Já pisamos terras lusas há alguns dias.
A vida normal regressou…digo-o com consciência, porque nós não regressamos à vida normal. Não depois de uma expedição como a última.
Os dias passam e ainda digo que estou de férias das férias (estranhas palavras estas, quando já me vejo no mundo da cidade e do trabalho!). Os meus pensamentos ainda estão presos a tudo o que vivemos nos Gasherbrums.
Olhando um pouco mais para trás, recordo que em 2008 voltamos daquele mesmo lugar, e apesar de não trazermos cumes, sempre disse que vivemos uma grande aventura. Recordo-me que ao deixar o campo base, olhei para trás e sorvi a imagem pensando que um dia iria voltar àquele lugar remoto. Voltei com o sentimento de tempo aproveitado, de grande aprendizagem de como estar na montanha e com a certeza de que me conhecia um pouco melhor. Voltei com um sentimento pleno de felicidade.
Em 2008, pela primeira vez pisei uma linha em que não havia mais ninguém. Éramos apenas nós, eu e o Paulo. A montanha tornou-se maior, o (falso) conforto psicológico de uma via mais povoada e preparada, deu lugar ao genuíno sentimento da mais pura aventura. Eu e o Paulo unidos por uma corda que naquela imensidão não era mais do que uma linha fina, delgada e frágil. Mas essa linha que fisicamente era quase invisível, representava a nossa vontade de viver aquele sonho juntos. Aquela corda era o símbolo da partilha da actividade em que ambos colocávamos todas as nossas forças. Eu, o Paulo e a montanha, nada mais interferia na nossa aventura. Vivemos os momentos de alma pura e aberta. Todos os instantes, de alegria, de dúvidas, de medo…todos os segundos reflectiam o nosso ESTAR na montanha. Para além do trio Daniela, Paulo, montanha, nada mais existia ou importava. Estávamos ali a viver o presente que tínhamos escolhido.
Este ano, quando chegamos ao campo base, invadiu-nos o sentimento de que estávamos num lugar a que pertencíamos. Parecia que tínhamos deixado o glaciar há alguns dias, tudo era muito familiar. Tínhamos a sensação de que não teria passado um ano. Chegámos cheios de esperanças, com planos de novamente tentar vias despovoadas, em que as ascensões dependessem inteiramente de nós, da cooperação entre dois pontinhos que seriamos naquelas imensas montanhas. A vida de campo base era forçosamente partilhada com muitas outras pessoas, mas as vias que sonhávamos escalar eram somente nossas. Queríamos sentir novamente que estávamos nós e a montanha. A forma que escolhemos para escalar, poderia não ser suficiente para chegar ao cume, mas era essa forma que valorizávamos, muito mais do que aquele ponto mais alto, que este ano ficou ainda mais longe de nós.
A nossa primeira tentativa ao Gasherbrum VI (7004 m), encerrou todo este sentir de montanha. Decidimos de início não partilhar publicamente esta ideia porque era o nosso sonho privado…íntimo. No dia que escalamos os 800m de face de neve e gelo do GVI (até aos 6400 metros, aproximadamente), tive oportunidade de aplicar muito do que tinha aprendido no ano anterior. Escalava com mais fluidez, num terreno mais técnico. Sentia segurança (ou controlava o medo?!) mesmo quando me deparava com pontos de protecção precários. Em poucas palavras, desfrutava ainda mais. Desfrutava do prazer daquela escalada, não só pela escalada em si, mas também porque partilhava com o Paulo um sonho ainda maior do que o de 2008. Estávamos a calcar terreno completamente virgem, numa montanha em que o cume nunca tinha sido pisado! A linha que nos unia em 2008, muito mais forte do que uma corda, tinha-se consolidado ainda mais em 2009. No entanto, as forças do universo não quiseram mais uma vez deixar-nos continuar até aquele cume intocado. Estávamos a cerca de 60m da aresta que nos levaria ao cume, convencidos de que o pior estava já para trás, quando o terreno empinou e as condições do terreno mudaram. Eu assegurava o Paulo, mas os meus olhos tentavam visualizar uma passagem por entre as enormes cornijas penduradas