Epopéia no Pão de Açúcar colombiano

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Escalei o Pao de Acúcar (5.100 m) no P.N. Cocuy (Colombia), que aliás, abriga muitas montanhas nevadas legais. Mas pagamos caro nesta aventura. É a segunda vez que participo de resgates aqui na Colombia em poucas semanas. Em 28 anos de escalada, somente havia participado em 3!!


Me juntei ao Jairo Bogotá e tres ingleses (Carla, Jack e Alex) que nao tinham nenhuma experiencia. Depois de dois dias de aclimatacao com caminhadas belissima, fomos subir a montanha. Eu havia tentado sozinho no dia anterior, mas era tarde e eu afundava na neve até o joelho. Desci os 900 m (verticais) que havia subido. No dia seguinte saímos as 4 h da manha e pegamos a neve em condicoes perfeitas, mas fiquei preocupado com nuvens altas ainda de madrugada, e também com as fomosas nuvens lenticulares nos cumes (significa vento forte e mudanca de tempo).

Como os ingleses eram iniciantes, o Jairo os levou pela a via normal, que é uma caminhada na neve com um lance técnico para chegar ao topo. Resolvi subir sozinho por uma via mais técnica porque tinha bom equipamento (2 pioletes de tracao). Quando reencontrei o grupo próximo ao cume, vi que a inglesa nao usava grampon e o Jairo nao tinha levado corda!! Que loucura. Mas fiquei quieto. Arrumamos um jeito de levar todos ao topo, que é fantastico!! Segue-se por uma crista bem exposta. Os ajudei na descida, mas sempre esperando que alguém despencasse. Depois que julguei que todos estavam seguros, desci na frente e me afastei.

Entretanto, o Jairo resolveu ensinar para os ingleses como parar uma queda cravando o piolet na neve (*). Depois de fazer algumas descidas, na última, o grampon direito dele travou na neve quando deslizava com velocidade, mas o tranco fez quebrar sua perna em dois lugares. Fratura exposta!!

O Alex desceu para me avisar e tive que subir com uma corda para fazer o resgate. Eu subia tao lento que parecia má vontade, mas era o efeito da altitude, apesar de eu estar puto com a situacao, ele era o responsável pelos ingleses. Eram 10 h e a neve se encontrava em péssimas condicoes. Mas conseguimos desce-lo até a zona livre de neve e encontramos alguns colombianos. Pelo celular, eles acionaram um grupo de resgate. Mas como eu havia previsto, o tempo fechou tenebrosamente e resolvemos nao esperar pelo o resgate. Enfaixei a perna dele com um isolante térmico e esparadrapo e o carregamos uns 2 km montanha abaixo. Comecou a cair chuva congelada (gelo) que depois mudou para chuva fina e constante. O Jairo gritava de dor.

Finalmente, depois de quatro horas, chegou o “resgate”. Era o Miguel, um homem “franzino” de 1,60 m. Magrinho, usava um ponche, chapéu de cawboy e botas de borracha (galocha). Trouxe com ele uma maca. Olhou a situacao e nao perdeu tempo, deixou a maca de lado, colocou o Jairo nas costas e comecou a descer uma enorme morena (deposito glacial de pedras) de uns 300 m verticais. Eu olhava aquilo e pensava… Cacete, vamos ter mais um acidentado. Mas o danado deixou-me impressionado. No meio da morena encontramos mais 3 para ajudar no resgate, mas foi quando caiu um tempestade daquelas, com chuva grossa misturada com neve. Mas conseguimos desce-lor a até um lugar onde havia um cavalo.

O Jairo e a inglesa foram para o hospital, eu e os dois ingleses fomos para o nosso acampamento. Entretanto, quando vimos nossas barracas, deu vontade de chorar. Armamos elas sobre uma area plana no topo da morena, onde formavam pequenas depressoes. Bem, formou-se um lago de 3 cm de profundidade e a minha barraca flutuava. Dentro dela ficou tudo molhado. O mesmo aconteceu com os ingleses e já eran 5 h da tarde. Que merda, há 13 anos que tenho titulo de PhD justamente sobre o comportamento da água no solo e nao previ aquela situacao. Que noite “agradavel” a 4.300 m de altitude.

(*) Eu aprendi há 19 anos a importancia de saber frear uma queda com o piolet, mas a prática deve ser feita sem grampons porque a chance de se machucar é grande. Na verdade, numa queda em uma parede nevada usa-se esta técnica para evitar consequencias mais graves, como a morte. Uma perna quebrada é apenas uma perna quebrada. Mas em treino deve-se evitar os grampons. Aliás, os grampons também podem fazer o escalador girar de cabeca para baixo e descer com mais velocidade. Enfim, nao é a toa que os acidentes sao muito mais comuns em ambientes alpinos.

O Parque do Cocuy sem dúvida merece ser visitado, é fantástico. É mais uma opcao com travessias fantásticas (como as do Peru e da Patagonia) e também boas escaladas em neve e em rocha. Já tenho alguns projetos de conquista e outro de atravessar todos os cumes nevados desse parque, sao 15 se eu nao me engano, o mais alto com cerca de 5.300 m. A melhor época para ir a essas montanhas é de dezembro a fevereiro, no resto do ano chove-neva muito.

Antonio Paulo Faria

Obs. Continuo brigando com os acentos dos computadores daqui. 

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Sobre o autor

Antonio Paulo escala há tanto tempo que parece que já nasceu escalando... 30 anos. Até o presente, abriu mais de 200 vias no Brasil e em alguns outros países. Ele gosta de escalar de tudo: blocos, vias esportivas, vias longas em montanhas, vias alpinas... Mas não gosta de artificiais, segundo ele "me parecem mais engenharia que escalar propriamente". Além disso, ele também gosta de esquiar, principalmente esqui alpino no qual pratica desde 1996. A escalada influenciou tanto sua minha vida que resolveu estudar geografia e geologia. Antonio Paulo se tornou doutor em 1996 e ensina em universidades desde 1992. Ele escreveu sobre escalada para muitas revistas nacionais e internacionais, capítulos de livros e inclusive um livro. Ou seja, ele vive a escalada.

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