Carnaval 40º

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Calor de 35ºC, sol a pino e as butucas voando alucinadas, zumbindo como abelhas, picando como escorpiões. Incontáveis, a cada tapa morriam seis. As roupas encharcadas e a face escorrendo suor. Descia da testa passando pelos olhos, salgando os lábios. Grandes gotas se desprendiam dos cabelos. As pernas estavam boas e a respiração compassada, mas sentia um profundo mal-estar, uma zoeira difusa apesar da visão ainda nítida. O Hilton foi o primeiro a perceber e me ofereceu uma barra melecada de cereais com chocolate derretido para repor o nível de açúcar no sangue. Foi o suficiente para alcançar o cume do Luar ao meio-dia do sábado de carnaval.

As 5:00h da madrugada apareceu o Leandro em sua moto, pouco depois o Elcio e a seguir o Paulo Marinho. O Hilton esperava no portão comendo seu desjejum e partimos para a serra. O Jurandir deveria ter pernoitado no sítio da Bolinha e o Moisés chegaria lá de modo independente. O carnaval de 2012 prometia um calor infernal, mas o Paulo Marinho insistiu em fazer a travessia Ciririca-Graciosa alcançando o Ciririca por cima, via Tucum. Não estamos na estação apropriada para percorrer os campos do Ibitiraquire com cargueiras e desde o início das conversas julguei se tratar de loucura, mas ao amanhecer de sábado estávamos desembarcando no sítio da Bolinha.
    
Avançamos montanha acima com as cargueiras pesando em média 15 quilos em uma manhã abafada, mas suavizada pelo hálito fresco do Ribeirão Samambaia enquanto o Elcio, infinitamente mais leve, disparava na frente para encontrar o Jurandir e o Moisés que deveriam nos esperar no Camapuã. Tudo corria bem até vencer a floresta e despontar na interminável rampa. Para o Leandro era só novidade e pela primeira vez pode avaliar a distância que nos separava do Ciririca e do primeiro pernoite.
   
Passo a passo, sob o sol da manhã, o Camapuã foi vencido e a vista alucinante se mostrou por inteiro. Enquanto o Paulo se entregava ao registro fotográfico, o Hilton e o Leandro seguiam para o Tucum onde duas siluetas acenavam do cume. Ficamos entretidos por ali uns bons 10 minutos e gastamos outro tanto procurando, sem sucesso, a proteção da objetiva que sumiu perdida nos campos.
   
Apesar da aparência intimidadora, a descida até o selado e a subida do Tucum é tranquila e muito rapidamente estávamos todos reunidos novamente. O Elcio encontrou o Moisés no Camapuã e seguiram até o Tucum onde nos aguardaram. Do Jurandir não tinham notícias, mas o Leandro recebeu, por celular, a informação de que sua mãe havia dado entrada num hospital e resolveu abortar a caminhada. Com a falta do Jurandir e a desistência do Leandro foi o Elcio que entrou em parafuso, pois contava com os dois para subir o Cerro Verde e abrir um atalho pela macega até o Taquaripoca. Tentou de todas as formas convencer o Moisés a ajudá-lo na empreitada, mas este prontamente respondeu que desta vez não veio a trabalho e fim de conversa.
   
O Elcio ameaçava desistir, mas por fim o convencemos a nos acompanhar. À distância víamos algumas siluetas acenando e gritando do Camapuã, mas era impossível identificá-las e seguimos em frente descendo lentamente o precipício sudeste sob temperatura em forte elevação. Ao romper da mata no fundo de vale já estávamos suando as bicas sob o ataque de milhares de mutucas, sem a menor brisa numa temperatura sufocante.

Nas encostas do Taquaripoca ouvimos os chamados do Jurandir que avançava rapidamente em nossa direção. Havia pernoitado em um hotel em Curitiba e pegou carona com a Rossana Weiss e amigos que seguiam para um ataque ao Cerro Verde. O Jurandir é bom companheiro, jamais vai te deixar de mãos abanando e quem ficou feliz foi o Elcio que renovou as esperanças de rasgar a macega na crista do Cotoxós para dormir no Arapongas. Subimos penosamente sob o sol e o Jurandir, o Elcio e o Paulo ainda tiveram ânimo de visitar os Ovos de Dinossauros enquanto os demais faziam uma parada no cume do Luar para reidratar e aproveitar a suave brisa que varria as mutucas para longe.

Descer do Luar e encontrar a entrada no mato alto é sempre uma tragédia devido aos muitos rastros de perdidos, mas o Hilton desatou este nó removendo o pó da memória e seguimos pelo riacho até uma clareira de acampamento. O Jurandir e o Elcio avançaram para os campos, guiados pelo GPS, na tentativa de interceptar a trilha normal enquanto nós seguimos pelo horrível leito do rio até a Última Chance. Apesar de avançar sobre terreno desconhecido chegaram apenas dez minutos depois e provaram que, com trilha, por ali fará um atalho bem melhor.
   
Uma longa pausa na Última Chance para reabastecer o estômago e preparar o psicológico para a longa rampa em frente. O Paulo, o Elcio e o Jurandir partiram vinte minutos à frente e iniciamos a subida quando o primeiro deles já despontava nas pedreiras. O sol mergulhava vermelho no horizonte ocidental quando recitei minha oração no cume do Ciririca e ainda consegui chegar à segunda placa com um pouco de luz natural. O Jurandir armou sua rede na estrutura da placa, o Elcio estava se recolhendo em seu bivaque com o protótipo da cobertura feito na Manaslu e o Hilton iniciava a montagem da barraca enquanto o Moisés se encarregava do jantar.
   
