Assim, fazer alguma atividade nessa região é uma questão de sorte e, também, de não se deixar acovardar diante dos prognósticos meteorológicos nada alvissareiros. Sem falar que me prefiro a chuva de Praia Grande aos findis ensolarados de Porto.
Canionismo só consegui fazer em setembro porque, com o volume dágua que São Pedro tem mandado, as cachus ficam bombadas e o risco que se corre não compensa a aventura. Enfim, uma janela de bom tempo permite que eu conheça a Via Proibida, uma garganta situada na parede sul do canyon Itaimbezinho.
Com 10 cachoeiras, o canionismo não apresenta maiores dificuldades. Dessa feita, ao contrário do habitual, quando tenho como companhia apenas meu guia, junta-se a nós um pessoal de Floripa: Joel, um venezuelano, radicado há anos no Brasil, a quem eu conhecera no II Encontro Sul Catarinense de Escalada e Montanhismo, realizado em maio na Pedra Branca, e Ana, amiga dele. Alto astral, Joel curtiu seu primeiro canionismo como se estivesse num parque de diversões. Deu gosto ver sua animação e alegria. No restante do mês, retorno a Praia Grande, conformando-me apenas às longas pernadas pela região pois o tempo chuvoso não dá mole pro canionismo.
Reconheço que levo o maior medão de rapelar cachus após um chuvaral. Só agora, burra velha, me dou conta do motivo. Muito estranho esse meu receio da água, já que nasci em Rio Grande, cidade debruçada sobre o Atlântico. Desde pequena, portanto, água me é muito familiar. Porém só Freud e os métodos nada ortodoxos de meu pai explicam o motivo dessa leve fobia. O velho costumava levar eu mais meu irmão ao Clube Regatas onde passa o canal que liga o mar ao porto. Lá nos dava “aulas de natação”. O método consistia em amarrar às nossas cinturas uma corda de sisal. Assim, seguros por aquele salva-vidas improvisado, nos jogava à água sem dó nem piedade. Se ensaiássemos um choro ou demonstrássemos medo, ele advertia que parássemos com a frescura! E sabem duma coisa? Apesar de nada agradável tais lições (bebia água pra caramba), gostaria de que o tempo desse um pulo pra trás só pra ver meu pai mais uma vezinha me empurrando dentro d´água. Bueno, chega de recuerdos nostálgicos…
Voltemos ao presente: semana retrasada, fomos eu e Kaloca fazer uma caminhada na fazenda Silveirão, situada na crista sul do canyon Josafaz. Esta fazenda dá acesso a uma garganta lateral àquele canyon, ponto de partida dum canionismo com 10 cachus cuja altura vai de 22 a 130 m. Belo sítio. Araucárias espalhadas aqui e ali, nesta época já sem os frutos, lançam sombras no dia ensolarado. Num lago, marrecos nadam rente à margem. E o som de sininhos, amarrados aos pescoços de cabritos que pastam perto de onde estamos lanchando, são o único barulhinho bom que se ouve ao redor. Conheço a primeira e a segunda cachoeira do Silveirão. Esta última conta com respeitáveis 90 m de queda livre. Será um dos meus próximos canionismos assim que o tempo firmar.
Continuando o passeio, conheço um pequeno cemitério cercado por um muro de taipa com apenas dois jazigos, datados do século XIX, onde foram enterrados os avós de Monalisa, guia da região. Revelam certo apuro as lápides, já castigadas pela ação deletéria do tempo, despontando numa delas a cabeça, parcialmente, arruinada duma santa qualquer.
Encontramos lá pelas tantas, um abandonado forno de pedra, utilizado na produção de carvão vegetal. Práticas antigas da gente de antanho. Pena que acabou! Devia ser bonito, vê-lo aceso à noite, iluminando a paisagem dos campos de cima da serra. E finalmente, agora, em outubro, consigo fazer outro canionismo. Depois de ter ficado a semana inteira observando os boletins meteorológicos, a quase infalível Epagri garante uma trégua no chuvaral. Assim, na sexta à tarde, de mala e sem cuia, me mando pra Praia Grande.
Viajo tranqüila, sem pressa. Ponho um cd com músicas variadas. Rola de tudo: desde os tristes fados de Amália Rodrigues aos plangentes lamentos de Cesaria Évora, roçando pelos animados sambões de Martinália até tudo se acabar nas melodiosas canções italianas de Nico Fidenco. Com a janela do carro semiaberta, sinto o vento acariciando, de leve, meu rosto. Tão bom estar com o pé na estrada! Dou minha habitual paradinha na barraca do Véio onde já sou reconhecida pelos balconistas. Diante da oferenda do vendedor, estendendo-me, gentilmente, um pedaço de abacaxi, apurada, recuso: depois, agora preciso ir ao banheiro.
