Diversos problemas de saúde consecutivos me forçaram a fazer um plano de saúde, primeira vez na vida. Nunca tive unha encravada na vida, uma recentemente me fez reavaliar o meu conceito de “dor”. A dor é efetivamente pior em extremidades do corpo onde a terminação nervosa é mais ramificada. A ponta do dedão do pé é “a ponta da espada”. Quem já teve sabe como dói. Eu tinha ido visitar a Beatriz no sul com a Lili e voltei quase me arrastando pra entrar no avião, na base de 3 comprimidos pra dor a cada 4 horas, me sentia o próprio Dr. House. Resolvi esse problema com uma mãozinha do Davi. Depois disso, um furúnculo na coxa esquerda. Mas que zica é essa!? Nunca tive isso também! Curado. Semana passada comecei a ter crises de labirintite, que também nunca tive antes. É um lance meio bizarro, eu ficava esbarrando em tudo em casa pois não tinha equilíbrio algum.
Resolvi fazer um check up geral e isso incluiu até corrida em esteira com eletrodos grudados em 12 pontos diferentes do meu tronco. Eletrocardiograma, hemograma completo (não fazia um há 20 anos!), urina, fezes, até ultra-sonografia de abdome farei em uma semana (motivada por umas dores abdominais diárias que ando tendo). Tudo parte do meu plano de ver como está a carcaça à beira de completar 35 anos em dezembro. Quem sabe, preparar-me para mais um desafio de altitude. Só o futuro dirá. Enfim, descobri que estou com anemia, com plaquetas a só 102.000 (normal a partir de 140.000), mas isso não adiou os planos.
Na última vez que eu e Tácio decidimos colocar em prática esse plano, ainda em Porto Alegre mandei sms pra ele avisando do dedo ruim, que não poderia ir com ele, adiamos até eu me recuperar. Dessa vez nem um exame de sangue desfavorável me fez ficar em casa. Tinha um grupo programado pra eu guiar na Serra do Mar Paranaense que deu pau, e seria meu retorno à montanha em um lugar que guardo no coração, infelizmente o tempo não ajudou e tudo foi cancelado. Agora, com a previsão boa, pro inferno com as plaquetas!
Tácio e eu planejamos ficar dentro do parque do Itatiaia por 6 dias e 6 noites aproximadamente, até conseguir nosso objetivo em comum, o Pico do Gigante deitado de 2.190 metros de altitude. Bastante tempo e dá, não dá? Que nada, furada…
Chegamos a Visconde de Mauá bem cedo até, e sem muita xurumela começamos a caminhar subindo pelo Vale das Cruzes, onde a direção do parque recentemente fez manutenção da trilha para reabertura da travessia, e ao mesmo tempo fechou o acesso por Maromba na cachoeira do escorrega, por onde já subimos anos atrás pra chegar em montanhas como o Pico do Maromba (2.621 metros), e Pico Cabeça de Leão (2.442 metros). Como já era tarde, logo começou a escurecer e continuamos na trilha com lanternas de cabeça ligadas. A trilha começa nos fundos de uma propriedade privada e o acesso é sem palhaçada nenhuma, sem perturbação, e com bom papo do caseiro Zé, que mora ali também, a 1.280 metros de altitude.
Logo após o encontro das trilhas que acontece a 1.950 metros, já completamente no escuro, encontramos um local bom pra dormir, onde por acaso já foi feita fogueira, não por nós é claro. Montamos nosso primeiro bivaque ali à luz do sol refletida pela Lua, que mais parecia uma lanterna impedindo que eu pegasse no sono com facilidade mais tarde. O jantar poderia ter sido melhor, levei carne seca e depois de 2 fervidas pra tirar o excesso de sal, deixei fritar um pouco e adicionamos arroz que o Tácio levou. Ficou meio seco, faltou algo a mais, preciso trabalhar nesse prato hehe. Talvez uma cebola refogada junto melhoraria o paladar.
Acordamos cedo, pouco depois das seis. Tomamos café da manhã, arrumamos tudo e começamos a caminhar. A idéia para esse dia não era fácil: Subir os 670 metros de desnível restantes até o topo do Maromba (que aumenta pra uns 720 com a descida do Marombinha), descer na crista oposta entrando no vale da borda leste do PNI, e lá ascender o Pico Cabeça de Leoa (ou Cara de Leoa) de 2.483 metros de altitude, e também o Pico Cara de Gorila de 2.351 metros de altitude, tudo no mesmo dia. Ufa!
Subimos, subimos, subimos…Logo chegamos ao Marombinha (2.425 metros), cume norte do Maromba, 200 metros menor que o gigante brasileiro. Continuamos galgando a crista do maromba de 1,3 kms que separa os dois pontos, e 75 minutos depois chegamos no alto dos 2.621 metros do Maromba, onde não paramos muito, só uns 4 minutos eu e uns 10 o Tácio, que chegou primeiro.
Começamos a descer a crista oposta e logo ali notei como a vegetação estava alta. Da primeira vez que passei ali, também com o Tácio, a vegetação era rasteira, com bastante caraguatás e matinhos que não passavam de 20cms de altura. Agora, no final das chuvas, tudo está alto, onde ali ficava no começo da canela, agora está ao joelho. Muita diferença!