Cheguei indisposto, zoado pelo calor, desidratado, morto de preguiça e mesmo sabendo da necessidade de montar o bivaque fui deixando o tempo passar ocioso. O céu coalhou de estrelas e o Moisés preparou uma feijoada. Peguei minha parte e empurrei goela abaixo sem a mínima vontade. Limpei a panela até as últimas colheradas, sentindo enjôo, apenas por saber que aquela energia seria fundamental no dia seguinte. Ainda tentei prolongar a conversa com o Paulo, o Hilton e o Jurandir sob o brilho das estrelas, mas a canseira foi mais forte e aceitei caninamente o convite para dormir na barraca. Pernoitamos em três numa pequena barraca para dois.
   
O domingo de carnaval amanhece radiante de alegria, sol forte e vento fresco no cume do Ciririca. O Jurandir e o Elcio descem para os Agudos enquanto despertamos e fazemos o desjejum antes de segui-los. A descida com as pesadas cargueiras é o perrengue de sempre naquela encosta e aparentemente algumas partes do avião despencaram pelo precipício no Lontra. No labirinto de valas e campos do platô já não havia o menor sinal de brisa e o calor se tornava sufocante com as butucas alucinadas em nosso entorno. Ao cruzar o riacho encontramos o Elcio e o Jurandir que retornavam do Lontra dizendo estar insuportável lá em cima. A própria panela do diabo com enxames de milhares de mutucas ensandecidas, mais quente que o inferno.

Ao optar por enfrentar a via Tucum-Luar no verão e pernoitar no Ciririca já imaginava que a ascensão aos três Agudos; Lontra, Cotia e Cuíca seriam sacrificados em função do desgaste físico da véspera e do adiantado da hora. Por fim todos se convenceram que era mais conveniente poupar as energias para enfrentar o inevitável e partimos rumo a Colina Verde perseguidos pelas enfurecidas butucas.

Cruzamos pelos campos expostos ao sol inclemente e adentramos na primeira vala seca em direção ao oeste onde pelo menos podíamos caminhar na sombra das árvores. A vala se transforma em riacho que deságua no Rio do Agudo e tudo fica mais agradável com o frescor da água corrente, apesar do desafio em superar enormes pedras lisas e cobertas de limo. O rio me transfere energia e não demoro a abrir uma folgada dianteira, seguido de perto pelo Jurandir, e depois de vencer as cachoeiras chegamos ao Rio Forquilha onde esperamos pelos outros. Desconfiando da demora resolvi descer o rio e vi o Moisés surgindo de um segundo braço de rio, mais abaixo, e então descobrimos que o rio do Agudo faz uma pequena ilha fluvial ao desaguar no Forquilha.
   
Água límpida em piscinões entre as enormes pedras, e finalmente livres das terríveis mutucas, faz a caminhada render agradável. Rapidamente ultrapassamos a Pedra da Colméia e chegamos ao cotovelo do rio onde o Arapongas subitamente desaparece do horizonte. Hora de varar o mato até encontrar o riacho que desce da Garganta e segue paralelo ao Forquilha. O Moisés marcou um galho alto com duas largas fitas amarelas na entrada a esquerda e uma fita, com rabo, na margem à direita.
   
A entrada é identificada por uma enorme pedra redonda que esconde um grande complexo de grutas e pequenas cavernas. Vencido o barranco se encontra, a poucos metros, o pequeno riacho também marcado com fitas amarelas que é percorrido até as nascentes quando se toma um curto ramal a esquerda que ninguém me convence ser o certo. Saindo por ele é inevitável desviar-se progressivamente, em meio ao babuzal, para o Tangará e depois fazer um exaustivo contorno à direita para correção da rota até a Garganta. Lá encontramos o caderno de cume deixado no último ataque dos NNM com o Otaviano, mas sem caneta para anotações e apenas colamos na primeira página o adesivo do Altamontanha.
   
O Elcio então se decide a sair na Graciosa neste mesmo dia já sabendo que isto não fazia parte de nosso plano. Intima o Jurandir a acompanhá-lo e desaparecem no mato após se despedirem. Tínhamos três dias para caminhar com tranquilidade e planejamos acampar no abrigo dos palmiteiros antes de entrar no Dique de Diabásio para percorrer este trecho do rio com a luz da manhã, quando é mais fotogênico. Não fazia o menor sentido descer apressado pelo rio perigoso, onde o menor escorregão pode causar uma torção ou até mesmo uma fratura para depois subir à noite as encostas da Graciosa na esperança de uma improvável carona. Chegaram na Graciosa por volta das 22:00 horas e pernoitaram ao relento, no desvio de entrada para a Casa Garber e na manhã seguinte andaram a pé até o Portal da Graciosa onde o Jurandir conseguiu pegar o ônibus para Paranaguá e o Elcio apresentou-se na pastelaria que pertenceu ao Seu João – pai do Moisés – para conseguir carona até o Jardim Paulista e pegar o ônibus para Curitiba no Terminal Timbó.

:: Continua em Carnaval 40º Final….


Fotos de Paulo Marinho
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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