Eu pratico várias modalidades de escalada. Principalmente escalada tradicional e escalada de alta montanha. Faço isso a 20 anos.
Em 2002 tive o meu primeiro contato real com a hipóxia de altitude.
Para quem não sabe, a medida em que subimos as grandes montanhas, a pressão parcial dos gases que compõem a atmosfera diminui, e por consequência, a fração de oxigênio que conseguimos passar através dos alvéolos pulmonares para dentro das hemácias, diminui também. Esse tipo de situação é chamada de Hipóxia (na verdade essa é a Hipóxia hipoxia… é que existem outros tipos de Hipóxia…)
Enfim… eu estava escalando nos Andes Bolivianos, na Cordilheira Real e acabei tendo uma infecção de vias aéreas superiores que evoluiu rapidamente para uma pneumonia.
Quando dei-me conta, meus pulmões estavam cheios de muco e fluido, e fiquei várias e várias horas exposto a uma Hipóxia severa, com vários períodos de inconsciência devido a privação de oxigênio. Meus amigos não tinham a menor idéia do que fazer e me atendimento resumiu-se a me levarem para dentro de uma barraca e me colocarem em um saco de dormir. Isso tudo a cerca de 5500m.
Em um dos períodos de consciência, vi que estava com febre e que as coisas estavam realmente sérias. Dei início a um tratamento imediato com antibióticos e anti-inflamtórios esteróides e avisei que teríamos que descer o mais rapidamente, para diminuir a altitude e aumentar o percentual de oxigênio disponível. Poucos dias depois estava na segurança de minha casa.
Ao voltar ao “normal” e ao dia-a-dia aqui no Brasil, minha esposa relatava que era nítida a minha dificuldade de compreensão de coisas cotidianas, como seu eu estivesse constantemente “dopado” com alguma coisa.
Na verdade, eu nem precisava de uma avaliação de terceiros : eu mesmo sentia uma grande dificuldade em estabelecer percursos ao dirigir um carro, por exemplo, sentia (ainda sinto) dificuldade em sair de um ponto “a” de carro, estabelecer um mapa mental do trajeto a ser percorrido, relacionar com o nome das ruas, e chegar até um ponto “b”.
Além disso, eu que sempre tive orgulho da minha capacidade analítica em resolver problemas, sentia um enorme bloqueio ao realizar tarefas em meu trabalho (que envolve engenharia e arquitetura de banco de dados)… Eu trocava palavras e utilizava palavras com sons parecidos fora de contexto, e durante um tempo, sentia dificuldade em manter um raciocínio lógico por longos períodos. A capacidade de concentração simplesmente despencou.
Hoje a maior parte destes “problemas” desapareceram ou foram minimizados… Certamente o cérebro cria novas conexões para que o dono (eu, no caso) volte a ser “normal”.
O lado ruim da história é que ainda hoje sinto-me lesado de alguma forma. De forma grosseira, o único resultado permanente que sinto é que fiquei mais “lerdo”, em outras palavras, no aspecto “performance cerebral” ou “velocidade na solução de problemas” , eu diria que hoje sou uma fração do que já fui no passado.
Em 2008 voltei a ter uma experiência terrível com a altitude. Desta vez não foi comigo… eu estava no acampamento alto do Huayna Potosi, algo em torno de 5130m , havia um pequeno grupo de “estudantes” de uma escola militar que iriam escalar pela rota normal. E uma menina do grupo, uma tal de Andrea, estava muito mal. Um guia local estava procurando algum “gringo” ou “médico” que pudesse ver o seu estado.
Eu me ofereci para ver o que acontecia e quando cheguei, soube que ela já estava a um certo tempo nessa altitude, e passando bastante mal. Realmente ela não estava nada bem Não conversava muito bem, muito sonolenta, etc Trouxe ela dentro do refúgio (até então ela estava exposta ao frio e ao vento), arranjei um chá quente e comecei a estabelecer uma série de hipóteses diagnósticas. A primeira coisa que me veio a mente foi hipoglicemia devido ao esforço físico da subida.
