Por
Beatriz Azevedo
Conheça o
trekking do Huayhuash no Rumos!
Leia a segunda parte do relato
Ao amanhecer, a temperatura que despencara, durante a noite, abaixo de 0º C, deixa o solo e os tetos das barracas branquinhos de neve. Hoje é o primeiro dia do trekking e estou ansiosa e excitada com o que me aguarda. Meus pés e mãos doem de tão gelados. Ainda há pouco no refeitório, comi de luvas, tão baixa é a sensação térmica. Finalmente, às 07:40, deixamos o acampamento Matacancha.
O grupelho dos nove bascos, liderados por um homem alto, de porte empinado e fartos cabelos brancos (tem toda pinta de general da banda), toma a dianteira, seguidos de Enrique e Carmen. Nosso grupo é o lanterninha. Inicialmente, toma-se o rumo sul pra logo nos internarmos na zona leste da Cordilheira Huayhuash.
Embora em movimento, demoro quase uma hora pra aquecer pés e mãos tão intenso é o frio. O sol de inverno, reinando num céu limpinho de nuvens, não tem, contudo, força suficiente pra me aquecer. Em certos trechos da trilha, o solo encontra-se coberto de cristais de gelo. À medida que vamos subindo em direção ao Paso Cacananpunta, vejo o vale onde estávamos acampados se distanciar mais e mais até que, numa curva da trilha, some por completo.
A subida é bem puxada e Milton e Arantza param diversas vezes com ar cansado. Devem estar sentindo os efeitos da altitude. Resolvo não acompanhá-los nas paradinhas, e sigo em frente de modo a evitar que meu ritmo de caminhada seja quebrado. Encontro uma jovem inglesa de bochechas coradas que pra, minha surpresa, fala portunhol. Explica que aprendeu português na Bahia onde morou durante o tempo de permanência de seu visto. Obrigada a abandonar o país porque o prazo de validade vencera, pretende, depois , dum giro por alguns países da América do Sul, retornar à Salvador.
Uma subida áspera entre paredões de rocha meio azulada até o Paso Cacananpunta (4.700 m), onde chegamos às 10 horas. Paramos e comemos nossos lanches. Tanta comida servida que até dei algumas coisas pra Richardi. Afinal com 18 aninhos, nosso imberbe guia, ainda se encontra em idade de crescimento.
Avista-se do paso a laguna Roja cujo nome origina-se da cor avermelhada de suas águas. Bandos de mulas guiadas por arrieros passam por nós em passo célere. Depois da subida, uma descida até uma planície, mas como tudo que é bom dura pouco, nova subida bem difícil, avultando à direita uma muralha de gigantescos paredões de rocha. E surge, então, a magnífica face nordeste do nevado Jirishanca (6.094 m) com suas duas cumbres: a sul, mais alta, e a norte. Uma fina agulha rochosa, a Gasha Punta (espinho, em quechua), atrai minha atenção por seu formato fálico. Com certeza, lembra uma pica de pedra!
Paramos novamente para descansar e admirar a paisagem, antes de enfrentar outra descida, sucedendo-se novo ascenso. Já é visível o acampamento, lá embaixo, no vale. Um íngreme declive conduz, finalmente, até o pampa onde as águas de degelo formam uma pequena cascata. O rio Janka, cuja nascente é na laguna Mitucocha, serpenteia faceiro através da planície. Desistimos de ir até esta laguna, situada aos pés do Jirishanca, pois nosso pequeno grupo está sentindo as seis horas de dura caminhada cujo percurso foi de 7 km. A vegetação do pampa é bela: no terreno coberto de capim, crescem minúsculas flores brancas, amarelas, azuis e lilases. Chego ao acampamento Mitucocha às 13:45 e as tendas já estão montadas pois toda a equipagem carregada no lombo de mulas chegara bem antes da gente.
Aproveito o sol da tarde e lavo o rosto, pescoço e pés no rio. Isso basta pra minha higiene, afinal, faz só dois dias que estou sem tomar banho, portanto, ainda relativamente, limpinha. Reunimo-nos, eu, Arantza, Juan, Milton, mais Vivi, guia do grupo de 9 bascos, no gramado, e sentados ao sol, comemos pêssego, mandarina (bergamota), pistache, além de yookan – doce japonês, feito dum feijão especial – oferecido por Milton.
A tardinha cai e com ela vem uma chuvinha que inicia mansa, vira queda de gelo, e aumenta de intensidade porque percebo a vibração das gotas dágua batendo com força no teto da barraca. Aproveito e retomo a leitura do Pólo Sul, empacada desde minha viagem ao Paquistão. Abro a barraca e vejo depositados, na grama, montículos de gelo. O céu, totalmente, encoberto. Tanto o Jirishanca quanto o Rondoy e o Ninashanca, situados bem à frente da barraca, encontram-se velados por uma névoa, mal se percebendo suas paredes. Sergio já tinha nos avisado que o clima este ano não está lá dos melhores: bonito até metade da tarde quando então começa a chuva ou queda de neve.
Na janta, é servida galinha ensopada. Está trigostosa. Os jovens cozinheiros têm demonstrado boa mão pros temperos. Quando saio da barraca-refeitório, a noite surpreende: céu estrelado e temperatura menos fria que a de ontem. Oxalá, os prognósticos de Sergio em relação ao tempo se confirmem e o dia, amanhã, se comporte bem!
