Leia aqui a primeira parte: https://www.altamontanha.com/Colunas/3477/alpes-parte-1
DESACLIMATAÇÃO E A AGULHA
Entre chuvadas, realizámos eternas idas e vindas à famosa montra da farmácia no centro de Chamonix, onde tradicionalmente surge o folheto com as previsões actualizadas. Para contrastar e, na esperança de um milagre qualquer, consultávamos vários sites da internet, de uma forma quase obsessiva. Todas as informações convergiam num único sentido: mau tempo generalizado até ao final da semana.
Chamonix não é propriamente o local mais adequado para carteiras modestas. Cada “café au lait” custava-nos um olho da cara apenas porque a versão mais barata, o “café expresso”, era simplesmente intragável. Tantos dias sem subir à montanha constituía uma perspectiva economicamente… insustentável, utilizando o termo da moda. Para além disso, o nosso projecto principal (de cariz privado!), mais ambicioso e fonte das nossas motivações para os Alpes, necessitaria pelo menos de três dias estáveis.
Compreendemos que zarpar dali, rumo a outro porto, seria o mais sensato.
Assim, aclimatados para altitudes superiores eis que… baixámos de cota!
Servia-nos de consolo a nova via que escalámos ao “tropeçar” na face sul da Point Lachenal, com os bónus anexos de uma tempestade de vento e neve nocturnos e algumas horas muito mal dormidas no interior de uma tenda prestes a desintegrar-se.
Deixámos temporariamente o Alpinismo para nos convertermos em Pirineístas.
Um belo dia de Primavera viu-nos subir o Vale de Estós em direcção ao Pico Perramó, nas montanhas sobranceiras a Benasque. A paisagem imaculada atraía-nos de uma forma poderosa. A cada curva do caminho, depois de cada árvore mais frondosa, as exclamações de maravilha sucediam-se.
A primeira tarde terminou após hora e meia de caminhada, numa pequena lata de sardinhas apontada no mapa do livro de escalada da região e apelidada de “refugio”. Não fossem os mosquitos, sob a forma de praga (os inconvenientes da estação das flores), teríamos optado de bom grado por um bivaque à luz das estrelas.
Um bivaque (Tupek da Ortik), ideal para situações de fortuna em alta montanha… e também como resguardo anti-mosquitos… dentro do refugio claustrofobico!
No dia seguinte retomámos a direcção da bela agulha de granito de Perramó, subindo um trilho sinuoso de uma beleza extraordinária.
Desde as montanhas que dominam a linha do horizonte, passando pelos prados verdejantes que as ladeiam, escorregando até à floresta densa e fresca, a paisagem era simplesmente magnífica.
A dado momento deparamo-nos com a cascata de Perramó. Ficamos ali um bom bocado a admirar as toneladas de água debitadas desde uma altura de mais de 100 metros. Imediatamente me veio à memória a escalada desta cascata, já lá vão mais de dez anos, levada a cabo naquela temporada em que o general Inverno toma o poder e consegue lenta e inexoravelmente congelar cada gota de agua do cachão imenso.
Ganhando desnível continuamos a subir, ora por trilho evidente e cómodo, ora por troços de cascalheira e blocos. As vistas alargavam cada vez mais e, quanto mais subíamos mais lagos e pequenas lagoas de montanha iam surgindo.
Passo a passo íamos adentrando num mundo cada vez mais rude e selvagem. De súbito, surgiu de novo a “nossa” torre altiva e orgulhosa, defendida por muralhas de granito e circos minerais alpinos de aspecto austero. Olhando para baixo, em direcção ao vale desde o qual subíramos até ali, conseguíamos verificar que cada covão albergava uma pequena lagoa de agua límpida e cristalina.
Um caos de grandes blocos de transposição penosa precedeu a parede escolhida para a nossa escalada.
Um bonito diedro estimulava a nossa imaginação desde o inicio. Cedo concluímos que, apesar de não vir representada no guia da região, essa linha já tinha sido escalada. Uma cordeleta e um piton abandonados denunciavam os predecessores.
– A linha parece gira. Continuamos? – perguntei sem muita convicção.
– Depois de toda a caminhada para chegar até aqui?! Por mim tentaria abrir uma nova via! – rematou a Daniela.
Ok, stick to the plan!
Mesmo à esquerda de um outro diedro evidente dissimulava-se uma tímida fissura que cortava uma grande placa a direito. A “nossa” linha!
Uma caminhada de hora e meia, um bivaque numa cabana metálica claustrofobica e cercada por mosquitos, um despertar madrugador, uma segunda marcha de duas horas, acabaram por se resumir numa escalada técnica de pézinhos com três singelos lances e um comprimento total relativamente modesto, não chegando aos 80 metros.
A primeira analise levou-nos a considerar que seria injustificável tão longa aproximação para tão curta escalada. Contudo, contrair um conjunto de vivências e emoções numa mera consideração tecnicista, baseada apenas no gesto da escalada seria algo, no mínimo, redutor.
O alpinismo, a escalada, a exploração, são conceitos inspirados pelo deslumbramento que certos locais isolados e selvagens potenciam. Neste caso, a floresta, os rios, as lagoas, as montanhas, conjugaram-se de forma sublime justificando plenamente a caminhada relativamente longa. A nova via, a “Ilógica metrológica”, ficou-se pela cereja no topo do bolo.
Paulo Roxo