A Crista do Ferraria

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A chuva só conseguiu adiar o dia do enfrentamento com a crista do Ferraria e o excelentíssimo Paulo Marinho passou a semana seguinte com um olho na previsão do tempo e todos os outros sentidos fazendo pressão para encarar o desafio. Tanto perturbou que no sábado, 23 de junho de 2007 as 4:30 da madrugada, novamente partimos com o “Land Celta” para o Bairro Alto – Antonina. Agora estávamos em quatro, eu, o Paulo, o Moisés e o Elcio que iria enfrentar a crista pela terceira vez, com pequenas mochilas carregando o estritamente necessário para o ataque. Nem pensar em pernoitar. Duas horas depois encontramos a fazenda tomada por um imenso acampamento de “Desbravadores”, a versão evangélica dos escoteiros, com suas imensas barracas de praia e gincanas noturnas. Passamos batido por tudo isso e o amanhecer já nos encontrou no meio da mata. Da ponte de troncos acompanhamos o Rio Cotia, passamos pelas piscinas de águas límpidas e pouco depois fazíamos o desjejum nas lajes do Disco-Porto com Ibitirati de um lado e o Ferraria do outro. A manhã estava magnífica com um céu muito azul e um vento fortíssimo que varria a mata a intervalos irregulares.

 

As nove horas começamos a escalar a encosta que se inicia junto a imensa laje de concreto do Disco-Porto. Esta face da montanha tem uma inclinação de aproximadamente 50º com pequenos lances que superam os 60º, mas é toda arborizada e facilita o progresso apesar de muito suja. Sobe-se agarrando-se pelos troncos das árvores com o corpo quase todo mergulhado em profundas camadas de musgo seco e empoeirado. Apesar de fácil e segura, é muito cansativa e ganha altura rapidamente. Conseguimos fazer os primeiros duzentos metros verticais em apenas uma hora, mas ao nos aproximar da crista a vegetação começou a dificultar as coisas. As árvores foram minguando em altura e se espaçando enquanto as taquarinhas foram paulatinamente preenchendo todos os espaços. As taquaras formam um emaranhado compacto, resistente e flexível que volta a se fechar assim que o corpo passa. O avanço se fazia, lento, desgastante e doloroso, afastando as taquaras com as mãos e os braços. As varetas se cruzam e se agarram num trançado miúdo que resiste as investidas, seguram as mochilas e se engatam nas pernas causando pequenos ferimentos nos braços, no rosto e nas pernas. Prendem, agarram, arranham e seguidamente devolvem a agressão como se fossem feixes de molas, empurrando tudo para trás. Isto numa inclinação superior aos 45º com o sol ardendo nas costas e o corpo suando as bicas. Nas cumeadas recebíamos o impacto do vento que soprava tal qual furacão raivoso querendo nos varrer da aresta da montanha.
 
Aos poucos e com muito sacrifício íamos ganhando altura e a vista se tornava esplêndida. Estávamos acima do Saci, o Ibitirati parecia estar ao alcance das mãos, o PP se desenhava inteiro e dava para ver alguns pontinhos negros se movendo no cume. A vista acompanha toda a aresta, desce pela sela e sobe até o Caratuva. No desfiladeiro do sufoco nasce uma crista paralela que corre inclinada até os paredões de pedra que cercam como fortaleza o cume do Taipabuçu. Magníficas paredes de pedra nua e eriçadas, verticais nascendo da floresta e arranhando o céu com suas pontas afiadas brilhando ao sol. 
 
A água vinha sendo racionada desde o início e os corpos já imploravam por algumas gotas, mas tinham que se contentar com um pedaço de fruta. Afinal distraíam o estomago além de enganar a sede. Estava com muita fome e o estomago doía em cada pequena parada para respirar. Depois de vencida uma moita de taquara imediatamente aparecia outra moita de taquara mais fechada que a primeira. Começamos a avançar por turnos de quinze minutos para a troca do coitado que segue na frente passando por baixo das taquaras, passando por cima das taquaras e finalmente pelo meio das taquaras. A coisa estava tão feia que nos sentíamos aliviados ao encontrar extensos trechos cobertos por samambaias “unha de gato” nos pequenos cumes varridos pelo vento. As samambaias chegam a altura do peito e terminam de rasgar tudo o que escapa das taquaras. Num dos mais belos mirantes o Paulo quase foi arrastado pelo vento que não perdoou o boné do Moisés, arremessando-o na grota. Antes o boné do que a cabeça, não é Moisés?
 
