Trekking na Cordilheira de Huayhuash

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Fui obrigada a dormir, sexta-feira, em Guarulhos já que meu vôo pra Lima sairá sábado, às 8 e 30 da matina.


Por Beatriz Azevedo

Depois de 5 horas voando, chego às 14 horas e trato de acertar os ponteiros do relógio pro meio-dia, considerando a diferença de duas horas entre os fusos horário Brasil e Peru. Um cara, empunhando um cartaz com meu nome, aguarda-me no aeroporto. Embora paire alta umidade na atmosfera da capital peruana, chove pouquíssimo aqui, porque os Andes atuam como uma barreira impedindo a precipitação pluvial. Dessa forma, os cerros que a rodeiam são praticamente despidos de vegetação, fazendo com que Lima apresente uma feição árida. E há sempre uma névoa pairando no ar. Por isso, eu a classifico como uma cidade de semblante opaco. Sem charme apesar de estar à beira do Pacífico, motivo pelo qual prefiro passar de raspão por ela.

Sou levada até o terminal de Olivos, bairro pobre porém de intensa atividade comercial, onde pego o bus da Moviltours. Tanto aqui quanto no Chile, há o costume de se pegar os veículos nas sedes das empresas. O busão chega atrasado, culpando o motora o trânsito….também pudera, são 8 milhões de viventes! Às 14:10, ulálá, já estou refestelada no andar superior onde a visão é bem melhor do que no piso inferior. Não demora muito e uma rodomoça passa bandejas com almoço e bebidas. Durante 2 horas e meia rodamos pela Ruta Panamericana. Este sistema interligado de rodovias que une o Alasca à Patagônia (totaliza 48.000 km de extensão), aqui, na América do Sul, foi construído, em boa parte, à beira do Pacífico. Dos dois lados da estrada, há altas e calvas colinas mais lembrando gigantescas dunas. Pouca rocha aflora em sua superfície. Puro areião.

Em uma hora e meia de viagem, apenas a monotonia bege dos áridos cerros. A partir de Pasamayo, onde há, ao que parece, uma comunidade alternativa cujas casas apresentam bizarras formas cônicas (vi um cara, num alto dum morro, fazendo umas saudações apontando as mãos em direção ao céu), os cerros passam a ter cobertura vegetal embora tal colorido dure pouco. Logo as colinas retomam sua coloração bege.

O resto do trajeto deu-se sob noite cerrada e, portanto, nada consegui observar da paisagem. Chego em Huaraz às 21:20, sendo recebida por Sergio, dono da Nuestra Montaña, agência que contratei pela internete. A seu conselho, vou jantar na plaza dos Periodistas. Escolho, dentre os vários restaurantes localizados no quadrilátero, um de sugestivo nome Encuentro, onde aliás fiz meu ponto durante a permanência de 4 dias na cidade. Escolho uma truta à la plancha com legumes cozidas ao dente e uma salada mista, tudo muito gostosinho.

A temperatura fresca e a lua crescente são um convite a um passeio mas o cansaço pesa neste corpitcho e rumo sem hesitação pro Hotel Las Tejas. Aliás, este hotel é um capítulo à parte. Tão frio quanto uma geladeira, encontra-se inacabado. Falta assento no vaso sanitário e uma parede que separa as escadas da garagem. Por ali, entra um vento polar. Ruinzinho mesmo. E a porta do estabelecimento é trancada toda vez que o único recepcionista, um gentil homúnculo, tem de arrumar os quartos durante o dia. Quase tive um chilique, quando, no dia seguinte, apertada pra fazer xixi, vinda da rua, dou com a porta fechada. Fiz discurso, sacudindo, energicamente, o dedo indicador, e o homenzinho, pasmem, esboçou um quase imperceptível sorrisinho. E nada respondeu, limitou-se apenas a escutar (será que ele não entendeu direito meu portunhol?) E eu até hoje, por deus, não entendi seu sorrisinho (ah, e que havia algo de maroto naquele arrepanhar de lábios, ah, isso tinha!!) Contudo, justiça seja feita numa coisa, a internete é bem rápida!

Trekking cultural

Como o hotel não serve café da manhã, descubro uma confeitaria (pastelaria D’Karla) a meia quadra de distância. Abre às 6 e cerra às 22 horas. Há quitutes deliciosos, destacando-se os iogurtes com frutas e empanadas de carne. Vale a pena provar também o pão, sempre crocante, com queijo serrano. O dia está quente tanto que uso blusa de manga curta (já à noite esfria, exigindo agasalho) e o céu despejado de nuvens.

