Por Beatriz Azevedo
Conheça o trekking do Huayhuash no Rumos!
Leia a primeira parte do relato
Quando desço até o hall do hotel, sou apresentada a Juan, novio de Arantza. Magro, um pouco mais de 40 anos, conhece alguns países da América do Sul, já tendo escalado o Aconcágua, Ojos del Salado, entre outros. Tomamos o desjejum juntos na Pastelaria DKarla. Resolvo provar um iogurte (uma mania nacional esta bebida láctea) e escolho o de guanabana, trigostoso. Peço, ainda, um tostado de queijo serrano.
Decido não aceitar o convite do casal pra caminhar até Willkawaian, primeiro porque já o trilhei e, segundo, porque sinto um pouco de dor em meu joelho esquerdo. Era só o que faltava tal peça de meu corpo me incomodar durante o trekking que inicia depois de amanhã. E já vem do Brasil quando do trekking ao canion do Tajuva. Deve estar ressentido do esforço feito à época (é a artrose velha pegando neste corpitcho…..coisas da idade, fazer o quê!).
Resolvo então caminhar pelas calles, curtindo a balbúrdia da cidade. O que tem de táxi e chollos táxis é qualquer coisa. As buzinas dos veículos soam seus pipis a todo momento. Aqui, por supuesto, o buzinaço não é multado. Em certas passagens cobertas, que unem uma rua à outra, homens, sentados a pequenas mesas, batucam, em velhas máquinas de escrever manuais, cartas para os analfabetos. Cobram 3 soles por página. E assim ganham a vida.
A cidade é plana, com muitas construções sem reboco, deixando o tijolo à vista, não por charme, mas pra não pagarem imposto sobre as edificações….ahahaha, essa é boa!! Espertos esses peruanos, hein?!! A principal artéria da cidade – a avenida Luzuriaga – apresenta um comércio intenso, predominando lojas de fotografias (há uma ao lado da outra), de guloseimas, sorveterias (outra mania nacional) e farmácias, afora algumas casas de câmbio onde a variação do sol limita-se apenas a 1 centavo entre um e outro estabelecimento.
A sempre onipresente Plaza de Armas, com um chafariz ao centro, tem em seu entorno a catedral, ainda em fase de reconstrução, desde o terremoto que destruiu Huaraz, em 1970 (atingiu 7.8 na escala Richter), e matou praticamente todos seus habitantes. Huaraz, aliás, é premiada por catástrofes: em 1941, um fenomenal aluvião que despencou da Quebrada de Churup arrasou também com a cidade.
Dou uma banda ao redor do mercado e aproveito pra comprar folhas de coca que pretendo usar durante o trekking. Quando vou filmar uma banca de galinhas, o balconista faz um gesto que vai cortar minha garganta, e não era de brincadeira, não! Mesmo assim acho tal gesto hilário e sorrio à socapa. Decido almoçar no Amma y Tequila, situado no meu já conhecido Parque Ginebra.
O lugar, aconchegante, é decorado com espigas de milho penduradas nas paredes. Observo encantada que, enquanto no Brasil só há as de grão amarelo, aqui há de várias colorações: pretas (usada para fazer a chicha morada), amarelas, por supuesto, brancas e vermelhas. Os tamanhos do grãos variam dos bem miúdos até os graudões. A garçonete serve, , como aperitivo, pacchus, que vem a ser o grão de milho torrado. Usa-se para tanto um tipo de cancha (espiga) que não estoura em pipoca (palomita), conservando o grão intacto e crocante. Deliciosos de comer porque a gente pensa que são duros e, que nada, se dissolvem na boca! A dona do restaurante quando sabe do meu interesse neste cereal, ordena a uma empregada que vá comprá-lo no mercado. Assim trago pro Brasil 1/2 kg de milho!
Um cordeiro à la plancha com batatas fritas mais salada mista é minha escolha (não achei lá muito bom o prato, carne meio dura e batatas um tanto quanto gordurosas). E claro, uma taça de vinho. A amável dona do restaurante que trabalha no computador, sentada à mesa ao lado da minha, sugere um argentino porque “los peruanos non son buenos, salvo uno, pero muy caro. O máximo da hospitalidade, não é verdade? Um afago carinhoso sem toques. Esse Peru é do caralho!!
