção certa!! Desviei do meu curso e desci apressadamente a duna, atravessei 2 lagoas secas e contornei outra cheia q havia no caminho, ate alcançar o outro extremo da lagoa seca na qual vi o andarilho, q tb estava acompanhado de um cão esquálido. Gritei p/ ele p/ q me esperasse e fui ao seu encontro. Era seu Osmar, um tiozinho desdentado de Buriti Grosso – pequena vila quase 20km ao sul – trajado bem simples, roupas em frangalhos, bolsa no ombro c/ água. Devia ter 60 anos, mas aparentava + devido à vida dura.

Estava ali desde cedo c/ + 3 colegas espalhados pelo deserto tentando buscar/juntar seus bodes e porcos(!?). Me disse q td mundo solta seus rebanhos (incluindo vacas, jegues e bois) no deserto pra pastarem livremente nas lagoas secas, pq não tem condições de mantê-los presos. Depois tem a árdua tarefa de ir buscá-los, pq senão eles ficam por lá mesmo e, diferentemente de cães e gatos, eles não retornam p/ casa. Por incrível q pareça, eles sabem reconhecer qdo um bode pertence a ele e não à outro rebanho, só não me pergunte como. Deve ser a mesma argúcia c/ q enxergava diferenças entre as dunas, q pra mim eram iguais. Coisas de gente do deserto. ´Mas de vez em qdo tem um caboclo ruim q pega um bode q não é dele e come!´, emenda. P/ minha felicidade estou no sentido correto, e a direção q devo prosseguir apontada por ele confere com a marcação minha reta imaginaria!! Uffaaa! Qto à quilometragem q falta ele responde, convicto: ´Ta pertinho, apenas 3hrs ate lá!´ Esqueci q aqui as distancias não se medem em kms e sim por tempo.. Me despedi de seu Osmar e continuei a jornada.

A tempo passa e a pernada torna-se + fácil: as dunas são cada vez + baixas, os espaços são cada vez + amplos e as lagoas secas vão se interligando, formando uma espécie de ´avenida´ em meio àquela vastidão ondulada. E o cansaço pegando. A luminosidade das dunas é intenso, e como não uso óculos escuros, me resigno a caminhar com os olhos encolhidos, franzindo a testa. Como a coloração da areia depende da incidência dos raios, a paisagem é totalmente branca, já ao entardecer as dunas tornam-se douradas. Felizmente, por volta do meio-dia e sol a pino, já consigo avistar a noroeste pontinhos escuros em meio ao areal, q são nada + o inicio da faixa de restinga arbustiva de Baixa Grande!! Graças a Deus! Embora tenha contato visual, as distancias no deserto enganam e chegar ate lá leva ainda um bom tempo! Desgastado pelo sol, caminhando trópegamente c/ areia acumulada nas botas molhadas, dor nas costas e a parte superior das coxas c/ incomodas assaduras fazem c/ q pare por um bom tempo antes de alcançar meu destino. À beira de + uma lagoa, tomo outro refrescante banho e me deu um tempo de descanso. Uma leve brisa surge p/ amenizar o calor enquanto belisco algo e beberico um suco.

Às 13:30, após meia hora de pernada e um breve banho (não tem jeito, o calor pede!), alcanço a beirada do ´oásis´ de Baixa Gde. Subo uma duna mediana apenas p/ ter uma panorâmica desta ´ilha verde´ em meio a paisagem monocromática do deserto: uma larga faixa de restinga verdejante contrastando c/ a areia, arbustos medianos de galhos retorcidos, salpicada de pequenas dunas e lagoas de água cristalina, um verdadeiro ´oásis´!! Mas pra q lado seguir, sendo q não avistava nenhuma casa ou sinal de civilização? Continuei atravessando o oásis sentido noroeste ate q cai numa precária estrada de areia q seguia p/ norte, acompanhando td a extensão de vegetação. Se tem estrada deve dar em algum vilarejo, não?

Continuei não + q 10min pelo caminho ate q cheguei na ´vila´, q se resumia a 5 casas de taipa onde apenas 4 familias vivem ao pé de frondosos coqueiros, uma boa referencia p/ achar o local. Apesar de simples, eram bem organizadas, c/ uma cerca bem rústica de galhos de cajueiros e mirins, roçado, pomar e ate um jardim! A presença abundante de arvores baixas funciona como cerca viva, impedindo as casas serem engolidas pelas dunas. Mal me aproximei p/ pedir informações e uma simpática senhora, Dna Maria, me convida insistentemente p/ entrar tomar água e descansar. Não recuso, lógico! O interior da choupana, c/ teto forrado com palhas de buriti, não poderia ser mais simples. Forno a lenha estilo casa-de-farinha, redes espalhadas por todo lado servindo de sofá, e ausência de portas ou janelas, permitindo patos, galinhas, cabritos, gatos e cachorros terem transito livre pelo interior.

Sento na única cadeira disponível apenas p/ me sentir no programa ´Roda Viva´: o pessoal dos oásis não deve ter visitas regulares q andarilhos como eu despertam-lhe a atenção, tanto é q aos poucos foi surgindo + gente q se juntava na entrada da casa, principalmente jovens e crianças!! Dna Maria dizia q ela cuidava da família enquanto os homens da casa iam pescar no litoral, quase 1:30hr dali, numa espécie de nomadismo sazonal. A pesca é favorável apenas no ´inverno´, já na época de secas dedicam-se somente a criação de rebanhos e vivem do q plantam, produtos como macaxeira (uma mandioca + macia),milho, arroz, feijão, etc. Luz elétrica, nem pensar. Lamparinas estão espalhadas por todo canto. E água retiram das inúmeras lagoas ou de simples bombas manuais. Perguntei da ´estrada´ pela qual viera e Dna Maria diz q ela raramente é usada em janeiro.