mesmo por cima das nossas cabeças (diga-se que de cotas muuuuuuiiiitooo inferiores, as ditas cornijas parecem quase inexistentes). Tentar eu tentava, mas a passagem permaneceu escondida dos meus olhos. Mas também não teve importância, porque não conseguimos superar aqueles infames 60 metrinhos! A certa altura, o Paulo capta a minha atenção: pendurado numa pendente de 70º de gelo, olha para baixo e diz-me que está com medo de subir mais. A neve que o envolvia não permitia qualquer tipo de protecção e uma queda naquele local poderia ser fatal para os dois, já que a reunião não estava montada para uma queda séria e entre os dois não existia ainda qualquer ponto de protecção. Maricas! Vai para cima! Ainda não estamos prontos para desistir!, berrava eu a plenos pulmões sem dar muita atenção ao que estava a acontecer 4 metros acima da minha cabeça. Não dá! Não há sítio para proteger, a neve está uma m…. Simultaneamente, em forma de teste, o Paulo apercebe-se ainda mais da situação quando o seu piolet trespassa com facilidade um troço de neve vertical…em pó! Sim, neve vertical em pó! Estávamos no centro de uma flute em que as paredes laterais não ofereciam consistência. Só aí percebi o porquê do medo. Deeeeesce!. Ainda pensei em dormir por ali, na esperança de encontrarmos uma solução para aquele mas, a inclinação do terreno, a juntar ao perigo de sermos fulminados por algum dos calhaus que de vez em quando rolavam pela face, obrigaram-nos a admitir que a única opção que realmente tínhamos era descer…desistir! Assim, à pior hora do dia, aí pela uma da tarde, iniciamos uma descida complicada, destrepes em terreno inclinado com neve instável, rapeis em abalakovs (pontes no gelo) precários, rapeis num só piton…enfim…um verdadeiro teste aos nossos nervos…mas passámos! Após 20h de actividade, estávamos de regresso à nossa tenda no glaciar.
Nesta aventura, estávamos alheios a muito do que ia condicionar o nosso sentir acerca desta expedição e estávamos longe de imaginar o esforço mental a que iríamos ser sujeitos.
Até então, o prazer que retirávamos das montanhas, do ambiente que nos envolvia, das boas pessoas que aos poucos íamos conhecendo, fazia-nos superar as dificuldades que enfrentávamos no campo base, onde passávamos a maior parte do tempo e por isso constituía uma boa parte da expedição.
O guia que tínhamos, encarregue de organizar e manter o bem-estar no nosso campo base, começava a ser uma verdadeira fonte de problemas. Desde o primeiro dia que se refugiava entre a preguiça e as mentiras, para gastar o mínimo de energia no que deveria ser o seu trabalho durante cerca de 40 dias. Com o passar do tempo, a permanência no campo base era cada vez mais desconfortável, mas as adversas condições meteorológicas não nos permitiam voos mais altos.
A juntar ao dito guia, tínhamos um elemento no grupo de difícil convivência, e que veio a revelar-se num mentiroso e num ladrão (sim, num mentiroso e num ladrão! Com provas dadas de ambos os adjectivos!).
No dia 20 de Julho, já tínhamos claro que não teríamos condições nesta época de concretizar os nossos maiores sonhos. As condições que encontramos no GVI e que nos fizeram desistir, empurraram-nos para o GII. Nesta montanha, devido à grande quantidade de neve que existia a cotas superiores, havia apenas uma hipótese viável para a ascensão tentar a via normal da montanha. A via que tínhamos planeado, o Esporão dos Franceses, possuía na sua parte superior uma grande extensão com inclinação diminuta, o que fazia supor que iríamos encontrar neve até… aos joelhos? À cintura? Ao pescoço?? Intransponível, para o esforço de apenas duas pessoas. No dia 21 chegamos ao campo 1 com ideias de tentar o cume, mas no final desse mesmo dia cruzamos o extenso glaciar regressando ao campo base, na tentativa de organizar um resgate. Um amigo espanhol dado como morto no dia anterior, encontrava-se vivo a grande altitude. Tristemente, este amigo, Luis Barbero, descansa hoje no GII.