Enquanto espero o almoço (como sempre, almoço tarde, já lá vão há muito as três da tarde), leio, num jornal sensacionalista, comprado na rua, “El Men ( el diario que lucha por tus derechos), o rumorosíssimo caso das cantantes Alicia Delgado, vulgo Princesita del Folclore, e Abencia Meza, conhecida como Pistollita, devendo tal cognome ao hábito de carregar arma de fogo, ou, ainda, la Reina de Las Parranditas (Parranda é uma festa popular). Amantes, as duas viviam entre tapas e beijos, pois Abencia, quando tomava uns tragoléus, cagava Alicia a pau.
A Princesita foi assassinada e seu guarda-costas, César Mamanchura, suspeito de tê-la apunhalado, acusa, entretanto, Abencia de ser a mandante. Tanta a baixaria das envolvidas que a tal Abencia tem uma amiga, também, cantante, cujo sugestivo apelido é Mecânica del Folclore. Seu physique du rôle faz jus ao espírito de caminhoneira que encarna: cabelos curtos, jaqueta masculina de couro preto e enormes óculos escuros. Coisas do reino das sapatas peruanas.
Abencia, baixa e de carnes socadas, quando entrevistada num programa de TV, apresentou-se o tempo todo deitada e rodeada de parentes e amigos, temerosos de que tente se suicidar pois “Alicia me está llamando”, assegura La Pistollita com cara de canastrona infeliz. Quedas de pressão e desmaios fizeram com que Abencia fosse internada numa clínica no dia do enterro de Alicia (foi ontem). De todas as pessoas com quem comento a estória na cidade, nenhuma duvida de que Abencia seja a mandante, mas como explica uma balconista, placidamente, faltan pruebas.
Terminado o almoço, resolvo fazer um city tour e para tanto pego um chollo táxi motorizado (há os puxados por bicicleta) e dou então uma banda pela cidade. Lá pelas tantas o motora pára em frente a uma construção e me explica que ali há uma arena de toros. E eu pensando que só na Espanha houvesse esse esporte. Meu city tour foi tudo de bom, o lindo chollo táxi, barulhento e bem lento, permitiu que eu fotografasse e filmasse recantos de Huaraz não palmilhados se houvesse contratado um tour convencional. E minha impressão inicial de Huaraz confirma-se: embora seja uma cidade pobre e sem graça, eu gosto dela mesmo assim,ou, talvez, por causa disso!
Laguna Churup
Último dia de aclimatação em Huaraz. Assim, vamos fazer um passeio até a laguna Churup. O desnível a ser enfrentado é de 1.000 m. Estou reagindo muito bem à altitude desde que cheguei a Huaraz. Algumas dores de cabeça, facilmente debeladas com analgésicos e nada mais. Aliás, dizem que, quanto mais velho se é, mais fácil se torna a aclimatação. Pelo menos isso a meia-idade me deve, uai!!
Integra o grupo, além de Arantza e Juan, Milton, paulista, sessentão, que também fará o trekking de Huayhuash conosco. Percebo de cara que o japa é gente fina. Suas pálpebras caídas dão-lhe um olhar de permanente sonolência. Unem-se a nós, ainda, Enrique e Carmen, outro casal basco, também sessentões, super bem conservados. A mulher, com suas longas pernas, distancia-se do grupo e o marido segue-lhe as passadas.
A caminhada começa às 8:30, a partir de Llupa, pequeno povoado dedicado ao plantio de cereais e criação de ovelhas. As mulheres, com raras exceções, vestem-se com trajes típicos e, na cabeça, chapéus de feitios masculinos, cores neutras, copa alta, adornada com uma flor do mesmo tecido. Algumas o cobrem com um pano colorido. Cada região tem sua indumentária própria e aqui é usado esse tipo de chapéu. Seus lisos cabelos apresentam-se presos em uma ou duas tranças que caem compridas e finas até o início da lombar.
Retalhos douradas de plantações já maduras de trigo e cevada destacam-se em meio ao verde dos campos. E ao fundo os nevados de Huantsan e Rurec destacam-se no azulão dum céu limpinho de nuvens. O início do trekking até Pitec é fácil, dura duas horas. Descansamos um pouco, antes de continuarmos a caminhada. Já dá pra se avistar a quebrada de Quilcayhuanca com suas ásperas e escuras paredes de granito e a de Cojup, onde impera o nevado Ranrapalca (6.200m). Entre as duas quebradas, situa-se a laguna Churup.
