Por Beatriz Azevedo – Cuca de Prata
Veja a primeira parte
Daqui pra frente torna-se uma rota de chão batido e começa o enrosco. A pequena vila, o maior lugarejo de Shigar Valley, é um lugar lindo, um oásis em meio à paisagem árida. Além de árvores frutíferas, nas propriedades plantam-se trigo e arroz. As casas são de adobe. O povo é muito simpático. Duas mulheres sorriem quando me vêem.
Após Shigar, atravessamos Churka e Hashupi e mais uma enfiada de tantos outros vilarejos, perto uns dos outros, durante uma boa parte do trajeto, até escassearem, por completo. Só verei novas povoações perto de Askole e, assim mesmo, do outro lado do rio Braldu. As propriedades são protegidas por muros de pedras, à semelhança dos nossos de taipa, cobertos por arbustos espinhentos, de modo a evitar a fuga de cabritos, ovelhas e mulas.
O Paquistão é um país agro-pastoril. Se achei a estrada Chillas-Skardu ruim, a de Skardu-Askole é de gemer de medo: escavada, precariamente, nas encostas das montanhas, é de terra, sinuosíssima e tão estreita que pra outro carro, vindo em sentido contrário, poder trafegar, um é obrigado a parar a fim de permitir a passagem do outro. O rio Braldu, apertado entre os contrafortes das montanhas, apresenta-se agressivo com inúmeras corredeiras, turbilhonando céleres mais abaixo.
O veículo agora é um Toyota 4×4. Vamos, Ali, eu e o motorista na frente. Atrás, na carroceria descoberta, vão alguns dos porters, contratados em Skardu, mais todo o equipamento necessário para os 12 dias de trekking. Lá pelas tantas, o motorista dá carona a uma jovem com uma criança de colo. Acompanha-os um homem que toma a criança dos braços da mulher e sobe na carroceria, enquanto ela vai conosco. Por isso, todos nos apertarmos bastante, afinal estamos em quatro na frente.
Depois de um tempo rodando, os três caroneiros descem diante duma vilazinha. Reecentamos a viagem até que o carro pára diante duma barreira onde há um posto do exército. E aí tem início o meu drama.
Meu primo achou por bem (realmente, provo na carne o famoso ditado o inferno está cheio de boas intenções) que eu não trouxesse meu passaporte, e, sim, uma cópia autenticada. Como a zona do Baltoro Glaciar é considerada área restrita, o policial-chefe, cumprindo seu dever, exige o documento original. Fazer o que se não o tenho comigo? Sou convidada a descer do carro e me levam a uma espécie de escritório. Bate, então, o desespero e começo a chorar….de raiva e tristeza. Mal consigo falar que porque aos soluços – since february I am planning this travel….buááááá”. Telefonemas são disparados pra Islamabad, e Tahir, o dono da Panoramic Pakistan, acionado por Ali, trata de resolver a situação. Falo também com meu primo (ele, aliás, não se mostra nem um pouquinho condoído com minha situação, pode?!!….arrrgh) e peço-lhe que entregue o passaporte a Tahir que providenciará a remessa do documento a Skardu, aonde devo retornar quando o trekking terminar. Me acalmo um pouco quando Ali dá a entender que Tahir, deus queira, conseguirá ajeitar o imbroglio. O solidário Ali, percebo, está com muita pena de mim. Sinto-me terrivelmente constrangida: eu, ali, chorando, tal qual um bebezinho indefeso….de 55 anos!! Não consigo acreditar no que está acontecendo. Puro pesadelo. O policial, muito educado, diz que me respeita e sei lá o que mais. Não consigo entender direito, estou muito nervosa, além do mais seu trôpego inglês – como ele próprio reconhece – não é dos melhores.
Lá pelas tantas, depois dum esforço danado pra entender o que estão tentando me dizer, mal acredito no que ouço: permitirão que eu prossiga a viagem! E reinicio a choradeira! Dessa vez, porém…..de alívio!