Tudo o que se passou como consequência deste acontecimento condicionou os sentimentos relativos a esta expedição. Eu e o Paulo abandonámos a nossa hipótese de tentar o cume do GII, para tentar organizar o resgate. Foi com tristeza que no campo base nos deparámos com as dificuldades impostas por quem não quer fazer grandes esforços para ajudar.
O pesar da morte, mesclado com o sentimento de raiva…de espanto, de decepção induzido pelas atitudes dos que pouca vontade tiveram para ajudar, condicionaram o resto da expedição e o sentimento global que ficou desta experiência de 2009. Não tivemos força mental para tentar novamente escalar o GII, esta montanha ficou imediatamente posta de parte. Mas o verdadeiramente triste, foi a confirmação do que já pensávamos mas nunca tínhamos verdadeiramente experimentado: nas montanhas grandes, onde há muita gente, há sempre quem valorize mais o cume que tudo o resto. Consciente ou inconscientemente, estes refugiam-se em desculpas para não terem de ajudar, tentando sempre que tal atitude não transpareça para a comunidade escaladora… é assim a mente humana. Mas quem está lá, vê e percebe. Percebe e decepciona-se. Decepciona-se e não esquece. Há quem encontre sempre energias para tentar cume, mas estranhamente não encontre para tentar ajudar. Há uma ambição desmedida e a vida (dos outros)… passa muitas vezes para segundo plano.
Sempre que há muita gente, há sempre alguns que olham apenas para o seu umbigo e esquecem-se que um dia, pode ser o seu umbigo a pedir ajuda.
Este sentimento de decepção com a natureza humana, mistura-se ainda hoje com a imagem que recordo de dia 21 de Julho à noite. Minutos antes de eu e o Paulo descermos ao campo base, a luz do frontal de Luis piscava ainda aos 7700m e das tendas do campo 1 emitiam-se sinais luminosos que imagino que lhe davam uma réstia de esperança. Uns minutos depois de abandonarmos o campo 1, olhei para trás e o azul-escuro da noite era um vasto manto que cobria a montanha. De luz, apenas as estrelas brilhavam no céu, indiferentes a tudo o que se estava a passar. O campo 1 tinha adormecido e Luis não emitia mais nenhum sinal. Não sei se olhava para baixo sem a luz da esperança, se tinha também adormecido, ou se tinha adormecido para sempre. O Paulo olhou também para trás e fez os últimos sinais de luz com o seu frontal… desta não obteve resposta. A luz de Luis não mais brilhou.
Pouco antes de abandonarmos de vez o campo base, decidimos fazer nova tentativa ao GVI, desta vez pela gigantesca face que se situa mesmo em frente ao campo base. Pretendíamos escalar os cerca de 2000m de face que seguem até à aresta e desembocam relativamente perto do cume. Uma via mais directa, mas mais complicada, não só pelo seu comprimento e inclinação, mas também pelos perigos de avalanche. A tentativa não durou muito. Após passarmos os enormes debris de avalanches na base da vertente (com blocos de gelo que nos davam pela cintura), pouco depois de entrarmos na face, pelas 3 da manhã escutávamos o correr de água mesmo por debaixo da placa de neve/gelo onde nos encontrávamos. O som da água fazia prever que as condições do terreno piorassem demasiado quando o sol batesse na face, lá pelas 8 da manhã, o que poderia comprometer a descida (queríamos descer, mas controladamente, evitando recorrer à força da gravidade!). Assim, sem pensar demasiado, decidimos abandonar essa tentativa pouco depois de a iniciarmos. Confesso que o nervoso miudinho de estarmos em terreno bastante avalanchoso nos roeu os ossos até sairmos do alcance dos debris.
No dia 4 de Agosto, deixei novamente o campo base, mas desta não olhei para trás. Não senti que voltaria à moreia daquele glaciar e desejava não estar ali. Desejava cair nos braços da minha família e não deixar os braços do Paulo. Gasherdreams ficou para trás mas a corda que nos une, está mais forte. Estou segura que será a linha vital de muitas outras aventuras.