No reino dos Abutres

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Quarta pela manhã, já eu contava os minutos que faltavam para mais uma vez iniciar a viagem rumo a Espanha, aquele belo país onde se viaja a preços bem mais convidativos que o nosso.

Bem perto da fronteira, já íamos eu e o Paulo em amena cavaqueira, quando uma brigada de trânsito nos manda parar: 

“Boa tarde. Os documentos do condutor e do veiculo por favor”…”Não poupe nos pneus de trás!”

  Com 63.000km rodados retorqui “Segundo o meu mecânico ainda fazem mais 10.000km!”. Ok, fiquei a saber que cada pneu poderá valer agora para os cofres da GNR a módica quantia de 50 euros! Poderá… mas desta safamo-nos.  

“Obrigado pela dica Sr. Guarda!”…e assim seguimos viagem entre comentários breves “Epá Paulo, desde os meus 18 aninhos, devo ter sido mandada parar para aí…2 vezes!”.

  Dois minutos depois, mesmo na fronteira, uns quantos matulões com ar de poucos amigos e colete a dizer “Guardia Civil” fazem-nos encostar novamente. Desta não houve troca de sorrisos e comentários em jeito de graçola. “Abre el maletero por favor…Que tienes aí?…vais de vacaciones?”. As respostas do Paulo foram curtas “No. Cuatro dias a escalar al Sur de España”. 

E assim começou mais uma aventura.

  Desde a primeira vez que escalei em El Chorro, sempre imaginei escalar uma nova linha na parede grande, na parede do “Poema Roca”. A dimensão da parede, as cores, as covas imponentes, os abutres sempre a planar lá em cima, tudo me cativava naquela parede….ok, quase tudo…a noção de que poderia ter de atravessar troços pejados de cactos gigantes era a única coisa que não me entusiasmava!

O sector “Frontales medias”, com a sua cova característica conhecida como “Poema roca” e agora com duas vias Lusas.

  Claro que quando o Paulo e o Bruno abriram a via “Desnorte Total” há algumas semanas atrás, as minhas unhas ficaram roidinhas de inveja (leia-se, uma inveja saudável!)! 

Para acabar com essa inveja, o Paulo propôs-me um regresso àquele muro, para percorrermos desta vez os dois, um novo alinhamento.

  Enquanto degustávamos umas tapas em Antequera na quarta à noite, planeávamos os horários para os dias seguintes. Para os cerca de 300m de linha que tínhamos estudado, pensámos que 3 dias seriam o ideal. No entanto, o terceiro dia seria um Sábado. Essa perspectiva não nos agradava, porque imaginávamos que poderiam haver muitos mais escaladores na base da parede e qualquer calhau que caísse lá de cima…UI UI! 

Por entre goles de cerveja aclimatámos à ideia de que iríamos tentar abrir a via em 2 dias, o que implicaria acordar cedo…muito cedo especialmente no segundo dia.

  Quando os pássaros começaram com o seu chinfrim habitual ao nascer do sol, abandonámos o quentinho da tenda e cerca das 9:30 estávamos na base da parede com tudo preparado para começar a escalar.

O dedo aponta o pilar inicial… vamos a isso!

Já imaginávamos que o primeiro largo seria trabalhoso, pelo pequeno tecto que teria de ultrapassar, ainda assim, algumas fendinhas escondidas permitiram poupar algumas plaquetes…ficaram 2!

O primeiro furinho do artifo inicial. Dará certamente para forçar em livre e nem deve ser demasiado dificil. Mas a abrir…

Idem.

A daniela a chegar á primeira reunião.

O segundo largo, apesar de fácil, não foi dos que mais me agradou. Pois é, fiquei a conhecer a dor infligida pelos famosos cactos gigantes, que resolveram antes de nós, instalar-se na cova onde montámos a reunião!

Inicio do segundo lance. A caminho dos catos!

No nicho dos catos. Mas uma reunião ultra-cómoda.

