Montanhismo nos Trópicos

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É incontestável a fascinação exercida pelas histórias das ascensões em grandes altitudes nos Himalaias ou nos Andes e das conquistas de grandes paredes nos Alpes ou na Patagônia. A rocha exposta, o gelo alvíssimo e a falta de oxigênio exercem poder avassalador na mente de montanhistas e cineastas de todas as latitudes. Os dois primeiros são elementos muito fotogênicos e a mitologia encarnada no terceiro praticamente dominam a mídia esportiva e obscurecem tudo ao seu redor, mas felizmente o verdadeiro montanhismo, tanto o glamoroso quanto o incógnito, é praticado longe das câmeras. Até que existem tentativas de retratar o montanhismo tropical como bem demonstram alguns episódios da série &ldquo,A Prova de Tudo&ldquo, levada ao ar pela TV a cabo (exceto a inexplicável atração gastronômica por lesmas, insetos e fezes frescas), mas se detêm pelas bordas devido principalmente as dificuldades implícitas destas empreitadas.


Equipamentos eletrônicos são muito sensíveis ao excesso de umidade e as câmeras têm necessidade de muita luz para realizarem seu trabalho. Nas montanhas tropicais a umidade é imensa, as chuvas são constantes e podem durar semanas ou meses e árvores com 30 ou 50 metros impedem a entrada de luz. Nos poucos dias ensolarados pequenos fachos de luz brilhante rasgam o teto da floresta criando zonas de luz intensa em contraste com o fundo escuro que de pesadelo para o fotógrafo se transforma numa impossibilidade para as câmaras de vídeo. Impossível carregar pela selva a quantidade de baterias e defletores necessários a iluminar tal cena e se acaso em alguma parte periférica o fosse possível esta mesma luz retiraria da cena uma boa parte da dramaticidade. Isto porque escalar na escuridão da floresta é parte essencial da aventura, assim como escalar debaixo de chuva. Retirar qualquer destes elementos deturparia o espírito da coisa. Algo como retirar o gelo ou a neve nas escaladas em grandes altitudes.

Em ambiente de alta montanha temos as dificuldades impostas por uma paisagem desértica dominada por cascalho e gelo com atmosfera pobre de umidade e oxigênio. Calor absurdo e frio terrível. O gelo se movimenta montanha abaixo formando gretas invisíveis encobertas por neve fresca que pode engolir uma casa num piscar de olhos. O branco total confunde os sentidos e dificulta a orientação ao eliminar os marcos de referência. Neve fofa ou pastosa dobram os esforços ao caminhar e criam avalanches nas encostas instáveis que facilmente devastariam uma pequena cidade. Torres de gelo, os Seracs, do tamanho de edifícios formados pela ação do vento desmoronam sem aviso prévio. Campos de penitentes transformam algumas encostas numa gigantesca cama de faquir e muito além das grandes distâncias têm o ar rarefeito. Em comparação ao nível do mar a 5000 metros de altitude há apenas 50% de oxigênio dissolvido na atmosfera. Dali pra a cima a situação se deteriora em progressão geométrica.

Escalar paredes de pedra ou mistas (pedra e gelo) tem suas próprias dificuldades. Não é fácil sustentar o peso do próprio corpo em agarras tão diminutas que mal conseguem acomodar um dedo. Olhar para baixo e ver a ultima ancoragem distante 20 metros ao se preparar para um movimento que pode resultar numa queda de 40 metros. Fritar no calor de uma pedra exposta aos raios de sol ou congelar no vento que insiste em varrer toda impureza da parede. Incorpora movimentos elásticos e graciosos que o aproximam do balé ao demonstrar leveza na luta contra a gravidade.

No clima tropical as montanhas são baixas e o oxigênio abundante, mas não faltam obstáculos a serem encarados. A mata é espessa na base e compacta nos cumes, tornando a orientação extremamente complicada. Cartas topográficas e GPS, debaixo da cobertura de árvores, apresentam significativas falhas de precisão e a própria bússola nem sempre é confiável pela proximidade com reservas de materiais ferrosos. Cipós, taquaras e espinhos dilaceram a pele e retardam o avanço, pólen e outras toxinas irritantes se desprendem das folhas. A vida animal é pujante e muitas vezes perigosa. O que não falta são formigas, aranhas, cobras, centopéias, escorpiões, vespas e mosquitos que infernizam constantemente, mas há ainda os agressivos como bugios, catetos e muito raramente as onças.