Perguntei se era diabética e ao saber que não, dei uma pastilha de glucose para ela. Enquanto ela mastigava o carboidrato de rápida absorção, fui buscar em minha mochila o meu kit de emergências, que inclui um oxímetro. Ao medir a saturação de oxigênio dela, na primeira leitura indicou 66% ! (e cerca de 90 BPM). Péssimos indicadores !
Deixei a menina descansando um pouco e fui atrás de alguém do grupo dela, quando eu volto cerca de uns 30 minutos depois, a Andrea estava inconsciente, com 70% de SaO2 , ou seja, apenas 70% das hemácias estavam recebendo oxigênio. A situação era extremamente crítica.
Eu nem quis mais conversar com o pessoal do grupo dela (que praticamente a haviam abandonado) e agilizei 3 carregadores e mais 2 caras do grupo dela para descerem a menina imediatamente ate a zona sul de La Paz (cerca de 2800m).
Apliquei uma injeção de adrenalina no músculo (a única coisa que eu tinha no momento!) e expliquei que achava que ela claramente estava com um quadro de edema cerebral e com problemas de perfusão.
Apos a injeção de adrenalina, o organismo reagiu quase instaneamente, com o oxímetro pude constatar que a freqüência cardíaca dela aumentou e por conseqüência, a saturação de oxigênio dela melhorou. A Andrea “voltou” a funcionar em marcha lenta e aparentemente conseguia andar com o auxilio dos colegas.
Apliquei uma nova injeção de adrenalina, desta vez em uma camada de gordura para que a absorção fosse lenta.
Eles iniciaram a descida da menida, que com certeza foi árdua…
Este ano, escalando no Peru, encontrei uma edição antiga da revista “Rock and Ice” que tinha uma nota bem interessante :
Eu fiz uma tradução livre da matéria :
No ar rarefeito, pensamentos confusos, falas arrastadas, e até mesmo alucinações, fazem parte da escalada.
Evidências crescentes sugerem que a altitude pode causar danos irreparáveis ao cérebro. Em um dos estudos, publicado no Jornal Americano de Medicina (The American Journal of Medicine), pesquisadores espanhóis realizaram exames de ressonância magnética em 35 montanhistas (alguns amadores e alguns profissionais) que haviam retornado do Everest (8858m), Aconcágua(6959m), Kilimanjaro e Mont Blanc.
Estes exames revelaram que 25 participantes haviam tido lesões cerebrais, atrofias, e/ou aumento dos espaços de Virchow/Robin, que drena o fluido cerebral (o aumento do espaço de Virchow/Robin ocorre principalmente na velhice).
Estes danos são relacionados com perda de memória, alteração de personalidade, e no final das contas, possivelmente demência.
Os pesquisadores realizaram novas ressonâncias magnéticas nestes voluntários três anos depois, e as alterações anatômicas no cérebro permaneceram, o que sugere um “dano irreversível”, como diz o Dr. Pedro Modrego. Em sua pesquisa, Modrego e outros concluem que “a escalada em alta altitude leva consigo um risco signficativo de desenvolvimento de lesões cerebrais e atrofia.”
Por outro lado, ele se apressa em dizer também que “os riscos aparentemente são maiores para os indivíduos não aclimatados”.
(Além disso, quanto menor a altitude do cume, menor o dano cerebral. De fato, 9 de 10 pessoas analisadas que tiveram os resultados da ressonância magnética normal estiveram em escaladas no Mont Blanc e no Kilimanjaro).
Então é isso… escalar é muito bom. E ninguém deve deixar de buscar os seus sonhos. Mas… os riscos sempre estão presentes !
Abraços !
Davi Marski
PS : Em meu site (www.marski.org) tenho alguns outros textos sobre fisiologia/medicina de altitude, em meu blog (blog.marski.org) tem relatos de algumas escaladas… Estou tentando acabar o texto de um livro que estou escrevendo, que é justamente sobre “escalada e trekking em alta montanha”. No livro vou aprofundar bem mais a questão da “curva de dissociação da oxi-hemoglobina” com a altitude, os efeitos da altitude e os tratamentos possíveis.
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Depois que fiz esse texto, fui pesquisar na internet mais sobre os tais dos espaços Virchow/Robin e descobri , fuçando no google, que a revista Scientific American havia dedicado uma matéria ao assunto.