Paso Carhuac
Impossível dormir muito quando se acampa, o conforto não é o forte dos acampamentos. Eu, muito sem noção, só estou usando isolante e saco de dormir, nem lembrei de comprar um daqueles colchões infláveis. Daí não dá outra, acordo às 6 da matina.
O céu não está lá muito santo e observo uma penca de nuvens pesadas começando a se agrupar. Que não faça sol, até tolero, mas chover…. por favor, São Pedroca…por favorzito!!
A comida servida no desjejum é farta: salada de frutas, granola, torrada, mel, geléia de morango, leite em pó, chocolate, café e variados tipos de chás. Faço um capucino pra mim e sou imitada por Arantza. São servidas 4 refeições, porque, afora as três regulamentares, é oferecido, ainda, um lanchinho básico ao término das caminhadas.
Edurne, cuja tradução do basco significa neve (será pra fazer jus ao seu nome que Edurne Pasaban adora escalar nevados, hein?), aproxima-se. Vem se despedir porque retorna a Huaraz. Não segurou o tranco da caminhada de ontem, se dando conta de que tampouco agüentará os 9 dias que, ainda, há pela frente. Realmente, notável a baixa resistência física demonstrada pela velha senhora basca durante o dia de ontem. Sempre escoltada pela paciente Vivi, parava várias e diversas vezes. Digo-lhe as palavras de praxe numa hora dessas: que é valente em tomar tal decisão e pespego-lhe um beijo na bochecha. Monta num dos cavalos de resgate e acompanhada por Flavio, retorna a Matacancha onde pegará a van que chegará com novos trekkers à tarde. Penso com meus botões se o próximo não será Milton porque ontem o japa tava se arrastando nas subidas.
Saímos de Mitucocha às 7:40 e a trilha de 5 km é pra lá de fácil. O tempo está agradável, e depois duma hora de caminhada, paramos e retiramos um pouco das roupas porque está dando calor. Nem se sente o esforço da subida porque é suave os ascensos. Assim, facilmente, atingimos o Paso de Carhuac, situado a 4.650 m, de onde já se avistam as faces lestes do Siula e Carnicero. Magníficos estes dois nevados! Emociono-me ao ver o carrasco Siula que só não matou Simmons porque o cara é muiiiitoooo rabudo mesmo!
Cruzado o paso, o resto do caminho é praticamente um retão até atingirmos a laguna Carhuacocha cujas águas verdes são o resultado do degelo dos glaciares que pendem das encostas dos nevados Siula e Yerupaja. As es-tu-pen-das faces leste dos nevados Carnicero (5.960 m), Siula (6.344 m), Yerupaja (6.634 m), Yerupaja Chico (6.121 m), Jirishanca e Jirishanca Chico (5.446 m) pairam soberanas sobre a laguna. Siula e Yerupaja têm suas cumbres mais arredondadas se comparadas às dos Jirishanca cujos topos têm o formato de agulha.
Enrique, sentindo os efeitos da altitude, não passa nada bem. O coitado está com diarréia e é visível o esforço que faz pra caminhar. Um pouco antes do acampamento, passamos por uma casinha de adobe com teto de palha. Ao ar livre, um casal de velhos, sentado ao chão, separa batatas recém colhidas. Postas de carne de ovelha secam penduradas num varal. Em contraponto à pobreza da moradia, o luxuoso cenário dos seis esplêndidos nevados.
Chegamos ao acampamento Incahuain, situado às margens da laguna Carhuacocha às 12:40. Um solzinho gostoso aquece a atmosfera. Somos chamados por Richardi para o chá cujo acompanhamento são bolachas cream cracker com creme de abacate e azeitonas. Terminada a refeição, vamos, eu, Arantza e Vivi, tomar banho no rio. Encontramos um ponto onde há um pequeno poço e, lá entre gritinhos e risadas, entramos, nuas em pelo, na água gelada. Que ato de heroísmo o nosso!
Às 16:10, uma aquanieve começa a cair. Assim, tanto os bascos, apanhando sol enquanto contemplam o luxuoso cenário, quanto uma jovem enfiada dentro de um saco de dormir, lendo um livro, batem em retirada, e entram em suas barracas. Mas não dura muito o mau tempo, e assim que melhora, largo a leitura do Pólo Sul e vou até a outra ponta da laguna onde se localiza o acampamento Carhuacocha. O visual para fotos é bem melhor porque se tem uma visão frontal de suas águas verdes com os seis nevados ao fundo.
Uma nuvem cinza começa a encobrir os cerros e nova precipitação de aquanieve recomeça a cair. Retorno ao acampamento, rezando pra que não se transforme em chuva grossa. Enormes glaciares pendem do Siula e Yerupaja, e a cor azulada do gelo mal se entrevê já que borrifados por detritos arenosos. Vez por outra, ouve-se o retumbar de avalanches e, com um pouco de sorte, se enxerga a neve caindo montanha abaixo como se fosse farinha peneirada em massa de bolo.
Agora, 20:30, terminada a janta (sopa de legumes, macarrão e creme de chocolate), o céu encontra-se limpo e os nevados absolutamente livres das nuvens que os toldavam durante à tarde. A lua quase cheia os ilumina, realçando, num jogo de luz e sombra, a coloração branca da neve, depositada sobre as rochas escuras dos flancos e topos dos cerros. Uma paisagem espetacular esta do acampamento. Coisa boa que o frio, suportável, permite que eu aprecie com a porta da barraca aberta toda a formosura do Siula e uma parte do Yerupaja bem a minha frente!
Continua…