Na época de secas, o prefeito de Sto Amaro vai ate ali de Toyota deixar produtos encomendados p/ eles passarem o ´inverno´, pois a estrada tornava-se intransitável na época de chuvas. Ou seja, estavam literalmente isolados do resto do mundo, o q explica em gde parte a curiosidade e extrema hospitalidade c/ estranhos como eu. ´E qdo alguém adoece?´, perguntei. Pra isso ela tinha toda sorte de receitas q beiravam o curandeirismo natureba, se valendo do q estivesse à mão: sebo de bode, óleo de mamoma, caldo de mucura, etc.. Pros males do outro mundo tem o ´sino de salomão´, uma figura geométrica desenhada no piso, logo na entrada da casa. No entanto, ao mencionar o prefeito, Dna Maria não perdoa: ´Prometeu muita coisa, mas melhorar q é bom, nada..´ Pois é, tem coisa q não muda seja onde for.

Depois de tão agradável prosa e dois goles de café irrecusáveis, sinto q já estou descansado o bastante p/ continuar a pernada p/ próximo oásis, distante apenas 5km dali, Queimada dos Brito. Dna Maria ainda insiste p/ q eu pernoitasse ali, e q havia espaço de sobra entre as redes da sala (detalhe: 2 bebês dividiam a mesma rede). Agradecido, recuso sua tentadora oferta, mas&nbsp, tava resoluto a avançar naquele dia deveras cansativo.

Seguindo as instruções dos filhos de Dna Maria, as 15:30, cruzo um pequeno riachinho, contorno uma duna e logo deixo Baixa Grande. Dali mesmo já consigo avistar meu destino, a noroeste: uns ´matinhos´ despontando no horizonte. E dou prosseguimento à pernada atravessando varias lagoas secas e cortando caminho subindo/descendo dunas medianas. Apesar do trajeto ser bem + amplo e fácil q o feito pela manhã, o cansaço acumulado se faz sentir e os meros 5kms parecem não terminar nunca! Na metade do trajeto eu já andava por inércia, apenas norteado pela necessidade de chegar nos ´matinhos´, cada vez + próximos. Neste trecho passo por uma lagoa seca bem bonita, onde arvores secas retorcidas inteiras + parecem esculturas em meio ao deserto, remanescentes do q já foi um mangue q foi soterrado! Contudo, a esta altura do campeonato pouco tempo dispenso p/ contemplações. Quero chegar logo em meu destino e lá comemorar o final de dia, c/ cerveja, se possível!

Chegando, enfim, próximo dos matinhos eis mais um agradável obstáculo, o manso e largo Rio Negro, curso d´água q atravessa perpendicularmente todos os Lençóis ate desaguar no mar. Jogo a mochila no chão p/ testar a profundidade (e ter um banho, claro!) e nado ate o outro lado, c/ água ate o pescoço, felizmente! Atravesso-o novamente – desta vez equilibrando a mochila na cabeça – apenas tendo cuidado em não pisar no lodo escorregadio ou galhos pontiagudos, ate alcançar a outra margem, ao pé de uma enorme duna. Como se a camelação não tivesse fim, ainda tenho q subir uma duna íngreme p/ alcançar definitivamente meu destino. Não é bem subir e sim escala-la! Não havia outra maneira de avançar. Escalar a desgraçada de frente é patético e exaustivo à beça: dá um passo e retrocede dois! O jeito foi subi-la em diagonal, mas mesmo assim alcancei o alto de seus 20m quase me arrastando!

No alto da duna, minha decepção. Kd a ´vila´ de Queimada dos Britos? Em Baixa Gde me informaram q era bem maior, mas de onde estava só avistava a linda paisagem do ´oásis´, dunas, lagoas e muita, muita vegetação arbustiva! Uma versão maior do oásis anterior! Sinal da vila, nenhum. Certamente teria q procurá-la, mas estava no limiar de minhas forças, extremamente cansado, s/ condições de buscar nada. Andava desde as 4 da madru e se desse + um passo era bem provável de aparecer uma tela azul na minha frente acusando minhas pernas de executarem uma operação ilegal e provavelmente travariam.. Dane-se a vila e a cerveja!

Assim, as 17hrs decidi acampar aos pés daquela enorme duna, porém do outro lado e à margem de uma bela lagoa. O céu naquela altura se tingiu de nuvens escuras carregadas e novamente não vi pôr-do-sol nenhum. Duro foi armar a barraca pq começou a ventar forte, e duro tb foi remover a areia q entrava a td hora dentro dela. Enquanto preparava meu tradicional miojão, ouço vozes próximas proveniente de 2 garotos de bike indo em direção ao rio. Eram de Queimada dos Britos – q distava dali uns 15min, segundo eles – e estavam indo pescar na praia. O som de trovões ao longe faz c/ q use&nbsp, – pela 1ª e única vez na viagem – o sobreteto da barraca. Não tive muito trabalho p/ cair no sono e já sonhava c/ os anjinhos antes mesmo de escurecer totalmente, as 19hrs.

Jorge Soto
http://www.brasilvertical.com.br/l_trek.html

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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