Mera Peak – Parte 5

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Tenho dormido muito bem. Ao contrário de outros trekkings, nem tenho acordado durante a madruga pra fazer xixi, o que dispensa, graças a deus, do uso da pee bottle adquirida em Kathmandu.


Leia a quarta parte do relato.

Veja o Mera Peak no Google Earth atraés do Rumos!

Complicado acertar o buraco no escuro com uma lanterna de testa. E mais esquisito, é, tateando, encaixar a vulva na boca da garrafa. Claro que pra temperaturas severas, bem abaixo de zero, não há como escapar da garrafinha. A temperatura, embora fria, ulálá, tem-se mantido acima de zero. Tenho acordado, cedíssimo, por volta das 6. Antes de todos, incluídos aí galinhas e galos. Também pudera, 10 da noite, o mais tardar, já estou ferrada no sono, abraçadíssima a Morfeu.

Uma hora mais tarde, um porter traz chá e uma bacia com água quente super bem-vinda. Tudo de ruim ter que se lavar no rio cuja água geladésima faz doer dentes e mãos quando usada. Uma manhã linda. Da porta da barraca dá pra ver perfeitamente a montanha Kusum Khang com suas encostas estriadas de branco e seu cume totalmente coberto de neve. Já Chat Pate que mostrou, durante uma boa parte do trajeto percorrido ao longo do vale do Inku Khola, seu exato formato piramidal, aqui em Tangnag jaz escondida por uma montanha que se localiza bem a sua frente. Deixa ver apenas uma ligeira nesga de sua face noroeste. E, é justamente neste flanco, um pouco mais tarde, na azulada manhã de segunda-feira, que tenho a sorte de tirar uma seqüência de fotos duma avalanche que rola ribanceira abaixo. Exclamações de admiração e comentários entusiásticos escapam tanto de turistas quanto de nepaleses.

Deixamos o acampamento às 9 e 10 da matina pra conhecer o glaciar Inku, nascente não só do Inku Khola quanto do Inku Lake. Caminha-se num terreno de onde brotam pequenos e cerrados arbustos para, então, atingir a crista empedrada da moraina de onde se vê, lá embaixo, um lago de águas verde-piscina. Nima conta que há 20 anos atrás uma avalanche de grandes proporções caiu sobre o lago. Além de soterrar parte de seu leito, alargou o canal através do qual escoam as águas que alimentam o rio. Sento-me e curto a paisagem. Árida, quase sem vegetação, predominam somente tons secos: ocre, cinza, marrom e preto. O único toque vivaz são os brancos glaciares que pendem dos flancos das montanhas. Olhando pro horizonte, percebe-se quão pouco largo é o Inku Valley, as montanhas que o confinam, da perspectiva onde me encontro, parecem se tocar em certos trechos do vale.

Pois não é que surge novo clima desagradável com o casal de pombinhos? Dessa feita, com Carol. O tampinha de meu guia que comunicara, ontem, através da amante e porta-voz, que passaria, a partir de hoje, a me acompanhar, larga na frente em passo acelerado. Sei lá se pra mostrar seus dotes pra namorada ou se pra me dissuadir de sua companhia já que sabe que não gosto de caminhar rápido. Quando chegamos no alto do morro, o tampinha dentuço desce um barranco, todo saltitante, novamente se exibindo pra ela. Quer fotografar o lago e seu glaciar dum ângulo diferente. Eu, coitada de mim, sigo-o faceira, louca por um pouco de adrena. Carol intervém. Adverte que eu não vá. Mesmo assim resolvo encarar o declive arenoso. Nem tão íngreme assim é. Um jovem porter, designado pra servir de companhia à Carol (Nima que, teoricamente, seria o meu condutor, sempre que pode escapole pra longe de mim como o diabo da cruz) me segue morro abaixo. Aflito, faz sinais pra que eu suba. Como sou, normalmente, obediente às orientações dos guias, retorno. Não dá outra, a inglesa, vai à forra, tomando as caras pelo amante. Enfática, censura-me, arrematando com ar solene que o Himalaya é muito perigoso! Hahaha, essa é boa. Supervalorizando os perigos himalaianos desse barranco de merda (sem neve tampouco gelo) que qualquer criança desceria gritando de pura alegria. Nem adianta argumentar que pratico canionismo no sul do Brasil, acostumada, portanto, a enfrentar desníveis perrenguentos bem piores. A inglesa não me escuta! Estou começando a achar tudo de ruim o casal. São nada companheiros. Pior, ainda me podam em aventuras inocentes. Sacoooo!!!