O precipício mudou de lado, estava a esquerda e agora surge também a direita se espremendo até bater num degrau de cinqüenta metros a nossa frente. Já era hora de parar, respirar, beber uns goles d’água e pensar na vida. Que vida? Isto lá é vida? Claro que é vida e das boas, ainda tínhamos duas maçãs e três mexericas fedorentas pra comer, um litro de água com pó sabor uva pra tomar e já dava pra avistar a pirâmide final da montanha por detrás de um degrau vertical de 50 metros de altura. As más notícias eram que o cume aparecia ainda azul de tão distante, que não tínhamos cordas, grampos ou qualquer outro equipamento pra escalar aquela pedra, que o suor escorria sobre os ferimentos e ardia como fogo. 
 
Quando pensava que nada poderia ser pior do que aquilo que tínhamos passado, sempre surgia alguma coisa muito pior para enfrentarmos. É a velha máxima; piorar é sempre possível e nada pode ser tão ruim que não possa ficar pior. Só não sugeri enfiar o rabo entre as pernas e voltar de medo de passar por tudo aquilo novamente, afinal nada poderia surgir de pior. Ou poderia? Nenhum dos quatro jamais cogitou abandonar o objetivo, jogar a toalha, mas pode apostar que isto assombrou nossas mentes o tempo todo, durante quase todo o longo percurso. A aresta se estreitava cada vez mais na direção do degrau, mas afinal não era tão assustador como pareceu a distância. Dos cinqüenta metros de altura, nem vinte eram realmente verticais, destes apenas dez eram realmente expostos ao vazio e talvez só uns cinco tinham agarras muito instáveis. Vá lá, três metros eram realmente difíceis, só que não dava pra errar e muito menos escorregar. A parede estava realmente suja e ficou muito perigoso, principalmente para o último. A queda era vertiginosa e não tinha nenhum lugar seguro para as mãos agarrarem. Tudo estava podre, esfacelando-se, desmoronando. Só restava a velocidade, passar antes que o pouco de lodo e raízes superficiais se desprendam com o puxão e o que vem atrás precisa achar outro lugar para se apoiar, sem ajuda, sem corda, sem segurança nenhuma e principalmente sem olhar para baixo. 
 
A cada passo um novo obstáculo e uma nova decepção. Onde julgávamos encontrar água só tinha areia seca e no meio da tarde penetramos numa área de bosque onde encontramos uma trilha de porcos do mato. Um pequeno túnel por onde passam os catetos e por ali mesmo é que nos enfiamos, rastejando junto ao chão, feito bicho selvagem se esgueirando no meio das folhas e do musgo seco. Varamos todo o bosque até a borda do precipício. Uma queda livre de centenas de metros. De resto tudo bem, fora os carrapatos. Na calça do Elcio havia centenas deles, de todos os tamanhos, e bem agarradinhos. Sentia-os ferroando minha canela e até arranquei alguns antes de arrumar as polainas e seguir em frente.
 
Ufa! O pior já passou, agora só falta a pirâmide do cume, linda, rasgando o céu com seu atrevimento. Ao lado está o vazio, o buraco, o precipício e a frente o taquaral. Ah! O taquaral e já estava com saudades da pedra. Alguém falou que nada podia ser pior e a 100 metros do cume ainda queria desistir, voltar e descer toda aquela montanha. E passar por tudo aquilo de novo? É louco! Nada poderia ser pior e eu vou em frente pra ver no que vai dar. E deu em mais taquara rasgando a gente, segurando, empurrando pra baixo. Ohhh! Malditas taquaras. E o terreno foi arredondando e acabou, virou descida pra todos os lados. 
 
– Uhhhh! Uuuuuuuuuuuuh! 
 
É o cume, mas não o principal. O Moisés ficou estirado, mais morto que vivo, no capim. E dá-lhe perna pra descer aqueles poucos metros e voltar a subir do outro lado, mas agora tinha trilha e chegamos rapidamente. Desmoronamos no chão, ao lado do caderninho e o Elcio encontrou o formigueiro. Trocou os carrapatos pelas formigas e em instantes estava pulando e se estapeando feito doido. 16:30 horas e o sol já estava vermelho e fraco demais para compensar o vento frio, anunciando um entardecer precoce. Limpamos o fundo das mochilas, catando todas as sobras de comida, as últimas gotas de água economizadas para a ocasião tão solene e quinze para as cinco já estávamos novamente em marcha. Era crucial descer pelos campos de altitude e entrar no mato antes de anoitecer. Subir aquela encosta coberta de capim já é difícil e descê-la no escuro é impossível.
 
