Saudade do Pico Paraná III

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Este é um texto antigo e retrata uma época passada, uma paisagem também alterada, mas que deixou muita saudade.

Pouco antes de penetrar na escura floresta tropical vê-se a direita e ao alto uma fenda entre os picos do Caratuva e do Itapiroca que nos dará passagem à face leste da serra. A trilha toma-se estreita e muito difícil, as raízes formam um emaranhado que serve de degraus, os raios de sol não chegam até o chão e tudo é iluminado por luz difusa na atmosfera. Ao cruzar um pequeno riacho que desce a montanha deve-se abastecer o cantil com a água fresca desta fonte, são três horas de caminhada até aqui e serão necessárias mais duas horas e meia até o próximo abastecimento com água potável. A mata atlântica envolve completamente a trilha que serpenteia por entre árvores, cipós e pedras. A mochila enrosca nos galhos e dificulta o equilíbrio, no verão o calor faz evaporar a umidade do chão dando ao lugar uma atmosfera fantasmagórica com temperatura de sauna.

    Nos meses de novembro e dezembro floresce a araça, uma árvore que produz deliciosa frutinha silvestre e atrai verdadeiros enxames de enlouquecidas “butucas”, inseto sugador pouco maior que uma abelha e de certa forma muito parecida com elas e que após sentirem a presença humana ficam completamente alucinadas diante da possibilidade de um almoço fácil. O inseto é persistente ao extremo, mas limita-se a seguir a vítima a espera de uma oportunidade para atacar o que transforma a travessia da selva nesta época do ano em verdadeira maratona atlética. A natureza tropical é exuberante, em cada árvore há orquídeas em flor, as bromélias atingem um metro de altura, pássaros multicoloridos que produzem os mais variados sons, sapos enormes e vez por outra a mata abre-se e permite ver a distância a enorme montanha bem a frente e acima das nuvens que encobrem os vales profundos.

    Vencida a floresta chega-se ao domínio dos ventos, um local de mata baixa, seca e retorcida, o sol castiga inclemente, há vários pontos para acampamento o que batizou o lugar de Abrigo I, aqui um ipê adulto nunca ultrapassa a altura de um metro e meio, há pássaros, lagartos e muitas aranhas, tarântulas e caranguejeiras são as gigantes cabeludas que vem atraídas pelo lixo dos excursionistas descuidados, a paisagem é magnífica com o Paraná visto por inteiro, emergindo do fundo do vale coberto de nuvens e quase tocando o céu. O grande maciço domina toda a vista a frente e à direita vê-se a figura o Ciririca e suas antenas, um imenso paredão que impressiona e divide as atenções de seu vizinho maior.

    A trilha desce tortuosa pelo cimo do divisor de água e recebe o nome de Fio de Ligação, pois é exatamente o que parece, uma tênue linha sobre o alto dos morros e faz a única ligação possível com o gigante do outro lado da ravina. O Fio de Ligação termina numa da encostas do Paraná, em um paredão quase vertical de 90 metros de altura dotado de correntes fixadas por grampos às pedras de maior dificuldade. Depois de vencer inúmeros obstáculos agravados pelo calor e o cansaço acumulado em toda a trilha chega-se a um alto e estreito platô acima das nuvens conhecido por Abrigo II.

    O Abrigo II é composto de vários espaços semi planos para armação de barracas e uma construção rústica composta por um piso plano de 2 x 3 metros, cercado por paredes de pedras cortadas no local e assentadas com argamassa até 1,70 metros de altura e uma entrada voltada a oeste chamado de Abrigo de Pedra que oferece uma boa proteção contra os fortes ventos e marca o início de uma estreita trilha de aproximadamente 100 metros que após contornar uma pedra esbranquiçada revela uma fonte de água potável jorrando geladíssima por entre as pedras.

    Nos períodos de seca prolongada deve-se ir buscar a água na segunda vala da trilha dos Camelos, distante um quilômetro e meio do Abrigo II e que armazena toda a água filtrada pela terra turfosa das encostas. Do Abrigo II ao cume são 70 minutos de trilha estreita, mas segura e muito bem demarcada que segue tortuosa, margeando abismos estonteantes e com paradas obrigatórias em inúmeros mirantes com vistas para os dois lados da montanha. Do cume rochoso, por entre as nuvens descortina-se uma vista extraordinária, a paisagem toda é verde-azulada, o mar faz todo o fundo, ao pé do gigante há inúmeros pequenos sítios com seus canteiros organizados, a serra fecha o oeste como uma grande muralha de granito e além dela o planalto some no azul. Os abismos deixam sem fôlego o mais frio dos montanhistas.

    O PP tem muitos mistérios e um dos mais intrigantes são os grandes rostos semi humanos entalhados na pedra maciça. No contrafortes do Paraná procure o Ciririca e desça o olhar acompanhando a vertente esquerda, logo abaixo do Agudo da Cotia e imediatamente acima dos Camelos, ali onde o imenso paredão de Ciririca começa a erguer-se, toda uma grande encosta foi aplainada com contornos e formas de um rosto humano onde encontra-se muito bem delineados os olhos semi cerrados, o nariz, a boca e o queixo barbado de algum personagem mitológico em baixo relevo com o olhar fixo no cume do gigante.

    Embrenhando-se na fechadíssima trilha dos Camelos até atingir a corcova de pedra desfolhada, situada na exata trajetória do olhar da grande figura, acompanha-se este até seu objetivo e descobre-se emocionado um enorme rosto esculpido na pedra do cume do Paraná No cume da montanha a natureza esculpiu uma enorme cabeça com nariz saliente, boca  recurvada para baixo e olhos esbugalhados e fixos no firmamento em conotação de suplica e expressando uma profunda tristeza somente compreendida por seu fiel observador do outro lado da serra.

O Paraná tem todas as características apaixonantes das grandes montanhas, aqui as paisagens mudam a todo o instante, as nuvens movimentam-se com grande velocidade e as condições meteorológicas são muito instáveis, as tempestades desabam com ferocidade sobre a montanha. Água é um eterno problema, por falta ou por excesso. Ao frio polar da noite sucede o calor infernal do dia. Os ventos açoitam e castigam. A montanha é linda e selvagem, a vida aflora atrás de cada pedra, lagartixas, ratos, aranhas, corujas, andorinhas, uma legião de formigas, magnificas flores que crescem na beirada dos abismos e paisagens de indescritível beleza fazem desta montanha o destino de um sem numero de destemidos viajantes que a cada feriado prolongado retornam a estas paragens com devoção religiosa.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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