Finalmente, depois de uma hora e meia de tratativas entre Tahir com sei lá quem, sou liberada…..uuuufaaa!! Alá meu bom Alá, muito obrigadinha!!! Retomamos a viagem e, após uma meia hora, paramos num restaurante. A comida, simples, é bem saborosa. Embebo no molho da galinha o pão quentinho, um variante do chapati, o nan, uma delícia. Terminado o almoço, subimos no bravo toiotão e atravessamos uma ponte de madeira toda balouçante. Sinto um frio no estômago. Algumas mocinhas quando avistam o jipe viram os rostos escondendo-os. O motorista, um homem jovem e atraente, tem uma voz grave, linda. Quando passamos pelo lugarejo onde mora, ele pára perto dum grupo de menininhas, e uma delas aproxima-se do carro, com quem o rapaz entretém uma breve conversação, entregando-lhe uma nota de 10 rupias. A face da garotinha brilha de orgulho e contentamento com o presente. Ali, espontaneamente, confirma aquilo que eu intuíra: a menina é filha do motorista. Subitamente, o jipe estaca. Ali explica que houve um deslizamento de terra que despencou montanha abaixo, bloqueando a estrada.
Descemos do carro, os porters descarregam o equipamento e mantimentos, acondicionados em barris de plástico azul, prendendo-os a uma armação de metal que levam às costas. Feito isso, iniciamos a subida da encosta da montanha pra alcançarmos o outro lado da estrada onde vários jipes vindo de Askole já nos aguardam. Tudo é muito organizado! E o rio Braldu brame lá embaixo, indômito, espargindo em torvelhinhos sua espuma bege. Há, além de nossa expedição, uma outra com dez escaladores franco-iranianos. Conversando com o guia deles, fico sabendo que tentarão escalar o Broad Peak, um oito mil.
 ,Ficamos uns bons 45 minutos parados na estrada, sei lá o que esperando. Os porters me espiam enquanto escrevo. Ali, apressado, me chama, e lá vamos nós noutro jipe, este de cor verde, cujo motorista, igualmente, jovem, também é bom de braço. Põe fitas e fitas cassetes de música indiana, um barato!!
Após 1:30 de viagem, chegamos a Askole, o último lugarejo de Shigar Valley, rodeado de verdes plantações. Acampamos ao lado duma construção inacabada, e enquanto eles terminam de montar as barracas, aviso a Ali que vou dar uma banda pelo lugar. As mulheres daqui, nada tímidas, se aproximam e apontam pros meus brincos. Fazem sinais de que querem trocá-lo pelos seus colares. Entretanto, não permitem fotografias “no picture, no picture”, exclamam enquanto fazem gestos incisivos de negação com as mãos. Todas trabalham na lavoura. Usam trajes típicos e levam nas costas uns cestos de vime triangulares pra carregar os produtos.
São quase 20 horas e elas ainda estão nas lides campeiras. Uma delas aponta o saco. Quer que eu o carregue. Pego-o e sinto seu peso: em torno duns 20 kg. Nem consigo levantá-lo do chão. Com sinais, recuso. Ela insiste, eu faço que não com a cabeça. Com gestos, digo que ela é mais forte, e eu, fraca. Ela aponta o vegetal, dando a entender que sua força provém dali. Oferece-me uns talos. Provo, o gosto, ligeiramente amargo, não é de todo ruim. Lá pelas tantas, elas se tornam tão chatas que dou um esporro e gesticulo, mandando-as embora. Não demora muito, vêm umas crianças. Querem que eu as fotografe (o paquistanês, de um modo geral, exceto as mulheres – por imposição religiosa, é óbvio -, adora ser fotografado). Falo que não, estou meio enjoada de todos eles. Muito assédio. Agora entendo como se sente um pop star perseguido por papparazzis! Um dos guris, aborrecidíssimo, com minha recusa, pega uma pedra e faz que vai atirar em mim. Faço cara de braba e dou-lhe as costas. Nada acontece. Poxa, gentinha enfezada essa.
Durante o jantar, Niaz fica o tempo todo de pé, preocupado em saber se eu estou gostando de sua comida. Após a ceia, Ali e eu, sentamos em cadeiras, do lado de fora da barraca-refeitório – a temperatura amena convida -, enquanto pitamos um cigarrinho. A noite está linda, estreladíssima. Dentro já da barraca, acomodada pra dormir, escuto a conversa dos porters finalizando as arrumações no refeitório. Estou cansada embora não tenha caminhado nada. É que foram muitas as emoções!!