Iniciamos a íngreme descida pelo lado oposto da montanha com todo o cuidado. Estávamos muito cansados e o menor passo em falso teria conseqüências trágicas para a aventura. Uma perna quebrada ou mesmo uma leve torção não constava nos planos e era preciso administrar a ansiedade com a noite se aproximando. Muitas vezes perdemos a tênue trilha escondida sob o capim varrido pelo vento frio e sempre o mesmo perrengue para reencontrá-la na semi-escuridão. A noite nos alcançou na entrada do mato e seguimos tateando pelo meio do bambuzal até o leito do rio, agora totalmente seco. A falta d’água nos facilitava a descida com as lanternas. Seguimos descendo por entre as enormes pedras, escorregando por onde antes corria a água em grandes e ruidosas cachoeiras. As luzes das lanternas atraíam nuvens de pequenas mariposas que se chocavam contra nossas cabeças e penetravam no nariz, sugadas pela respiração. Uma delas acabou entrando na orelha do Paulo e não conseguimos retirá-la apesar de todo o esforço e os parcos meios que tínhamos a disposição. Fez todo o percurso com o bicho se debatendo dentro do ouvido e só conseguiu se livrar dela no dia seguinte, numa visita a farmácia.
 
O problema agora era encontrar a Picada do Cristóvão no lugar em que cruzava com o rio. A escuridão era total e precisávamos ficar bem atentos para não passar por ela sem percebê-la. Raramente descemos o rio e também nunca o tínhamos visto com tão pouca água, mas para nosso conforto sabíamos que cruzava logo abaixo de duas grandes lajes inclinadas em que a água fazia uma espécie de tobogã. Encontramos as lajes totalmente secas e a trilha depois dela. Agora tinha a certeza de que dormiria em casa, de barriga cheia e banho tomado. Então tirei da mochila o premio que havia escondido para uma hora de extrema necessidade ou como era o caso, uma importante comemoração. Uma caixa de Bis, a suprema delícia dos esfomeados, um luxo inimaginável e foi prontamente devorada. Papel e ponta dos dedos lambidas até não restar traço do chocolate. E depois deste breve descanso voltar a pisar uma trilha, descendo a serra pela velha Picada do Cristóvão.
 
Desvendar esta trilha já foi outra história não menos emocionante e começa quando eu e o Paulo Marinho resolvemos escalar o Ferraria baseados num croki fornecido pelo Vitamina (Henrique Paulo Schmidlin). Por telefone pedimos autorização para cruzar a fazenda Querência e estacionamos o carro nas terras do João de Abreu onde começa o que restou da trilha calçada.
 
O sol estava escaldante naquele dia e tomamos um caminho errado, indo parar embaixo dos fios de alta-tensão. Seguimos em frente subindo e descendo uma morraria enfadonha recheada de urtiga, espinhos, teias de aranha e cobras. Todas as cobras do mundo estavam concentradas debaixo daqueles fios. Os cabos elétricos seguem direto por cima dos morros sem se importar com curvas de nível e só conseguimos chegar aos pés do Ferraria no final da tarde, suados e mortos de cansaço. Depois de algumas trapalhadas nas torres reencontramos a Picada do Cristóvão pouco adiante do poste 74 e montamos nosso acampamento numa pequena clareira no meio da mata, pouco depois do rio que dá acesso a face norte do Ferraria. A noite, durante o jantar ouvi alguns ruídos estranhos na mata e alertei o Paulo de que tínhamos companhia, mas não demos maior atenção ao fato. De madrugada aquilo virou um inferno com chuva torrencial, raios, trovões e árvores tombando no meio da ventania. O amanhecer mostrou um mundo totalmente diferente ao da véspera e a chuva continuava incessante com a mata varrida por um vento gélido. A sensação térmica tornava a vida miserável naquele lugar e começamos a ensacar o material para ir embora quando ouvi um ruído de galhos pisados nas costas da barraca e gritei o velho:
 
– Ooopa!
 
