Por
Beatriz Azevedo
Leia a terceira parte do relato
Os nevados são perfeitamente visíveis no límpido céu azul desta manhã domingueira. Às 7:25, iniciamos nossa marcha, na que será a mais longa de todo o circuito: 12 km em 8 horas. Deixamos o acampamento Incahuain, localizado a 4.138 m, contornando a laguna Carhuacocha numa trilha sem maiores percalços.
Sou obrigada a fotografar o cenário criado pelo , reflexo dos nevados Yerupaja e Yerupaja Chico na água esverdeada da laguna. Tanta beleza é de tirar o fôlego. Talvez por isso nem sinta muito o cansaço provocado pela altitude. Estou em estado de graça. Quando dobramos à esquerda, já na finalera da laguna, percebo que ela é alimentada por um rio que desce do glaciar Carnicero, responsável, também, pela formação de mais três lagunas que se situam mais adiante. Ultrapassada a laguna Carhuacocha, rústicas casinhas de pedra com teto de capim têm como cenário luxuoso o nevado Jirishanca Chico. Ao lado de uma delas, encerradas, num curral circular de pedra, enfeitado por bandeirolas coloridas, ovelhas balem quando passamos. É tudo tão bucólico e tão grandioso!
Entramos, então, na quebrada Gangrajanca, formada à esquerda pelo cerro Yanacocha, e, à direita, pelos nevados Yerupaja, Yerupaja Chico, Siula e Carnicero, costeando a comprida e estreita laguna cujo nome é o mesmo da quebrada. Os freqüentes desmoronamento de neve do Siula fazem com que paremos para observá-los.
A visão dos nevados já não é mais frontal, e sim, lateral, à medida que nos internamos na quebrada Gangrajanca. O céu é de brigadeiro, embora a temperatura não seja das mais amenas. Também pudera, com tanto nevado não há sol que esquente muito estas plagas! Pela primeira vez, vejo turfas avermelhadas. Provavelmente tal coloração se deva ao óxido de ferro trazido pelas águas de degelo do nevado Carnicero, já que suas rochas têm, entre seus componentes, este metal.
Inicia-se, agora, uma subida por um dos flancos do cerro Yanacocha, forrado de capim cujos altos e duros talos são usados como forração nos tetos das casinhotas da região. O ascenso é lento porque a estreita ladeira, num zigue zague constante, é muiiitooo empinada. A paisagem compensa toda a extenuante , subida porque daqui de cima se avistam as lagunas Siula, separada por uma estreita faixa de terra da Laguna Niñococha ou Quesillococha cujas águas verde-esmeralda são estonteantes.
Aos pés da laguna, o extenso glaciar do nevado Carnicero donde jorra altíssima cascata. Seu caudal, quando penetra na laguna Quesillococha, deixa um rastro branco nas águas verdosas. Caminha-se, agora, por um terreno plano de pampa. Mas dura pouco tal moleza. Outra encosta mais íngreme que a anterior conduz ao Paso Siula (e eu pensando que atingira o tal paso no mirante onde avistara as lagunas Siula Quesillocha….ledo, ou melhor, triste engano o meu). A paisagem seria árida se não houvesse esparsos tufos de capim crescendo aqui e acolá no terreno pedregoso.
A paisagem, ao contrário daquela vista no início da trilha, onde os exuberantes Jirishanca, Yerupaja, Siula e Carnicero , exibem faceiros nevados, limita-se a cerros pelados de vegetação e neve, encimados por modestas e ásperas arestas pontiagudas. Num desnível de, aproximadamente, 250 m, demoro exatos 45 minutos, pra atingir o paso Siula, situado a 4.834 m.
Já lá se encontram os dois cozinheiros, Julio e Antonio, que haviam passado, céleres, por nós na trilha, carregando o almoço em suas mochilas. Estendida no chão uma toalha vermelha onde se alinham pratos e talheres de metal. É servida salada de galinha com abas, vagens, mais bolacha cream cracker. O tempo mudou da água pro vinho. Faz bastante frio, e o céu, já bem enevoado, deixa entrever algumas nesgas de céu azul. Por isso, não demoramos muito, e iniciamos a descida, logo alcançando o pampa formado por terrenos encharcados e uma peculiar vegetação cujo substrato duro que nem pedra é uma mistura de raízes e terra, chamada tsampa.
É o que nos salva de afundarmos no terreno alagadiço. O sol volta a aparecer e junto traz um pouco de aquanieve, insuficiente, porém, pra molhar a jaqueta. Neste trecho da trilha, avisto o outro flanco do nevado Carnicero e sua cumbre, sucedendo-se os nevados Jurau, com duas cumbres pontiagudas (5.600 m), e Trapecio (5.644 m). Um imponente maciço de rochas, à frente, cuja coloração varia do cinza escuro ao cinza claro, desperta atenção em meio a tantos nevados: trata-se da cordilheira Raura.