  Desde aqui, um bonito pilar iniciava-se mesmo ao lado de uma torre de rocha absolutamente partida! Objectivo? Passar pela torre sem a desmoronar! Objectivo cumprido! Como recompensa fomos brindados com um alinhamento de rocha de aspecto duvidoso…só mesmo aspecto! A sequência de movimentos a agarrar à mão cheia blocos que pareciam querer destacar-se, traziam recordações das escaladas em Riglos.

Dois momentos do inicio do terceiro lance depois de passar a pequena torre precária que se aprecia na foto de baixo.

O largo “Riglos”. “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. A rocha é muito melhor do que aparenta.

Três já estavam, pouco faltava para esgotar o dia, já que só tínhamos duas cordas para fixar.

  O quarto largo deixou-nos um pouco mais acima do que tínhamos inicialmente imaginado, o que foi bastante positivo, tendo em conta que para o dia seguinte teríamos de ultrapassar ainda assim, mais de metade da parede.

Dois passitos de artificial iniciam o quarto lance.

E depois, chaminé de oposição desfrutona!

“Manda a máquina!”

A Daniela a chegar á quarta reunião para terminar o dia… com o rapel até ao solo.

Tocamos o chão no lusco fusco, já o sol tinha abandonado o horizonte e chegámos ao carro na precisa hora em que se acendem os frontais…UF! Tarefa cumprida mesmo no “timing” certo!

  Residia a questão, será que conseguiríamos terminar a via no dia seguinte? 

É que…não tínhamos mais corda para fixar!!

  O plano era simples, deitar cedo e levantar muuuuiiiiito cedo, para começar a jumarear ao nascer do dia (sim, ao nascer do dia, e não ao nascer do sol!) 

Pelas 5:30 da manhã toca o despertador e a ultima coisa que apetece é abandonar o calor da tenda, mas conseguimos faze-lo com somente 10 minutos de atraso!

  Pelas 7:30, já os jumares faziam a sua função e claro, o frio foi combatido de imediato pela dose de exercício matinal.

Exercício matinal. Subir quatro lances de cordas fixas.

 

Algures pelas 9:30, já estávamos pendurados na quarta reunião, com tudo organizado para começar a escalar…e eu com alguns picos nas mãos!

“Vamos recomeçar. Só falta colocar os pés de gato nos… nariz?!”

Auto retrato e o ânimo em alta.

No primeiro largo do dia, tivemos direito a atirar uns calhaus pelo ar sem qualquer preocupação, já que àquela hora ainda não havia nenhum escalador lá por baixo.

 

No lance numero 5.

Com mais um largo, ficámos ao nível do voo dos abutres, que desde cedo pairavam à nossa volta, certamente pouco felizes por terem companhia. Digo isto, pela reacção de um deles, que perto de poisar a poucos metros de nós, já com o trem de aterragem quase a tocar na rocha, resolveu dar meia volta e dirigir-se para outro poiso quando os seus olhos negros se cruzaram com os nossos esbugalhados. Pela reacção, creio que fomos classificados como intrusos, os verdadeiros indesejáveis!

 

Os abutres sempre presentes e vigilantes.

Dois largos depois já víamos as costas dos abutres, pelo que a preocupação de largar pedras aumentou: não só poderíamos atingir quem andasse na base, como podíamos com muuuuuuiiiitaaaa pontaria apedrejar um abutre! A dar segurança. Sentia-me observada. Na crista de rocha à minha esquerda lá estavam eles de olhar atendo a observar-nos. Eu, pensava neles, e eles…pensariam em mim? Poiso dos abutres: “Que pensarão?”

Dois momentos no quinto lance.

Somos dois pontinhos no quinto lance da parede. A foto é do Zé Patatelo que também estava em El Chorro a escalar e que simpaticamente nos enviou.