Sobre o link do “American Jounal of Medicine” :
http://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0002934305006741
Na wikipédia tem um texto legal sobre hipóxia : http://pt.wikipedia.org/wiki/Hipóxia
Enfim.. a matéria da revista está reproduzida abaixo :
No final de 1890, em um laboratório situado no topo de uma montanha
de 4.550 metros, na cordilheira Monta Rosa, nos Alpes italianos, o
fisiologista Ângelo Mosso fez as primeiras observações diretas dos
efeitos de altitudes elevadas sobre o cérebro humano: a olho nu e com
um aparelho projetado por ele, Mosso observou as mudanças nas
protuberâncias e pulsações no cérebro parcialmente exposto, de um homem
que sofrera um acidente.
Recentemente um experimento semelhante foi realizado utilizando
imageamento cerebral não-invasivo. Para aqueles que adoram escalar
montanhas os resultados não são animadores. Em Saragoça, Espanha, o
neurologista Nicolas Fayed e colegas realizaram ressonâncias magnéticas
do cérebro em 35 alpinistas ─ 12 profissionais e 23 amadores ─ que
haviam voltado de expedições em grandes altitudes, inclusive 13 já
tinham escalado o Everest. Foram constatados danos cerebrais
praticamente em todos os que haviam escalado o Everest, mas também em
muitos alpinistas de menores altitudes que retornaram sem saber que
tinham sofrido lesões cerebrais. Parece que alpinistas que escalam
montanhas elevadas, sejam praticantes eventuais ou profissionais, ao
retornar de escaladas de montanhas altas apresentam alterações
cerebrais em relação às condições anteriores.
O que muda no cérebro do alpinista?
Embora a tolerância de cada pessoa à hipoxia ─ falta de oxigênio ─
possa variar de acordo com as diferenças fisiológicas inatas ou de
condicionamento físico, ninguém escapa ileso. Os efeitos podem ser
agudos, afetando o indivíduo apenas quando em condições de baixas taxas
de oxigênio, ou ─ como foi descoberto no estudo de Fayed ─ de longa
duração.
A primeira fase é muito apropriadamente chamada de doença aguda de
montanha. Pode provocar dor de cabeça, insônia, tontura, fadiga, náusea
e vômito. A fase seguinte, mais séria, provoca o edema cerebral de
grande altitude, também conhecido como Hace (em inglês), um edema
cerebral potencialmente fatal.
A falta de oxigênio pode danificar diretamente os neurônios. Além
disso, em grandes altitudes as paredes dos vasos capilares começam a
vazar, e o líquido que escoa pode produzir inchaços perigosos,
pressionando o cérebro de dentro para fora contra a parede rígida do
crânio. Algumas vezes os nervos ópticos incham de tal maneira que
formam uma bolsa no fundo do olho, alterando a visão e provocando
hemorragias na retina. Enquanto isso o sangue, concentrado devido à
desidratação e mais espesso com o aumento de células vermelhas, coagula
com mais facilidade. Esta coagulação, juntamente com a hemorragia
proveniente do estreitamento dos vasos capilares, pode levar a um
derrame. Um alpinista com Hace pode sofrer de amnésia, confusão,
delírios, perturbação emocional, alterações de personalidade e perda de
consciência.
Os casos graves de doença aguda de grandes altitudes associados aos
danos cerebrais são conhecidos há bastante tempo. Mas um detalhe
curioso do estudo de Fayed é que mesmo quando os alpinistas não
mostravam sinais de doença aguda, as tomografias ainda revelavam danos
cerebrais.
Resultados obtidos com alpinistas que escalaram o Everest foram os
mais impressionantes. Dos 13 alpinistas, três haviam atingido um pico
de 8.848 metros, três alcançaram 8.100 metros, e sete chegaram ao topo
em alturas entre 6.500 e 7.500 metros. A expedição não teve maiores
contratempos e nenhum dos 12 alpinistas profissionais evidenciou
quaisquer sinais óbvios de doença de grande altitude; o único caso
agudo da doença de montanha não foi grave e ocorreu em um alpinista
amador da expedição.