A umidade excessiva é o equivalente ao ar rarefeito e há ocasiões em que se respira apenas vapor d´água dentro da estufa verde. A temperatura oscila de um extremo do termômetro ao outro em poucas horas e muito comum passar um dia todo suando as bicas sob um sol de 40ºC para no final da tarde encarar uma frente fria com chuva gelada que atravessa a noite com temperaturas próximas de 5ºC e sensação térmica negativa a poucos quilômetros do mar. No inverno as geadas e as temperaturas negativas são constantes e o frio se intensifica com a alta umidade. Caminhar e dormir molhado até os ossos é risco eminente de hipotermia. Na chuva ou imediatamente após, as encostas transformam-se em cachoeiras ou barreiros quase intransitáveis que nada devem a neve pastosa do final de tarde com a ressalva de que é impossível evitá-las.

A imensidão verde esconde enormes paredões de rocha vertical, úmidas e escorregadias, muitas cobertas de musgo, raízes podres e pedras soltas e os campos de altitude, ravinas, encostas e grotas encobertas sob o capinzal ou sob o manto de folhas mortas escondem uma infinidade de gretas profundas e mortais. Por vezes se caminha sobre raízes aéreas e outras literalmente sobre a copa das árvores, mas não raro se arrastando por frestas úmidas repletas de parasitas, sanguessugas e carrapatos.

A tecnologia dos equipamentos é quase completamente desenvolvida nos países temperados para suas necessidades específicas e ao montanhismo dos trópicos resta adaptá-los da melhor forma possível ao seu próprio uso.&nbsp, Mochilas cargueiras usadas nas longas travessias pelas serras se enroscam nos cipós e são dilaceradas pelos espinhos, ficam encharcadas debaixo da chuva e toda a bagagem deve estar acondicionada em sacos estanques. Sacos de dormir molhados se transformam em finos lençóis gelados. As botas se desfazem nos pés após pouco uso apesar do cuidado que se tem com elas. Nada suporta incólume ao terreno difícil e ao clima instável dos trópicos.

Montanhismo nos trópicos não é percorrer trilhas consagradas até o cume de montanhas com até 2500 ou 3000 metros de altitude, isto aqui nos trópicos como também nos Himalaias, em altitudes infinitamente superiores, é apenas trekking com algumas pitadas de emoção. Nada de pejorativo nesta afirmação, pois sou um entusiasta desta modalidade e também não tenho nada contra o turismo natureba que, aliás, pratico com muito gosto quando as oportunidades aparecem. Mas não confundo nem procuro confundir estas atividades recreativas com o verdadeiro montanhismo esportivo. Muitas vezes a coisa começa com um trekking selvagem para se transformar, aos poucos, em puro montanhismo e no fim acaba num programa turístico dos mais descarados. Tudo faz parte do mesmo prazer.

No básico, montanhismo é sempre a mesma coisa seja qual for a altitude em que esteja sendo praticado e o que mudam são as técnicas para superar os diferentes desafios naturais que dificultam a chegada ao cume e seu posterior retorno em segurança a base.

Como na vida, no montanhismo o cume é apenas transitório e o que realmente importa é o que se aprendeu durante o percurso e o prazer vivido. Principalmente o aprendizado sobre si mesmo que em sumo é a experiência que se pode reutilizar nos próximos desafios em buscas de novos e mais intensos prazeres. Todo o resto é lenda, pura mistificação a que todo esporte incompreendido é submetido. Para morrer não é necessário rolar 2000 metros pela face do Lhotse enquanto se escala o Everest, conheci pessoas que morreram ao despencar de uma cadeira no simples ato de trocar uma lâmpada. O perigo de morte está em toda parte para quem vive e muito mais intenso nos ambientes hostis onde o homem não se sente confortável.

Desafiar a morte não é a intenção do montanhismo. O objetivo é a busca constante de superação psicológica, quando a mente encontra os limites do corpo e os ultrapassa com segurança. Voltar pra casa com suas fronteiras internas expandidas é o prazer supremo. Saber que pode ainda mais é o desafio.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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