A cruz, os degraus e o Pico Paraná

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Passado um ano do devastador incêndio que consumiu a vegetação nas encostas do Getúlio e do Caratuva e quase isto da polêmica retirada de alguns degraus na trilha de acesso ao Pico Paraná retornei no sábado, 24 de outubro, a estas paragens com olhos críticos para avaliar mudanças na paisagem e no comportamento das pessoas que usufruem da paz destas montanhas.


Comemoramos no cume os 42 anos da boa vida do Paulo Marinho e suas 35 ascensões, muitas das quais participei, com suco em pó, um pacotinho de salgadinho e outro de amendoim japonês. A humildade do cardápio foi compensada pela majestade do restaurante e o Criador nos presenteou novamente com um visual esplendido, apesar do dia nublado e das fortes rajadas de vento que insistiam em nos despachar voando para dentro do cânion do Rio Cotia, 1700 metros abaixo.

Partimos da fazenda nas primeiras horas da manhã com céu azul e temperatura elevada, mas as nuvens nos providenciaram algum refresco assim que atingimos as partes mais elevadas do Getúlio que ainda exibe uma quantidade imensa de esqueletos carbonizados de uma vegetação que nos últimos 20 anos vi se formar depois de outra grande queimada.

A boa notícia é que por ali a natureza se recupera forte e rapidamente. O capim preencheu todas as encostas com as flores da primavera e as Quaresmeiras brotam de seus troncos chamuscados. Em 20 anos estará novamente como esta geração a conheceu, mas o Caratuva não se recupera com tanta facilidade e ainda parece um cemitério abandonado as samambaias exibindo suas pedras desnudas.

Neste trecho a trilha percorre um solo relativamente estável e a erosão não se agravou com as fortes e ininterruptas chuvas deste inverno atípico. Novamente estão nas encostas frágeis do Caratuva os maiores estragos. A erosão aprofundou a trilha, expôs ainda mais as raízes e derrubou muitas árvores abrindo grandes clarões na vegetação. O trânsito intenso também contribuiu para os estragos produzindo grandes poças de lama e muitos desvios laterais que alargaram a trilha e descalçam novas árvores.

Nas encostas do Caratuva foram retirados os degraus em duas pedras, a primeira logo após a bica que voltou a apresentar-se como obstáculo aos menos persistentes e a segunda apenas facilitava a progressão numa aderência insignificante. Em ambas o tráfego tem procurado alternativas mais cômodas pelas laterais e o terreno se ressente deste impacto, mas nada de grave e o tempo se encarregará da cicatrização. Em muitos lugares (contei mais de oito) onde nunca houve degraus nem qualquer dificuldade aparente agora também apresentam largos desvios provocando novos e imensos lodaçais com grande erosão. O local mais afetado é a encosta que antecede o rio do A1 que desmoronou tombando a vegetação e expondo suas raízes.

A retirada dos degraus no Caratuva pouco influenciou na dinâmica da trilha que sofre cada vez mais com a inclemência do clima agravado pelo trânsito intenso em suas frágeis encostas.

No A1 encontramos tudo na mais perfeita ordem e um grande acampamento de mineiros (naturais de Minas Gerais) que realizariam o ataque ao cume nesta mesma tarde, mas foi no selado no final do Fio de Ligação que tivemos a maior surpresa. Ao iniciar a subida pelas pedras onde foram retirados o maior número de degraus é que encontramos abandonada na beira do barranco uma grande cruz de madeira pintada de branco. Esta pesada cruz passou por todos os obstáculos do caminho e só se deteve neste pequeno trepa-mato em função da falta de alguns degraus. O cume seria seu destino e sabe-se lá de que forma estaria fixada. Se estes degraus são totalmente desnecessários aos montanhistas que vencem o lance com botas de caminhada e mochilas cargueiras o mesmo não se pode dizer dos fanáticos religiosos que desistiram de seu intento logo no início.

Este trecho não apresenta nenhum vestígio de desvio na rota da trilha ou aumento da erosão nas encostas, mas foi guarnecido com uma perigosa e irresponsável corda fixa que rapidamente se deteriora pela ação do tempo e num futuro próximo certamente provocará alguma tragédia. Quem a instalou ou o clube que “adotou” a montanha que a retire ou conviva na consciência com suas futuras conseqüências.