Quando retorno, aceito tudo o que me é oferecido. Entro na SC 450 já anoitecendo. Embora esta rodovia, que liga a BR 101 a Praia Grande, abranja apenas 21 km, não gosto de dirigir à noite. Cheia de curvas, sinto-me um tanto insegura. Afora isso, as luzes dos carros que trafegam em sentido oposto, ofuscam meus olhos, dificultando um pouco a visão da estrada. Redobro a cautela e diminuo a velocidade pra 70 km. É de bom tamanho.
Ao chegar à pousada Colina da Serra, encontro Pauleca assando um galetinho. Mariazinha, a gringola, preparou uma maionese de aipim porque sabe que gosto demais dessa comida. Tudo de bom nossa janta. Antes do ranguinho, beberico meu tradicional copito de cachaça com camomila e mentruz. Gente, prefiram mentruz, um baita vermífugo, às horríveis pastilhas de clorofina usadas pra purificar as águas dos rios. Até porque o cloro, arghhhh, tem um gosto horrível e sei lá se seus efeitos colaterais não são piores do que albergar os vermezinhos assanhados, sassaricando em nossos intestinos.
Bueno, sábado, vamos, Kaloca, Gezaela e eu fazer canionismo na via dos Monitores. Esta pequena garganta, situada ao lado do morro dos Cabritos, nasce, também, na parede sul do canyon Itaimbezinho. Embora nublado, o tempo não está frio. Afinal, já estamos na primavera. Kaloca não conhece a garganta, sabe apenas que a maior cachoeira tem 60 m. Foi grampeada por amigos dele há mais dum ano.
Quando adentramos na mata, nos deparamos com dois pneus e uma caçamba de caminhão! Kaloca explica que um afobado caminhoneiro, ao fazer a acentuada curva em S, caiu ravina abaixo. E consta que só sofreu arranhões. Ainda bem! Depois duma pequena caminhada na mata ciliar, chegamos à primeira cachoeira. Embora de pequena altura, dá um certo trabalho. A segunda, no entanto, é fácil demais. Gezaela, uma praiagrandense de 22 anos, com um pequeno piercing incrustado na narina esquerda, revela-se uma companhia trilegal.
Guia da região e estudante de Administração em Tubarão, é uma graça de guria. Seus olhinhos rasgados brilham, animados, com a aventura. Uma energia gostosa se estabelece entre nós. Estou tão tranqüila que nem me reconheço. Observo, nas laterais da garganta, desmoronamentos de terra provocados pelas sucessivas enxurradas que vem castigando o sul de Santa Catarina há três meses. Nas demais cachoeiras, Kaloca descobre que as chapeletas foram retiradas e daí tem de improvisar ancoragens, amarrando a corda ora ao redor de pedras ora ao redor de árvores.
Puta que os pariu, dane-se, o inconseqüente que retirou as seguranças das cachoeiras! Se descubro quem foi o maldito, cubro esse cara de impropérios. Mas felizmente, Kaloca, um cara super experiente tira de letra o perrengue. Assim, conseguimos rapelar as 7 cachoeiras sem maiores problemas. Um canionismo pra iniciantes, se recolocadas as chapeletas e grampos nos devidos lugares.
Deixo Kaloca em sua casa e convido Geza pra comer pastel na lancheria do Pulga. Resisto, bravamente, embora a gula me incite a bisar o petisco. No domingo, o dia permanece nublado e vamos até a Pedra Branca, eu, Kaloca e Rejane, sua namorada. Já fiz esta caminhada várias vezes, mas sempre é um prazer subir a trilha, um trajeto de pouco menos duma hora, cujo maior perrengue é um pequeno trecho bem íngreme, um miniescalão, pouco antes de se atingir o cume. Touceiras de calhandras, uma flor que desponta na primavera, revelam já seus delicados pomponzinhos vermelhos ao longo do sendero.
Já no topo do monumental maciço de rocha, uma inesperada névoa baixa sobre nós, encobrindo o vale todo. Hora de descer, portanto. E na viagem de volta a Praia Grande, deixo rolar o som maneiro da Nação Zumbi, à época em que Chico Science – grande perda a morte desse cara – era o líder da banda……….eita mundinho bom!!