A partir daqui a coisa complica porque o terreno se torna cada vez mais acidentado e íngreme num percurso de 465 m até a laguna. Arantza e Juan, quando percebem a subida que têm de enfrentar, desistem. E o motivo deve-se a um golpe à traição que Juan sofreu na região do cóccix, desferido por um carneiro mal-humorado, ontem, durante o passeio a Ichic Willkawaian. Queixa-se o coitado de sentir muchos dolores em mi culo.
Resolvo enfrentar os tais trepa-pedras. São quatro pequenos escalões, um deles com aclividade de 2º grau. Dão certo trabalho, em particular os dois últimos, pois em alguns trechos as águas congeladas de pequenos córregos tornam escorregadio o terreno, exigindo cuidado por onde se pisa. Atingimos, depois de alguns momentos tensos, a laguna de Churup cuja altitude beira os 4.450 m.
Como meu lanche, desfrutando, bem a frente, a temível parede norte do nevado Churup (5.495m), uma pendente com 80º de inclinação, motivo por que a ascensão se faz pela sua face sul. Nas águas verdes da laguna, nadam placidamente alguns patos silvestres. O céu, aqui em cima, coberto de nuvens cinzentas, aumenta a sensação de frio reforçada por um ventinho cortante que resolveu logo agora soprar…..merda! Detesto vento, arghhh. Em certos pontos da laguna, espessos limos verde claro jazem sob a água. Parece cabelo de punk.
Iniciamos então o descenso, situação mais temida por mim do que a subida. É então que per-ce-bo a bronca em que me meti, vendo a queda livre que me espera caso eu perca o equilíbrio e me estabaque lá embaixo! Alfredo, nosso guia, conseguiu uma corda, de modo que a amarra em nossas cinturas enquanto fica no alto, segurando-a até que alcancemos terra firme. Coisa mais querida esse guri! Funcionou como uma proteção fixa! Finalmente, os escalões são vencidos! Depois disso, só curtição, admirando as flores durante o trajeto até Llupa. Detecto um odor familiar, muito familiar, e logo descubro de onde vem: duma moita de…..macelas! Nunca imaginei encontrar essa erva aqui. E há aos montes tal arbusto cujo nome em quechua significa quesqui (sonoro né?).
No final do trekking, próximo a ao povoado, índias pastoreiam de volta aos currais ovelhas já que os rebanhos são levados pra pastar em locais mais afastados da aldeia. Presencio então um embate singular entre dois carneiros. O de pelagem escura desfere testadas desapiedadas no companheiro que pouco reage diante da fúria do outro. As índias riem da cena e só intervém quando vêem que a briga é séria. E mesmo assim o invocado carneiro preto volta a dar marradas no seu já vencido opositor. Coisa de macho brigando pela liderança do bando. Ou talvez se exibindo pruma ovelha que ele está no bico. Já são 17:00 e os moradores que se encontravam, até então, nos campos trabalhando, retornam pros seus lares. Tão bucólico o Peru.
Luar em Matacancha
O microônibus que nos levará a Matacancha, abarrotado de bagagens e víveres de todo gênero, (com direito até a galinhas vivas, espremidas, as pobres, em caixotes de papelão), não comporta toda carga em seu bageiro. Dessa forma, muita da tralha é acomodada no tejadilho do veículo e ainda em seu interior.
Além do meu grupo e do casal Enrique e Carmen, cujo trekking será de apenas 7 dias, integram a expedição uma turma, composta por 7 homens e 2 mulheres, todos igualmente sessentões e bascos. Aliás, uma invasão desse povo no Peru. Somos de la Euska Herria, corrigem aborrecidos quando os confundimos com espanhóis. Arantza e Juan são os mais jovens da tropa, seguidos por esta que vos fala, com seus já robustos 56 aninhos. Os três grupos pertencem a mesma agência – Nuestra Montaña – e a equipe de apoio compõe-se de 2 cocineros, um ajudante de cozinha e 4 arrieros, conduzindo 21 mulas e dois cavalos para resgate. Quatro guias, incluído aí Sergio, o dono da agência.