A descida apesar de apresentar pouco desnível (400 metros verticais), é bem longa e se extende pela crista sudeste do Maromba por 2 kms. Parece pouco, mas com mochilas nas costas e em descida, é longo. Chegamos a um local único, um encontro de rios: da esquerda, águas de diferentes nascentes do Pico do Maromba descem formando um rio/ Da direita, águas de quatro ou cinco nascentes que descem do Pico Cabeça de Leoa formando o grande charco que é o vale e compondo um rio que encontra o do Maromba, os dois descendo pelo Vale do Pavão como um só fluxo de água. O Itatiaia é mesmo um lugar incrível…
Estávamos cansados, muito cansados. Resolvemos fazer um lanche e descansar um pouco ainda antes de subir o Leoa, objetivo meu e repetição pro Tácio. Depois de alguns minutos o Tácio disse: “Cara, vamos logo pro Leoa, o cansaço não vai diminuir mesmo”. Topei imediatamente e partimos deixando as mochilas ali mesmo, com 400ml de água cada um.
A subida é relativamente longa considerando que se subíssemos em linha reta seria 830 metros até o cume e outros 830 pra voltar. Seguimos os totens que margeiam a montanha na intenção de evitar o charco e maiores imprevistos, o que aumentou a corrida pra 1,55 kms pra ir e o mesmo pra voltar. O dobro de distância. Mais, o Leoa tem dois falsos cumes antes do mais alto, nossa, que chute no saco! O maciço continua com mais dois cumes após o mais alto totalizando cinco no total. Enorme massa de rocha o Leoa com quase 2 kms de ponta a ponta!
Onde deixamos as mochilas, a altitude era de 2.220 metros, então tivemos que vencer mais 263 até o cume do Leoa, 300 contando com as subidas e descidas dos dois falsos cumes. Vai somando tudo aí…
Descemos até as mochilas já exaustos. Matamos a sede, descansamos por mais cinco minutos. Mas peraí…o trabalho deste dia não estava concluído. Precisávamos ainda atacar o Pico Cara de Gorila (ou Cabeça de Gorila) de 2.351 metros de altitude. Novamente, objetivo meu e repetição pro Tácio. Até desanimou subir o Gorila, estávamos bem cansados já de tanto sobe e desce. Mas mesmo assim, colocamos as mochilas nas costas e começamos a subida tímida de 131 metros verticais até o cume.
Subimos, foi duro, duro e cansativo. A inatividade é mesmo uma mulher feia e enrugada vou te contar…De novo o Tácio chegou na frente e quando cheguei fizemos algumas fotos e deixamos um recado no cume. O registro do Gorila mostra como ele é uma montanha isolada e pra poucos, nos últimos 12 anos deve ter sido culminado dez vezes e olhe lá. É o tipo de montanha que você pode até perguntar aos guardinhas do parque (que eu e Tácio conhecemos) onde fica, e eles nunca ouviram falar, e olha que esses caras andam aquilo em treinamento e conhecem bastante do parque. Infelizmente, só conhecem mesmo a borda oeste do parque mesmo depois de treinar na borda leste. Sem perder muito tempo pois logo escureceria, começamos a descer a lateral da montanha em busca do lugar do nosso segundo bivaque.
Chegamos na borda do charco enorme que percorre todo o vale. Aliás, é o maior charco que já vi com 1,5 kms de extensão e 200 metros de largura, em média meio metro de profundidade, e o Tácio já atravessou ele com água na cintura. É muita água. Tudo naquela parte do Itatiaia é em proporções maiores que na parte oeste, mais turística com o Agulhas Negras, Prateleiras, Couto e Altar (divulgadas, mas na verdade existe mais uma dúzia de montanhas por lá). Ali, começamos a procurar um local pra dormir e logo encontramos, muito bom, com terra fofa, e seria a noite mais confortável de todas a só 18 metros de água corrente e limpa.
Dessa vez resolvi caprichar na nossa janta, já que o dia foi duro com muita distância e desnível. Feijoada somada ao arroz do Tácio. Agora sim, jantamos como gente grande…Aliás, só pra fins de curiosidade, só no segundo dia do total de cinco andando, o desnível de subida acumulado foi aproximadamente 1.150 metros verticais. A distância caminhada mais ou menos 9,8 kms.
Jantamos cedo, ficamos conversando até depois das 19:00h e o sono chegou também cedo, antes das 20:00h. O frio chegou rápido e a temperatura despencou com ele.
Dormimos. Acordei com o céu perfeitamente límpido, e um cenário em alpenglow do sol em todo o maciço do Leoa a Oeste do nosso bivaque, do outro lado do charco. Mesmo com muito frio pelo choque térmico que é sair de dentro do saco de dormir pros 3°C do lado de fora, saquei minha câmera e fiz algumas fotos. Com minha movimentação o Tácio acordou também e nem saía do saco com o frio. Perguntei pra ele: “Tácio, qual é a temperatura?”. A resposta foi: “Pera que vou ver….3,2°C, é, tá frio”. Fez uma foto do relógio. Dá pra entender que a sensação térmica era mais fria já que estávamos cercados de água, muita água. O inverno ainda nem está perto, lá na estação diariamente a temperatura chega fácil a reais –5°C.
Essa manhã começaria diferente pra nós dois, o peso aumentaria consideravelmente. Não sabíamos se encontraríamos água dali em diante então precisaríamos carregar toda água possível pra mais três dias completos incluindo consumo, café da manhã, e janta. Que porrada…Recolhi cerca de 6,5 litros de água e o Tácio 7 litros. Juntos tínhamos 13,5 litros de água e era tudo. Muito mais pesados (a partir daí minha mochila passou a pesar cerca de 20kg e a do Tácio uns 25kg – porra ele me disse que tinha comida pra 6/7 dias mas calculando bem tinha é comida pra 10 dias!), alimentados e de mochilas prontas, começaríamos o terceiro dia da jornada rumo à extrema ponta sul da parte leste, na tentativa de chegar ao topo do Pico do Gigante Deitado de 2.190 metros de altitude.
Continua na parte 2…