Logo respondido da mesma forma e saímos da barraca para ver duas figuras encharcadas saindo da neblina e caminhando em nossa direção. Usavam o jaleco da Copel e explicaram que na tarde de ontem vieram fazer uma vistoria de rotina nos cabos, mas um terceiro elemento que os acompanhava acabou por perder-se na subida da serra, antes da tempestade, e ainda não fora encontrado. Isto os obrigou a pernoitar protegidos da chuva dentro do Toyota estacionada na Ponte de Troncos e sair pela manhã para procurá-lo no alto da serra. Garantimos que por ali não havia passado ninguém sem ser percebido, mas resolveram continuar em frente mesmo assim. Continuamos vagarosamente com nossa tarefa e uma hora depois estávamos em marcha para o alto da serra quando os reencontramos parados em pé numa dobra do caminho. Estavam num posicionamento esquisito e quando nos aproximamos, não responderam a nossas perguntas. Olhos arregalados e corpos trêmulos, mentes distantes em transe hipnótico.  Parecia que estavam em choque e iriam morrer ali mesmo, então enquanto o Paulo armava a barraca para abrigá-los do vento e da chuva, eu me comprometi a descer a serra e achar o companheiro perdido desde que depois nos levassem na Toyota até Morretes para tomar um ônibus de volta a Curitiba. Desci pela trilha enquanto o Paulo preparava uma refeição quente e no pé da serra não tive dificuldade em encontrar os rastros do rapaz que seguia em direção à Janela da Conceição enquanto seus companheiros subiam pela Picada do Cristóvão. Fui encontrar o menino todo encolhido, assustado e tiritando de frio num buraco de árvore adiante da cascata. Dei-lhe meu anorak e o levei até a Toyota na Ponte de Troncos enquanto ele me contava toda a aventura noturna.
 
Há poucos meses dera baixa do exército e conseguira um emprego numa empresa terceirizada da Copel e esta era sua primeira missão. Percebeu que estava perdido ao cair da noite e se escondeu no buraco da árvore durante a tempestade. De madrugada pensou ter visto dois olhos brilhantes de uma onça rondando o esconderijo e não dormiu um minuto sequer. Ao amanhecer tentou retornar várias vezes até a Toyota, mas sem encontrar o caminho sempre acabava voltando a mesma árvore e isto me facilitou muito o trabalho para encontrá-lo, pois deixou o mato todo pisado. 
 
Peguei a vara telescópica para religar os isoladores nos postes e subi a serra até reencontrar o Paulo com os outros dois protegidos dentro da barraca, acompanhamos a vistoria nos cabos e descemos a picada de volta a Toyota onde encontramos o rapaz no mais profundo sono. Em Bairro Alto, distrito de Antonina, paramos em frente à zona onde os três combinaram de passar a noite e depois de pagarem às putas pelo serviço não prestado nos transportaram até a rodoviária em Morretes.
 
No final de semana seguinte voltamos para resgatar o carro deixado na fazenda do João de Abreu e levamos um litro de cachaça para o caseiro que ficou hilariante com o presente. Na saída nos disse para deixar as porteiras abertas porque depois as fecharia quando fosse recolher o gado. Na semana seguinte estava até nos jornais que na fazenda do João de Abreu havia passado dois mochileiros e deixado as porteiras abertas por onde fugiu o gado para a serra e se perderam duas vacas devoradas pelas feras. Moral da história; o pau d’água tomou um porre de Velho Barreiro, não fechou as porteiras e botou a culpa nas costas dos malditos mochileiros que por anos a fio tiveram que agüentar as gozações dos que tiveram conhecimento do episódio.
 
A trilha estava muito bem marcada e boa para caminhar, mas as pernas já perdiam as forças e a sola do pé parecia em brasa. Os quilômetros se arrastavam e a trilha da Conceição não chegava nunca, mas fazíamos questão de não perder o bom humor e as horas foram passando no ritmo das pernadas. Encontramos a trilha da Conceição, a ponte de manilhas, a ponte de madeira e a ponte de troncos. Desviamos desta última e paramos no meio do Rio da Cotia para descansar, descalçar as botas e esfriar os pés. As 21:30 nos colocamos novamente em movimento para a última etapa do trajeto. Poucos passos na trilha e os pés voltaram a ficar em brasa, sobe e desce, mais seis quilômetros até cruzar por debaixo do aqueduto, mais um quilômetro até o carro. Vinte quilômetros no escuro desde que saímos do rio no alto da serra. Dezesseis horas caminhando ininterruptamente, das 7 da manhã as 23 horas da noite, trinta quilômetros de trilha mais a subida e a descida da montanha, 1500 metros de desnível pra cima e outros 1500 para baixo. Estávamos mortos de cansados quando encontramos novamente o “Land Celta” e iniciamos o retorno movido a gasolina num último esforço para manter o motorista acordado. Afinal ninguém merecia morrer numa batida de automóvel depois de ter sobrevivido a esta dura prova. Durante a viagem combinamos as mais duras atrocidades para quem sequer ousasse sugerir repetir esta infeliz façanha num futuro longínquo, mas agora depois de três dias quando termino este texto já fico saudoso e ouso duvidar desta resolução. Talvez no ano que vem, ou antes, quem é que sabe?
 
 
 
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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