E o resto do caminho é fácil, contudo, Milton, bem cansado, aproveita, que Flavio, um dos arrieros se encontra junto a laguna Juracocha, dando de beber aos cavalos, e monta num deles adentrando, tal qual um samurai vitorioso, o acampamento Huayhuash, situado a 4.345 m, onde chegamos às 15:30. Enquanto alongo, rola um solzinho que, logo, se recolhe pois nuvens pesadas e cinzentas levam a melhor sobre ele. O lanche de hoje é tudo de bom: pipoca doce e salgada, além das bebidas quentes de sempre. Pipoca ou palomita, como é chamada aqui, aflora meu lado compulsivo. Assim, caio de boca nelas e como até fartar. A ausência de Carmen é sentida, e, questionado, Enrique trata de esclarecer que sua mulher está com muita dor de cabeça causada por uma sinusite. Solidário casal esse: quando um se restabelece, o outro tomba doente!
O visual deste acampamento é modesto se comparado aos anteriores. De nevado só o Trapecio que, entretanto, se encontra encoberto. Os demais são cerros despidos de glaciares. Decido que hoje não haverá banho, nem lavação de pés ou de rosto no rio, situado a dois passos de minha barraca, pois venta muito. Dou-me por limpa, considerando a meia sola feita ontem em Incahuain. Digo meia sola porque ré confessa, sem culpa alguma, deixei de lavar cabelo e costas, regiões muito sensíveis às águas geladas. Eu, hein….sou caprichosa mas nem tanto!
Paso Portachuelo
Amanhece nublado, com cerração, embora não esteja muito frio. Terminado o desjejum, partimos às 8 horas, em direção ao Paso Portachuelo (4.750 m). A trilha é fácil, sem grandes subidas, e, após duas horas, alcançamos o paso cujo nome se deve a duas rochas, situadas uma frente a outra, à semelhança de um portal. Após cruzá-lo, já se vê, à esquerda, um extenso nevado que, devido a sua forma, foi apelidado Leon Dormido, pertencente à cordilheira Raura.
Nesta zona os nevados não abundam, e por isso sobressai, em meio à coloração cinzenta de algumas montanhas, certos tons de ocre, denunciando a presença de óxido de ferro na composição das rochas. É o caso do cerro Pucacaca e suas três cumbres afiladas parecendo um M invertido. Paramos pra fazer um lanche e de onde estamos, já se avista a laguna Viconga. Dentre tantos belos cerros, dois, em particular, destacam-se: Milpo e Pilanko, também, pertencentes à cordilheira Raura.
O primeiro, cuja forma assemelha-se à palma duma mão com os cinco dedos estendidos pro céu, exibe na parte traseira um largo platô coberto de neve. Contudo, à medida que nos aproximamos, tal formato vai se tornado indefinível. Observo, ainda, que sua coloração preta e branca, evidencia prováveis rochas ígneas e sedimentares em sua formação. Antecedendo o Milpo, o cerro, Pilanko, com seu maciço e quadrangular paredão rochoso, em cujo cume despontam pontas, lembra um castelo com ameias e torreões.
Uma pequena subida contornando a laguna Viconga cuja coloração das águas verde-escuro origina-se do degelo do nevado Leon Dormido. Por sua vez, a laguna é nascente do Viconga, extenso rio que desemboca no Pacífico. Aproveitando suas corredeiras, foi construída uma represa para geração de energia elétrica, que beneficia várias cidades dispostas no entorno de Huayhuash.
Quando se termina de contorná-la, sou brindada com a visão ofuscante dos nevados Cuyoc e Puscanturpa. Eu, que ficara pra trás, como sempre, encontro o grupo em frente a um portão vermelho, início do território dos Huaylas, descendentes dos povos pré-incas. O motivo de estarem todos parados deve-se à exigência do responsável pelos ingressos, em poder de Sergio, que vem mais atrás com Enrique e Carmen. Metida que sou, tento passar um conversê no homem. Ensaio até uns passos de samba, tentando amaciá-lo, mas que nada, mantém-se, o incorruptível homenzinho, irredutível. Acabo protagonizando, sem querer, uma cena hilária porque todos os bascos caem na risada quando me vêem dançando. Desfeito o imbróglio, retomamos a caminhada e daí pra frente é só pampa.
Uma linda cachoeira, cheia de degraus, despencando do rio Viconga, produz um som rumorejante de água batendo nas pedras. Após, outra, menorzinha, igualmente, atraente. E, espalhadas na relva, colônias de cactus Opuntina Flocossa, cuja fina penugem branca assemelha-se a algodão. Uma beleza esse cáctus de altitude! Chegamos ao acampamento Viconga às 13 horas e nossas tendas estão armadas aos pés do belo cerro Madalena, que já me atraíra a atenção durante a caminhada.