Ainda assim, dos 13 alpinistas, apenas o profissional teve, ao
retornar, um diagnóstico normal por imageamento de cérebro. As
tomografias dos outros 12 alpinistas apresentaram atrofia cortical ou
alargamento dos espaços VR (Virchow-Robin). Esses espaços envolvem os
vasos sangüíneos que drenam o líquido cerebral e se comunicam com o
sistema linfático; o alargamento desses espaços é observado em idosos,
mas raramente em jovens. O cérebro do alpinista amador também sofreu
lesões subcorticais nos lobos frontais.
Até que altura podemos subir?
Sem dúvida, o Everest é um caso extremo. Fayed e colegas também
estudaram um grupo de oito pessoas que tentaram escalar o Aconcágua, um
pico de 6.962 metros nos Andes argentinos. Dois alpinistas alcançaram o
pico, cinco chegaram a altitudes entre 6 mil e 6.400 metros, e um
chegou a 5.500 metros. No entanto, três deles tiveram doença aguda de
montanha, e dois apresentaram sintomas de edema cerebral ─
provavelmente por terem partido de altitudes menores subiram mais
rápido que os alpinistas do Everest.
Os oito alpinistas do Aconcágua mostraram atrofia cortical nos
exames de ressonância magnética. Sete apresentaram alargamento dos
espaços VR, e quatro mostraram inúmeras lesões subcorticais. Alguns nem
precisaram de tomografia para saber que tinham sofrido lesões. Um deles
sofreu de afasia ─ problemas relacionados com a fala ─ da qual se
recuperou seis meses depois. Dois se queixaram de perda temporária de
memória ao retornar e três outros lutaram contra a bradipsiquia ─
lentidão na atividade mental.
O corpo tem uma resistência extraordinária, mas será que o cérebro
se recupera dessas seqüelas do montanhismo? Para responder a essa
pergunta, os pesquisadores re-examinaram os mesmos alpinistas três anos
depois da expedição, sem a interferência de qualquer outra experiência
de alpinismo de grande altitude. Em todos os casos, as lesões ainda
eram visíveis no segundo conjunto de imagens.
O Aconcágua ainda é uma das montanhas mais altas do mundo. O Mont
Blanc nos Alpes do oeste europeu tem menor altitude. Seu pico de 4.810
metros é escalado todos os anos por milhares de alpinistas que
provavelmente não desejam sofrer danos cerebrais. No entanto, os
pesquisadores descobriram que dos sete alpinistas que chegaram ao pico
do Mont Blanc, dois retornaram com alargamento nos espaços VR do
cérebro.
Qual seria a causa?
O estudo sugere que a exposição crônica a grandes altitudes não é um
pré-requisito para se sofrer danos irreversíveis no cérebro. Na
realidade, os amadores parecem estar sujeitos a um risco maior, porque
eles estão mais propensos a sofrer doença aguda de montanha ou edema
cerebral de grandes altitudes. Alpinistas mais experientes, e
conseqüentemente mais bem preparados, no entanto, parecem pagar um
preço cada vez maior. Quando comparados com alpinistas amadores, os
profissionais, de modo geral apresentaram maior atrofia cortical.
Apesar de terem aparência física mais forte, apresentaram maiores danos
cerebrais.
Escalar montanhas é uma atividade que tem se tornado cada vez mais
popular ─ e por bons motivos. Proporciona experiências inesquecíveis,
perfeita comunhão com a natureza, amizades que alimentam o espírito,
experiências intensas e compensadoras que superam os limites da rotina.
Envolvidos pela aventura e desafios que desenvolvem coragem,
resistência e perseverança, os alpinistas são transportados para a
paisagem selvagem das montanhas ─ embora esteja desaparecendo.
Muitas pessoas acreditam que o principal atrativo está na
insuperável vontade de ir mais alto ─ Simplesmente por estar ali e
aproveitar o momento.
Cerca de 5 mil alpinistas escalam os picos do Himalaia todos os
anos. Outros milhares escalam picos nos Alpes e nos Andes. Muitas
dessas pessoas despendem quantias enormes para montar expedições ou
seguirem um guia até o topo das montanhas. Está cada vez mais claro que
gozar desse privilégio tem um custo alto, que não é pago com o suor do
rosto, mas com tecido cerebral.