Partimos de Huaraz às 10:00 num sobe e desce constante através dos altos cerros que compõem as cordilheiras Blanca e Huallanca. O traçado seguro da rodovia rasga em largas curvas os flancos das montanhas onde se espalham em assimétricos terraços propriedades rurais dedicadas ao plantio das numerosas espécies de cereais (35 variedades de milho) e tubérculos existentes no país (só de batatas há, pasmem, 4 mil tipos de batatas catalogadas).
O Peru, preservando sua vocação agro-pastoril, mantém, assim, o forte elo com seus remotos ascendentes indígenas. Pequenos vilarejos, surgidos em função das atividades de mineração, localizam-se estrategicamente à beira da rodovia. Após duas horas de viagem, já se avistam os nevados da cordilheira Huayhuash, situada 50 km ao sul da cordilheira Blanca, cuja extensão perfaz somente 30 km de norte a sul. Ós de exclamações são ouvidos constantemente e os obturadores das máquinas não cessam de ser disparados durante quase todo o trajeto.
Fazemos uma parada em Huallanca às 13:45 para almoço. Encravada entre morros atapetados de grama, o lugarejo, embora pobre, exibe, como toda cidade sul americana de origem espanhola que se preze, a infalível Plaza de Armas em cujo entorno se dispõem a igreja e as melhores residências da cidade, encimadas no andar superior pelos tradicionais balcões de madeira. Infelizmente, a tradicional sopa de cabeça de ovelha, prato típico peruano, anunciado no menu afixado num cartaz à entrada do restaurante Milán, não está disponível. Chateada em não poder provar tal petisco, resigno-me e peço à paciente mamacita, proprietária do estabelecimento, truta cujo acompanhamento é salada, arroz e purê feito duma vagem semelhante à ervilha.
Aliás, desde que saímos de Huaraz, o cenário, de tão imponente, não permite que se desgrude o olho da janela. Um suceder vertiginoso de montanhas e, de repente, um que outro nevado desponta dentre as veludosas e verdejantes encostas. A estrada, a partir de Huallanca, é de chão batido, estreita e sinuosa demais. Lembra-me um pouco aquelas enfrentadas no Paquistão ano passado.
Às 16:20, chegamos em Matacancha, situada a 4.180 m de altitude, ponto de partida do trekking. Já lá se encontram outros grupos com suas barracas montadas. Estamos num vale de onde é possível avistar-se os nevados Ninashanca e Rondoy. Ao contrário de Huascaran que é Parque Nacional desde 1978, Huayhuash é apenas zona reservada, gozando, assim, de menos recurso e proteção oficiais.
É servida, na barraca-refeitório (além desta, há a barraca-cozinha), chá e café e, dentro duma cumbuca, folhas de coca pra quem quiser usá-las. O céu, até então limpo, começa a se cobrir de grossas nuvens, e não tarda muito despenca uma chuva forte, graças a Deus, ou melhor, a São Pedro, de curta duração. Quando vou pro refeitório, dou de cara com uma linda lua, desfilando branquela seu já robusto crescente num céu crivado de estrelas. Durante a refeição (trutas), Sergio conta que o Yerupajá (6.634 m) – o segundo pico mais alto do Peru -, desde 2001, quando Quintero solou-o na face oeste, nunca mais foi escalado. É perigosíssimo devido não à verticalidade de suas paredes (apenas 60º de inclinação), e sim por causa das avalanches que despencam de suas encostas. Já sua face leste, embora ocorram menos avalanches, por ser mais vertical, é mais exigente, técnica porque envolve escalada em rocha e gelo.
Segundo Sergio, a face leste das montanhas de Huayhuash tem menos precipitação de neve que a oeste. Outra montanha famosa desta cordilheira é o Siula cuja face oeste nunca mais foi escalada depois das desventuras protagonizadas por Joe Simpson e Simon Yates. Enquanto me encaminho pra minha barraca, vejo ao sul montanhas cobertas de neve. Um esplendor branco realçado pela luz do luar. Estou como gosto: em meio à natureza rodeada de silêncio e formosura! E pra completar minha felicidade, vou dormir sozinha na barraca, ulálálá!! Coisa boa, não dividi-la com ninguém. Prefiro assim…