Cerro Madalena e rio Viconga
As termas encontram-se a 20 passos de distância. Mas antes do tão desejado banho de águas calientes, somos chamados pro almoço. Na mesa, uma travessa de ocopa, creme feito com huacatay (uma espécie de vegetal), espalha-se sobre batatas cozidas. Uma delícia! Infelizmente, tenho de apelar pro Luftal depois de comer porque os gases estão por demais buliçosos em minha barriga, resultado inevitável da altitude. Um assanho essa flatulência…..arre! Terminado o almoço, vamos, contentes da vida, pras termas, situadas a 20 passos de distância das barracas. São duas piscinas ao ar livre: uma, pequena, reservada para o uso de sabonete e xampu, a outra, maior, só pro enxagüe.
A paisagem ao redor é linda: o cerro Madalena à frente e ao longe um pedaço do Leon Dormido. Ao redor da piscina grande, um grupo de jovens turistas israelitas toma sol. O ambiente é festivo porque a água caliente relaxa os músculos e os ânimos, por supuesto! Dessa vez encaro o desafio de entrar nua na piscina. Desprevenida, não levara biquíni. Assim, teria de entrar de short e regata, desveti-los pra me ensaboar, colocá-los ao sair, novamente, pra trocá-los, por uma roupa seca.
Muita mão de obra, o que me leva a desistir de tanto troca-troca, adentrando nágua como uma Eva antes de cometer o pecado original. A temperatura da piscina está ma-ra-vi-lho-sa. Meu banho, dessa vez, foi completo, ulálá! Como é bom tomar um banho de verdade e não aquela tapeação que venho fazendo há três dias. Neste camping, são sem portas os sanitários (quando não os há, os arrieros improvisam um WC, cavando um buraco fundo e armando uma barraquinha ao redor), o que acho ótimo, já que todos exalam fétido odor. Dessa forma, rola uma ventilação, afora o visual das montanhas ao redor enquanto faço pipi.
Depois duma leitura do Pólo Sul, pinta um baita desejo de tomar café e comer bolachas cream cracker com manteiga. Assim, vou até a cozinha e peço água quente e manteiga pra Ruperto, um dos arrieros. Ambos os cozinheiros já se encontram nos preparativos da ceia: Julio depena uma galinha e Antonio descasca batatas. No refeitório, preparo o café, comendo várias bolachas besuntadas com fartas camadas de manteiga. Enquanto aproveito um solzinho gostoso de fim de tarde, contemplo o lindo cerro Pucacaca e o cerro Madalena. Lá no fundo do vale, uma porção do Leon Dormido é realçada por retardatários raios de sol refletidos em seu dorso esbranquiçado.
Ouço à distância as vozes alegres dos arrieros e um cão come um pé de galinha ao lado da barraca-refeitório. Começa a esfriar, afinal o sol já está se despedindo do dia. Em conversa com um dos bascos do grupo dos 8, fico sabendo que os habitantes da Euska Herria se refugiavam nas montanhas quando das invasões de godos, visigodos e árabes naquela região em épocas dantanho. Daí talvez a origem da inclinação dos bascos pelo montanhismo e escalada.
Enquanto espero a janta, junto-me a Sergio que se encontra no refeitório, conversando com Jose e sua esposa. Ele é responsável com mais outro colega pela usina hidroelétrica do rio Viconga. A mulher de belos olhos amendoados carrega um bebê de 4 meses no colo. Montados em duas mulas e acompanhados por dois cachorros, retornam pra represa, vindos de Cajatambo onde têm uma casa. Vendo que Sergio está acampado no local, fazem uma pausa prum dedo de prosa. Pelo papo, percebo que são amigos há muitos anos. Os dois contam, alternando detalhes, da morte, por broncopneumonia, dum americano de 70 anos. Das tentativas de reanimá-lo. E do contentamento da mulher do cara em estar fazendo o trekking, sem saber, contudo, que o marido acabara de morrer mais à frente. Do modo como carregaram o corpo do falecido, atravessado no lombo da mula, e da ponta de seus pés arrastando no chão, tão alto era ele. E do velório que fizeram antes de ele ser trasladado pros USA. Foi um autêntico causo, como se diz aqui no Sul, contado a duas vozes.
Depois da janta, fazemos um brinde, com vinho caliente, em homenagem a Enrique e Carmen que, amanhã, seguem outro rumo junto com Sergio. Retornando à barraca, a lua cheia, a milhão, ilumina os campos ao redor. O cerro Pucacaca tem seu perfil realçado pela luz do luar. Um espetáculo a noite! Nem vou reclamar pros meus botões se me der vontade de fazer xixi, como vem acontecendo durante todas as madrugadas. Por isso, trato, antes de dormir, de beber mais um chazinho…..pra garantir a mijada noturna, hehehe
Continua…
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