Cerca da 1:30 chegamos ao penúltimo largo. Obviamente, quando vimos as horas os sorrisos estamparam-se nas nossas caras, também elas já magnesiadas. Íamos ter tempo de sair por cima, como impele o sentido de alpinista! Íamos evitar os 6 rappeis carregados de quinquilharia, íamos evitar apedrejar qualquer elemento orgânico. YES! Íamos sair por cima!

A iniciar o sexto lance, o maior, com cerca de 60 metros (!)

Na secção fácil do sexto lance. Atenção ás pedras!

Mas o mais espectacular do momento não se prendia apenas com este factor, mesmo por cima das nossas cabeças, desenhava-se uma fantástica fissura que cortava a placa de calcário compacto numa diagonal para a esquerda. Uma daquelas fissuras impossíveis de não escalar, de não gostar, de não desfrutar. UÁU!

Lançado á fissura “UAU!” Absolutamente obrigatoria.

 

“BEEEEMMMMM, encontrar uma fissura destas sem estar aberta é um luxo! Foinix! Para penúltimo largo é um ex-libris! O melhor largo da via! UÁU!”. As palavras do Paulo reflectiam exactamente o que era aquela fissura… UÁU!

Desfrute!

Saída vertical em rocha compacta.

Foi com soltura que o largo foi resolvido, a dita fissura tinha os locais certos para proteger, a abertura certa para colocar as mãos, o desenho certo para se desfrutar. Nem muito difícil, nem muito fácil, simplesmente A FISSURA!

Bem visivel desde o solo. O oitavo lance da via.

Três momentos da Daniela na fissura fabulosa.

Depois deste prazenteiro largo, e de mais um comprimento de corda – desta vez uma trepada fácil – exactamente às 15:51, chegamos à aresta, ao fim desta bonita parede de calcário. Pela primeira vez víamos a paisagem para os dois lados daquela elevação.

 

De sorrisos estampados nos lábios, os comentários não eram eloquentes nem fartos, pouco mais conseguíamos dizer do que “Espectacular! Muita bom! Granda via!”…”Bem, muita bom! E o calcário? Ganda qualidade!”…

Missão cumprida!

Tínhamos entretanto uma hora e quinze minutos para descer até ao carro antes que a escuridão caisse dos céus mas, sem conhecer o caminho! O Paulo tinha a ideia de que, de alguma forma deveríamos ir ter às “Escaleras Árabes” e descer por aí. De facto tinha razão. Munidos do factor sorte, rápida e facilmente fomos dar ao trilho das “Escaleras Árabes”, sendo saudados pelo caminho por um batalhão de cabras que por ali passeava.

Parte do batalhão de cabras.

 

Pelas 17:00, ainda com a luz do dia chegávamos ao carro, cansados…mas estupidamente felizes! Tínhamos aberto a nossa melhor linha de calcário, até hoje!

 

Onde termina a aventura?

 

Num acolhedor restaurante a “tapear” festejando com “una bella botella de tinto!!!”

Daniela Teixeira

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Sobre o autor

Daniela Teixeira e Paulo Roxo é uma dupla portuguesa que pratica escalada (rocha, gelo e mista) e alpinismo. O que mais gostam? Explorar, abrir vias! A Daniela tem cerca de 10 anos de experiência nestas andanças e o Paulo cerca de 25. A sua melhor aventura juntos foi em 2010, onde na cordilheira de Garhwal (India - Himalaias), abriram uma via nova em estilo alpino puro na face norte da montanha Ekdante (6100m) e escalaram uma montanha virgem que nomearam de Kartik (5115m), também em estilo alpino puro. Daniela foi a primeira e única portuguesa a escalar um 8000 (Cho Oyu). O Paulo é o português com mais vias abertas (mais de 600 vias abertas, entre rocha, gelo e mistas). Daniela é geóloga e Paulo faz trabalhos verticais. Eles compartilham suas experiências do velho mundo e dos Himalaias no AltaMontanha.com desde 2008. Ambos também editam o blog Rocha Podre, Pedra Dura (rppd.blogspot.com.br)

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