Como o ônibus não é direto, pára em várias rodoviárias: Osório, Morro Alto, Maquiné, Terra de Areia, Três Cachoeiras e Vila São João, isso sem contar as paradas pra pegar e largar passageiros BR 101 afora. O taxista, seu Denoir, se aproxima de mim quando desembarco em Torres. Veio de Praia Grande para me buscar já que é mais barato descolar um motora desta cidade do que contratar um táxi no balneário gaúcho. Em quarenta minutos, estou na pousada Colina da Serra. Maria, a meu pedido, fizera um bifezinho acebolado, uma salada (alface, colhida da horta, mais tomate) e aipim derretendo na boca de tão novinho.
Botamos a conversa em dia, e vou dormir cedo porque, no dia seguinte, muitas atividades me aguardam. Às oito horas, o táxi de seu Denoir, trazendo Kaloca, passa na pousada pra me pegar. Vamos acampar na borda do cânion Malacara. E lá vamos nós pela estrada do Faxinal, já em terras gaúchas, desembarcando um pouco antes da entrada do Parque Nacional do Itaimbezinho. Enveredamos pela trilha que nos levará até o Malaca.
A caminhada se faz sobre um terreno ondulado, os chamados campos limpos, cobertos de turfas. Num pequeno capão, por onde atravessamos, vi as delicadas sophonitis, orquídeas típicas da região dos campos de cima da serra, pintalgando de vermelho o verde escuro da mata. Deixamos nossas mochilas escondidas num capão e iniciamos a descida até o interior do cânion. Vamos fazer quatro rapéis em cachoeiras ainda inexploradas por mim. Em quarenta minutos, alcançamos o poço da Cachoeira das Abelhas Zangadas, assim batizada por mim, devido ao ataque sofrido, ano passado, por um bando ensandecido destes insetos, atraídos que foram pelo repelente que eu besuntara em mim e em Kaloca. Em vez de afugentá-las, ao contrário, atraíra as loucas. Repelente só funciona contra mosquitos, mutucas e moscas. Com abelhas não só é uma proteção inócua, como o cheiro as deixam irritadíssimas. Talvez, sei lá, porque um dos componentes do remédio seja essência de laranjeira.
Foi uma situação difícil porque os bichos escolheram como alvo preferencial nossos rostos. Por sorte, já estávamos perto da oitava cachoeira do Malaca onde nos refugiamos, dentro do poço, do ataque feroz das irritadas zumbidoras. E a colméia permanece no mesmo velho tronco de árvore. Passamos pelo local, mudos, de cantinho. Quando atingimos o leito do rio, embarafustamos por um carreiro lateral ao seu curso quando então retornamos ao rio no ponto onde se localiza a nona cachoeira.
O cânion Malacara se diferencia dos outros não só por sua beleza como pelo volume de água de seu rio. Kaloca me alerta prum degrauzinho na metade da descida. Rapelo com cuidado até lá e depois só vai. O dia está nublado, sem que as nuvens toldem o céu por completo. Caminhamos mais um pouco, agora sempre pelo leito do rio até a Cachoeira dos Degraus, assim chamada porque apresenta dois grandes desníveis. Sua descida se faz em duas cordadas: a inicial, com 15 metros, vai até o primeiro poço, onde se ancora novamente a corda em uma proteção fixa pra se descer o restante da queda dágua, esta já um pouco maior, com 25 metros.
O cânion apresenta uma vazão razoável de água, nada, entretanto, muito apavorante. Eu não gosto de cachoeira bombada porque um volume pesado dágua ofusca a visão, dificultando ver com clareza as reentrâncias da rocha onde devo pisar. Mais uma pernada sobre o leito do rio até a décima primeira cachoeira, uma rampa suave que não necessita rapel, motivo pelo qual seguimos, andando, por sua lateral. Eu, claro, agarrando-me às pedras, cautelosamente (morro de medo de levar um tombão no basalto pra lá de liso), enquanto Kaloca, bem à vontade, calca sem dificuldade alguma as rochas escorregadias pra caramba. Em vez de saltar até a água já que a altura, nesse ponto, é coisa de 1,5 m, prefiro escorregar dentro do poço. O lugar é amedrontador. Não à-toa, é chamado Poço Negro.
Os paredões do cânion, até então distantes, estão bem próximos um do outro, impedindo quase, totalmente, a entrada da luz. O poço deve ter uns 7 m de largura por uns 15 m de comprimento. O lugar lembra um pouco a caverna da caveira, residência do Fantasma, o primeiro herói mascarado das estórias em quadrinho, criado em 1936. O barulho da água, escorrendo pela cachoeira de 23 metros, dá um frio na barriga. A via do rapel é uma canaleta estreita e já estou sentindo bastante frio. Kaloca, zombeteiro, fala que o frio é psicológico. Esse guri, tá me tirando! O ruído da água, ensurdecedor, torna o local mais assustador ainda. Quando termino o rapel, verifico que não foi, contudo, uma descida difícil.
Nado até a saída do Poço Negro e dou uma espiada na cachoeira. A água escorre pelas rochas formando duas vertentes. É muito lindo o lugar embora seja pra lá de soturno. Aguardo Kaloca e então iniciamos a descida da décima terceira cachoeira, logo na saída da boca daquele impressionante brete-caverna. Desço, rapidamente, os 12 metros que me levam até o poço porque, agora, sim, tô enregelada. Iniciamos então a subida da parede norte do cânion, uma pirambeira que, antes da enchente de março de 2007, não apresentava maiores percalços. Agora, já não é tão simples trilhá-la. A forte enxurrada tornou a senda mais estreita e perigosa.
Num determinado trecho, Kaloca põe cordas pra ajudar na subida. É difícil. Faltam-me forças nos braços pra ganhar impulso e ascender. Enfim, incentivada pelo meu guia, chego ao topo da pedra….uuufaaa!! O resto do carreiro não apresenta maiores dificuldades. Cruzamos o rio e subimos pela pirambeira da parede sul até alcançarmos o topo do cânion. Pegamos as mochilas e vamos procurar um local pra montarmos a barraca. Uma garoa cai enquanto eu alongo, e uma espessa viração surge do interior do cânion, tornando a paisagem meio espectral.
Barraca montada, já lá dentro, Kaloca acende o fogareiro pra fazer um chá. Estou com muito frio. A temperatura desce rapidamente enquanto a noite, de mansinho, se anuncia. Como não leváramos papel higiênico, Kaloca me ensina a usar barba de bode, excelente substitutivo, diga-se, a bem da verdade. O truque é pegar as mais verdes, gotejantes de umidade. Após a janta – sopa de pacotinho, acompanhada de queijo, salame, nozes, amêndoas e pistache – bebemos um pouco de vinho e conversamos até tarde quando, então, cada um se acomoda em seu saco de dormir prontos pra dormir. Dessa vez sem lua ou estrelas pra admirar devido ao mau tempo. Mesmo assim, que baita indiada!