Ao passar pelo local posamos para várias fotos com a cruz e depois devolvemos o artefato ao local onde o encontramos. Pena que o Camapuã não tenha a mesma sorte do Pico do Paraná. Lá recentemente instalaram uma capelinha executada com placas de granito polido para abrigar uma imagem de Nossa Senhora. Certamente o granito estaria melhor na pia da cozinha e a imagem no altar de alguma igreja, mas infelizmente existem pessoas que não compreendem a beleza destes santuários naturais onde Deus está representado por cada pedra, folha, inseto, rajada de vento ou gotícula d´água. Nestes locais demonstre humildade, não perturbe, não polua, não modifique nada. A suprema veneração é contemplar em oração e respeito a sua obra magnífica.

No A2 encontramos um grupo vindo de Londrina e guiado pelo Richard, que nos acompanhou ao Ciririca em março deste ano. O pessoal chegou ao cume no momento em que iniciamos o retorno e ficaram por lá para um pernoite que já prometia ser tumultuado. O céu já estava totalmente encoberto e o vento zunia temeroso anunciando a tempestade que despontava no horizonte. O cume está se recuperando rapidamente e fechando as grandes clareiras nas caratuvas. Até o velho bosteiro está completamente limpo e atestando pouco uso. É inquestionável que menos pessoas têm acampado no cume depois da retirada dos degraus.

Minha conclusão é que a trilha sofreu muito com as chuvas deste ano e a falta dos degraus não aumentou os pontos de erosão, mas em parte controlou as peregrinações religiosas. O Getúlio se regenera rapidamente e o Caratuva precisa de ajuda.

A meio caminho da fazenda encontramos o Natan que fazia um ataque solitário no final da tarde, talvez fugindo da Michele pra não apanhar por alguma coisa que as mulheres sempre acham que fizemos, e fui logo perguntando:
    – Sabe o que encontrei no final do Fio de Ligação?
    – Uma cruz – respondeu prontamente.
Notícia ruim se espalha rápido, mas a boa é que finalmente algumas mentes se iluminaram e neste mesmo dia se alcançou um consenso possibilitando a filiação dos “independentes” à federação. Boa principalmente para a federação que desta forma destrava as barreiras que a limitavam em apenas representar os clubes e abre as portas para um aumento qualitativo nos seus quadros, além dos ganhos em faturamento.

Rompe com limitações quantitativas porque a filiação via clubes já se encontra próxima do limite e os praticantes “independentes” não criam novos clubes nem se filiam aos existentes por economia. A razão deste distanciamento é conceitual e não econômica. Ganha a federação em qualidade porque dos “independentes” se exigirá apresentação e currículo mínimo, isto significa experiência comprovada. Os clubes são canais perfeitos para os iniciantes, mas dificilmente conseguem manter dentro de seus quadros os mais ousados e experientes. Também os “independentes” são maioria no esporte como bem comprovam as lojas especializadas em equipamentos de trekking e escaladas que nunca fechariam seus balanços atendendo somente os filiados a clubes.

Ganha o esporte porque retira dos clubes uma reserva de mercado e ganham os clubes porque isto os obrigarão a se atualizarem e caminhar em direção aos anseios destes esportistas. Os “independentes” não representam apenas a si próprios, há uma lógica coletiva na diversidade – é a maioria silenciosa – e aqueles que se filiarem a federação o farão por desejo de participação direta. O incêndio no Caratuva provou a força e a fibra desta maioria silenciosa que não se ausenta na hora da necessidade. A federação deu o primeiro passo no sentido de congregar esta força e alcançar a necessária representatividade, mas não pode ser o último.

Agora se torna necessário encontrar uma fórmula que viabilize a participação destas pessoas nas ações da federação. O sucesso desta iniciativa dependerá grandemente da capacidade de manter canais de comunicação abertos para receber sugestões e operar votações com total transparência e objetividade. O “independente” não aceita manipulação e percebe claramente quando está sendo usado como massa de manobra. Nem ao menos reclama, simplesmente se afasta. O sistema de representatividade deve refletir claramente o peso econômico, moral e quantitativo destes novos afiliados, sendo flexível o bastante para acomodar movimentações internas e mudanças no equilíbrio de forças.Também se tem que levar em conta a isometria no valor da contribuição anual.

Transparência, participação e objetividade são as palavras chaves para que o federado se sinta representado e estimulado neste processo que tem potencial para revolucionar o montanhismo no Paraná. Objetividade é orientar a Federação Paranaense de Montanhismo para representar o pensamento dos montanhistas do Paraná e todo montanhista, na essência, é ecologista, mas também reconhecer que o oposto raramente é verdadeiro.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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