Após o almoço, um treino de rapel num boulder situado atrás de nossas barracas. Com não mais que 10 metros de altura, rapelo toda estilosa – duas vezes – mostrando a eles que entendo do riscado. Nem me elogiam. Pra minha surpresa quem me cumprimenta pelo desempenho é a finlandesa. Sei não, essa dupla tá de pinimba comigo (ou será meu lado paranóico que tá de implicância com eles?). Pra ser justa, Carol, embora seja metida, faz uma social vez por outra. Porém o baixinho dentuço tá nem aí pra mim. Muito boçal mesmo esse sujeito! Trato de dar um chega pra lá mental nos dois porque, quando estou aborrecida, sou daquelas que incubo por horas e horas o mau estado de espírito. E isso não faz nenhum bem.

Assim, espaireço, explorando a “rua principal” de Tangnag. Na frente dum açougue, onde estão expostos sanguinolentos pernis de carneiro, encontro Nara. Em acirrada disputa, o cozinheiro joga uma partida de botão com um colega. Crianças a volta do tabuleiro dão palpites naquela língua difícil de pronunciar que é o nepalês. E, como ontem, começa a surgir das bandas do sul, nem bem ainda 15 horas, um incipiente nevoeiro. Uma hora depois, as brumas escanteiam a visibilidade, escondendo montanhas e tudo mais que se encontra a 50 m de distância. Acompanham o chá, servido no refeitório, amêndoas, bolachas doces e uma espécie de bolinho de chuva. Tenho até medo de engordar do tanto que ando comendo. A salamandra não se encontra acesa, porque o custo cobrado nas tea houses pelo seu uso é 200 rps por pessoa. Como quem paga isso é agência – embutido, lógico, no preço do pacote -, os caloríferos só são acesos à noite nessa época do ano.

Nova avalanche, dessa vez, descendo a encosta da torre norte do Mera Peak. Antes da ceia, provo tongba, uma bebida alcoólica. Muito apreciada no leste do Nepal, é servida num pequeno pote de madeira onde se deita água quente numa mistura de sementes de milho fermentado. A beberagem é sorvida através dum canudo de bambu. Quem diria, hein? Encontrar, aqui, na Ásia, uma espécie de chimarrão alcoólico. Essa é boa!! Não sei dizer se sabe a vinho, cerveja ou uísque. Contudo, o sabor não me agrada. Surgem no refeitório, os finlandeses que se mantém na mesma atitude distante da noite anterior. Estou ainda meio puta com Nima e Carol. Assim prefiro ficar na minha, editando fotos na máquina. E, novamente, ao ir pra barraca, vejo um céu estreladésimo. Quer coisa melhor que isso? Antes só do que mal acompanhada. E fodam-se aqueles dois!!

Aclimatação em Khare

Sonhei com Praia Grande, mais exatamente, com Maria e Paulo, ambos na cozinha da pousada. O que faziam ou falavam, e se eu estava junto, tampouco lembro quando desperto. Sonho mais prosaico impossível. Duma sem gracice decepcionante. Um céu azul de brigadeiro às 7 e 45, quando deixamos Tangnag, após o desjejum, rumo a Khare, o próximo vilarejo onde iremos acampar e permanecer dois dias para fins de aclimatação. Embora o desnível entre as duas vilas seja de apenas 500 m, a pernada não é das mais custosas porque se dá a maior parte nas terras planas do Inku Valley, acompanhando o sinuoso trajeto do Inku Khola.

Revejo Kusum Khang e Chat Pate dum novo ângulo. Muito legal poder avistar, em toda sua inteireza, o maciço formado pelas duas montanhas e o contraste entre seus claros cumes nevados e encostas escuras. Chat Pate, em especial, revela melhor ainda sua forma piramidal. À minha frente, avisto o tempo todo a brancura impecável do glaciar Mera e seu passo, enquanto à direita o cume norte do Mera Peak ganha mais e mais relevância à medida que se ganha altura. Na estradinha, um bom movimento de porters indo e vindo de Khare. Namastês vibram no ar. Boa demais essa vida!! Obrigada meu pai, gracias minha mãe!!