Huaraz, situada a 3.090 m, localiza-se no Callejón del Huayllas, pequeno vale espremido entre as cordilheiras Negra e Blanca, ramificações da Cordilheira dos Andes. A cidade e seus arredores são irrigadas por cinco rios, destacando-se o Santa por sua extensão e larga bacia de captação, cujo leito flui entre as duas cordilheiras, desembocando no Pacífico. De um lado a Cordilheira Negra, à oeste de Huaraz, doutro a Blanca, situada à leste da cidade. O contraste entre as duas cordilheiras é preto no branco, literalmente.

Enquanto a primeira deve seu nome à coloração escura de suas rochas e a pouca quantidade de nevados porque não é alta o suficiente para mantê-los, a segunda é um deslumbre de brancura, exibindo impressionantes cerros toldados de neve cuja atração máxima é o Nevado Huascaran, o mais alto do Peru, com 6.768 m.

Começo meu processo de aclimatação com um pequeno trekking de 3 horas, guiada pelo guia Saul com o objetivo de visitar o sítio arqueológico Ichic Willkawaian (casa pequena do neto, em quechua). Pequenas construções quadradas feitas de pedra, as chullpas, escuras e de pé direito baixíssimo, obrigam a gente a andar meio agachada. Chama minha atenção um lindo nevado, o Cashan (significa espinha em quéchua) com seus cumes leste e oeste apontando à distância. No departamento de Ancash, do qual Huaraz é a capital, há muitos vestígios de velhas culturas pré-incas, destacando-se a cultura Chavin, a mais antiga de todas que se impôs durante quase mil anos.

Mas o que me atrai mesmo são as flores (na outra encarnação, quero ser botânica) que colorem os campos. Uma, em especial, destaca-se devido à linda tonalidade arroxeada e delicada fragrância doce que exala. Pertence à família das lupinus e sua semente, chamada chocho (formato de ervilha embora de coloração branca), come-se temperada com salsa, tomate e cebola. Deve tal legume, entretanto, ser posto, durante três dias de molho, pra perder o forte ressaibo amargo (culinária também é cultura).

Retorna-se, descendo uma estradinha um pouco mais exigente que a da ida porque se trata duma ladeira bem inclinada e arenosa. Escorrego algumas vezes enquanto desço, mas nada, ufa, que me leve ao chão! De repente, numa curva da trilha, surge, bem a minha frente, o esplendor branco do nevado Huascaran com seus cumes norte e sul banhados pelo sol do início da tarde. Como é lindo e imponente. Os peruanos têm motivos de sobra pra se sentirem orgulhosos de tal colosso! O passeio finda nas termas de Monterrey, um balneário com piscinas e duchas de águas calientes. O lugar está cheio de gente! Também pudera, é domingo. Desisto de entrar, sou nem um pouco chegada em aglomerações, ainda mais as domingueiras. Pego, então, uma van já que não tô afim de encarar na pernada os 7 km até Huaraz (tá um sol danado de forte), e pago a modesta quantia de 1 sol (60 centavos) à mulher do motorista que recolhe o dinheiro sentada no interior do veículo.

Chego na cidade e, como já são 15 horas, vou direto ao restaurante Encuentro onde me sento a uma mesa na esplanada em frente. Um pisco sour enquanto espero a comida que ninguém é de ferro. Ô driquezinho bom esse! A sorridente garçonete traz uma salada mista de alface, espinafre, cenoura, tomate, cubitos de queijo, brocólis e abacate, regada com vinagreta de iogurte, acompanhada por presunto serrano ladeado por fatias de cebola roxa e pão bem quentinho.

Vejo chegar Oskar, Ana e Marcos que fizeram juntos comigo o passeio. O casal de bascos e o baiano vêm ao meu encontro, e acabamos almoçando todos juntos. Oskar pede um prato típico, Pachamanca serrana, que consiste num cozido de tamales (vem a ser a pamonha peruana), camote (batata doce de cor fortemente alaranjada), habas (um tipo de ervilha), okas (tubérculo pequeno cujo formato lembra uma minicenoura de sabor adocicado) e três variedades de carnes, servidas numa panela de barro, de sobremesa, humita, a pamonha doce deles. Estou no céu: boa companhia, comida gostosa e curtindo uma cultura diferente e pra lá de interessante. E viva o Peru!

Macashca

Faço meu desjejum na Pastelaria D’Karla antes de iniciar outro pequeno trekking pela Cordilheira Blanca.

Começamos o passeio em frente ao cemitério onde desembarcamos dum táxi, eu, Arantza, basca, 35 anos, que vai fazer parte de meu grupo no trekking através da Cordilheira Huayhuash, e Richard, nosso guia, com 18 aninhos, estudante de turismo.