Pasang, o climbing guide que me acompanha desde o início do trekking, tem-se revelado um dedicado guia. Super na dele, é tranqüilo e atencioso. Embora seu inglês seja precário, presta informações com boa vontade, ao contrário do tampinha do Nima. Caminha, invariavelmente, atrás de mim. E não adianta dizer que tome a dianteira, recusa-se (sei lá por quê), sinalizando que eu prossiga na frente. Paro pra fazer xixi e aproveito pra descansar um pouco. Deitada na grama, percebo que a pálida tonalidade azulada do céu, quando acordei, é, agora, no adiantado da manhã, substituída por um tom mais forte de azul.

Da terra brotam gramíneas cujo pálido verdor já sinaliza que o verão há muito se despediu, cedendo a vez ao outono. Apesar de sua coloração amarelada e de sua aparência ressecada, a vegetação quebra um pouco a aridez da paisagem coroada por maciços rochosos cinza-escuros. Uns quarenta minutos antes de alcançar a vila, uma subida mais forte acaba com a moleza até então por mim desfrutada. Às 11 de la matina, chego em Khare, cuja altitude beira os 4.800 m. A vila, um pouquinho maior que Tangnag, tem dois armazéns e algumas tea houses, alojamentos um pouco mais confortáveis que as barracas. Guardando uma prudente distância das casas mais próximas, ergue-se a famosa casinha de pedra. E não é aquela dos contos de fada dos Irmãos Grimm, não!! É o tão temido e fétido WC coletivo. Os de Tangnag e Khare são construções pra lá de sofisticadas com suas janelas, portas e tetos de madeira se comparados com os daqui, sem teto, servindo de porta um esfarrapado saco de aniagem. Colocadas a uns 50 cm do solo, ripas de madeira permitem ver toda a merda acumulada pela turistada durante a temporada. São megafedorentos. Tem de entrar e sair de nariz tapado, tão nauseabundo é o cheiro, mesmo naqueles mais ajeitadinhos.

Quando chego na vila, o casal 20, Nima e Carol já lá se encontram, acomodados num colchonete. Sorridentes, me saúdam. Carol, muito antenada, quando percebe que estou sentada diretamente na terra, ordena que tragam outro acolchoado pra eu sentar. O tampinha nem se deu conta. Também pudera. Só consegue ter olhos pra Carol, uma versão requentada da Xuxa. Ah, sim, esqueci de comentar que a inglesa dá certos ares com a “rainha dos baixinhos”. Agora, sim, bem refestelada, bebo o reconfortante chá que me foi entregue por um sorridente porter. Nem tento saber o nome de todos eles. São oito!! O dia continua lindo: ouro sobre prata. Conquanto se entreveja apenas uma diminuta pontinha branca, já dá pra perceber, daqui da vila, o cume central do Mera. Se deus quiser, daqui a dois dias, estarei lá em cima, olhando pra Khare do alto de seus mais de 6.400 m! Pelo menos tentarei.

Perto da barraca onde descanso após o almoço, um rádio toca uma canção nepalesa que embala minha leitura. A música suave, a bem da verdade, nem combina muito com a trama pesada escrita por Rankin. A trilha sonora, adequada ao livro do escocês, exige algo porrada, tipo Sepultura, sonzeira muito mais a ver com o romance policial, intitulado Os Ressuscitados. Ao longe, o troar de avalanches soa no ar frio da tarde. Estou no céu e bem viva! A sombra dum corvo plaina sobre minha barraca. Agora, 15 e 30, a paisagem faz-se gris, insossa. Sem a presença luminosa do sol, ofuscado por um nevoeiro, não se avista coisa alguma além de 50 metros. Passada uma hora, a densa neblina espairece, o sol volta a brilhar e a aquecer a vila, até ser embuçado, em definitivo, pela noite que dá as caras antes das 18 horas. Durante a janta, conversando com Carol, comento que não tenho visto americanos na trilha. Ela responde que eles preferem trilhas mais fáceis como as dos acampamentos-base do Everest e Anapurna. Na janta, momo frito. Um pitéu. Como mais do que deveria. É uma injeção de colesterol direto na veia. Ah, vez por outra, até pode, né?

Continua…

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