O céu de brigadeiro! Uma beleza o tempo aqui em Huaraz, nada a reclamar, quente durante o dia, sem vento, esfriando à noite ma non troppo. A trilha é fácil sem grandes subidas e durante o trajeto, alguns nevados chamam minha atenção, destacando-se o de Cojup e a linda quebrada de Churup, sempre se sobressaindo o onipresente Huascaran. A paisagem é muito mais linda do que a de ontem, não resta dúvida. e depois de duas de caminhada, sentamos na relva e fazemos um lanche. Richardi oferece-nos um cereal, o kiwicha. A aparência é de isopor mas o gosto é muiiiitooo bom. Lembra pipoca doce. Arantza revela-se muito boa companhia, esperta e engraçada demais. Está esperando seu novio, Juan, que chegará hoje à noite. Espalhadas pelos campos, diminutas choças feitas de ichu (espécie de capim), assemelham-se, por seu formato cônico, aos chapéus usados pelos chineses. Servem de abrigo aos pastores em suas lides com os rebanhos de ovelhas.

Um pouco antes de chegarmos a Macashca, ponto final de nossa caminhada, passamos por um rio onde uma mulher lava roupas num córrego. Disfarçadamente, filmo-a. Tem de ser na camufla porque raramente as mulheres indígenas permitem. Há pouco, uma velha me jogou água, repelindo minhas investidas em tentar fotografá-la. Interessante isso, no Paquistão, as mulheres também se recusaram a ser fotografadas! Enquanto naquele país asiático, os motivos que as impedem são o machismo religioso, responsável por reprimir certas vaidades femininas, aqui a mulher responde sozinha pela sua negativa, numa clara demonstração de preservação de sua privacidade.

Já os homens e crianças em ambos os países não se importam nadica de nada. E posam bem pimpões quando instados a tal! Na vila de Macashca, não há muito o que ver. Embora pequeno, o pueblito exibe sua pracinha onde em seu entorno situam-se a igrejinha branca com dois campanários e casitas simples de adobe com singelos balcões de madeira. E nem precisa de mais porque embeleza o lugarejo o lindo nevado Huamashraju, dominando a paisagem. Que cenário invejável têm seus moradores! Sentados no chão, esperamos a van que nos levará de volta Huaraz.

Embarcamos no veículo onde se amontoam pessoas e fardos de legumes, verduras e alfafa. Enquanto dura a curta e sacolejante viagem até Huaraz, dois pequenos sentados ao meu lado, olhan, curiosos, pra mim. Quando eu os miro, eles viram os rostinhos, bem sujos, aliás, encabulados. Mas logo voltam a me encarar. Ficamos nesse joguinho até descerem do carro.

Arantza e eu, super enturmadas, decidimos almoçar no restaurante Huaraz Querido, localizado no Parque Internacional de la Amistad, a duas quadras da Plaza de Armas. O lugar é “abastado” se comparado à pobreza e modéstia do resto da cidade. Casas com reboco, pintadas, revelam um certo apuro arquitetônico. Um supermercado, bem maneiro, em frente à praça, exibe um sortimento de variadas mercadorias. O restaurante, especializado em ceviche, está vazio. Também, já são 5 da tarde. A simpática garçonete serve, como aperitivo, leche de tigre. Esta bebida é feita com “sustância de pescado” (caldo preparado com cabeça e esqueleto de peixe), temperado com limão, aji, salsa, coentro, sal e uma pinga de leite. Pedimos, de entrada, um ceviche de peixe e mariscos, acompanhado por yuca (aipim) e camote (batata), esta última sempre presente nesse tipo de prato por fazer um contraponto doce ao sabor mais ácido da marinada. E, pra derrubar em definitivo nossa fome, comemos ainda um picante de calamares. Nem deu pro postre, de tanto que nos empanturramos, eu e Arantza.

Como estou a fim de comprar umas roupitchas, rumamos, Arantza e eu até a Tatoo, loja especializada em roupas de montanhismo. Qual não é minha surpresa quando um cara, que está escolhendo umas meias, fala em português comigo. Foi aquela alegria ruidosa, bem à brasileira. Apresentamo-nos e descubro que ele, jovem muito simpático, é David Marski, a quem eu conhecia de nome do site Alta Montanha. Banquei a tiete e arrastei o escalador paulista pra tirar fotos na pracinha em frente à loja.

Veio a Huaraz, me conta, liderando uma expedição em que participam mais três rapazes, que só riem e nada falam. Vão tentar escalar vários cerros da Cordilheira Blanca, entre os quais o Huascaran. Despedimo-nos, e eu parto contente da vida. Tão bom encontrar gente da minha terra e poder descansar a língua falando o português. E viva o Brasil!

Continua…

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